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3.2.3 A CIDADE E SUA LITERATURA NO CONTEXTO QUEBEQUENSE

4. DESLOCAMENTOS DISCURSIVOS 1 O DESLIZAR ENTRE OS TEXTOS

4.2.3. MARIE E A PARÓDIA

Se Teddy traduz, Marie parodia; praticando “la lecture ralentie”(POULIN, 1995,p. 51), como um perfeito receptáculo, ela recolhe e reproduz em sua “tela interior” (G.M., p. 51-53) – uma tradução mediática da mente? – os textos que aprecia, no momento em que deles necessita. E isso ela faz não apenas com textos escritos, mas também com as palavras de outros.

63A Tradução Automática surgiu, depois de algumas tentativas de cientistas russos na década anterior, nos

anos quarenta do século XX, logo após a Segunda Guerra mundial, com o objetivo de promover a obtenção de informações científicas soviéticas à distância. Depois ter despertado grande interesse na década seguinte, os anos 60 trouxeram desânimo ao projeto porque as aplicações práticas não correspondiam às expectativas. Após uma lacuna de cerca de 10 anos, a década de 80 viu recrudescer o interesse pela TA, nos Estados Unidos e em muitos países da Europa. Atualmente, diversos endereços na Internet oferecem serviços de Tradução Automática. (ALFARO, Carolina e DIAS, Maria Carmelita P., 1998)

Os dois – o tradutor e sua companheira – realizam, na verdade, um trabalho ao mesmo tempo semelhante e oposto. A esse respeito, é interessante notar que, quando jogam tênis, Teddy prefere “le coup droit”, enquanto Marie, “le revers”; o texto destaca o fato de que “le revers est un coup plus naturel que le coup droit” (p.68). Isso resume, de alguma maneira, suas atitudes opostas em relação à língua: Teddy aborda-a de forma “direta”, ao passo que Marie a inverte ao proceder a modificações de sentido.

Em sentido inverso ao da tradução de Teddy, Marie não procura, de forma alguma, a transparência nos textos que produz. Ao contrário, realiza uma espécie de paródia, ou seja: uma “transformação lúdica de um texto singular” (GENETTE, 1982, p. 36-37). Como constata Linda Hutcheon, a paródia pode amalgamar o “mesmo” e o “outro”, uma vez que consiste em “uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança [...] O prefixo grego para pode tanto significar “contra” e “próximo” (HUTCHEON, 1991, p. 47)

As leituras de Marie são então “traduções” no sentido de que reproduzem uma mensagem já codificada, mas a recodificação paródica é menos a nível do código em si do que no do sentido: ela retoma as palavras mais ou menos exatas, dando-lhes, porém, um sentido diferente. Teddy, ao contrário, retoma o sentido mas muda as palavras. Marie efetua uma releitura da mensagem:

A releitura, operação oposta aos hábitos comerciais e ideológicos de nossa sociedade [...] é aqui proposta de início, pois só ela salva o texto da repetição (os que esquecem de reler obrigam-se a ler em toda parte a mesma historia), multiplica-o em sua diversidade e seu plural. (BARTHES, 2004, p. 11)

Essa prática renova a mensagem, oferecendo uma outra interpretação, diferente daquela que lhe foi emprestada pelo emissor. Eco afirma que uma “décodage aberrant”, longe de se conformar com as intenções do emissor, inverte seus expedientes. [...] [M]as pode ser uma maneira de mandar dizer à mensagem o que ela podia dizer ou até outras coisas que são interessantes e funcionais para os propósitos do destinatário (1985, p 241, n.2). A decodificação aberrante muda então o valor da mensagem sem mudar-lhe a forma.

Se Teddy procura a univocidade, Marie inclina-se pela plurivocidade. Assim, o poema africano que ela transcreve para Teddy mostra uma dupla natureza: “elle pensait que c’était peut-être une traduction parce que le premier vers de chaque couplet était un peu étrange : il ressemblait à de la prose ». (G.M., p.193) O estranhamento deriva do “entre-deux”, da presença do texto original dentro do texto traduzido, de tal forma que este último sobrepõe os gêneros poesia e prosa. O texto original parece perdido, alterado

e transformado por uma tradução/leitura que, enquanto trai o caráter poético do texto, empresta-lhe um segundo alento como prosa. Todavia, a tradução mostra-se, ao mesmo tempo sutilmente bem feita dentro de seu próprio erro, porque a presença de vestígios do original no texto traduzido contribui para o estranhamento poético. O poema de Marie, a despeito de uma transparência unívoca, abriga as duas línguas e os dois gêneros. Sua tradução imperfeita permite a dualidade. Como nos faz notar Sherry Simon, apoiando-se em Benjamin, uma tal operação:

projeta sobre o esqueleto lingüístico de um texto a luz de um outro idioma. Não pretende recobrir o original com a densidade de uma língua estrangeira, deixa transparecer sua forma. A tradução é assim uma construção de passagem, arcada e não edifício; transporta-nos em direção à reconciliação dos idiomas. (SIMON,1994,p. 62)

Dessa forma, ao invés de suprimir as marcas do Outro, os textos de Marie as cultivam. Seu procedimento instala uma dialética entre os dois códigos.

Da maneira pela qual Teddy a pratica, a tradução é uma operação mimética que visa sobrepor o novo texto ao original, reduzindo ao máximo as marcas do estranhamento. Mas a paródia de Marie estabelece com o original uma relação que tanto é mimética quanto transformadora. Para Annie Brisset, “[e]m sua acepção moderna, a paródia se define [...] como a retomada formal de um texto posta ao serviço de uma transformação orientada de seu conteúdo (BRISSET, 1985, p.192)

Se a tradução de Teddy busca suprimir a alteridade, a paródia de Marie nasce da coexistência do velho e do novo. Enquanto a primeira procura a transposição do sentido exato da mensagem para um outro código, a segunda muda o sentido da mensagem sem mudar-lhe o código. A paródia é sempre plurívoca porque o sentido original e o novo sentido convivem no espaço do texto:

o texto paródico só é reconhecido como tal se dá a ver, simultaneamente, seu hipotexto, quer dizer o texto imitado, e só significa dentro desse afastamento visível em relação ao texto que retoma. O que aproxima e opõe a tradução e a paródia é, portanto, o estatuto da mímesis que sustenta essas duas operações de reescrita. Entre tradução e paródia, a mímesis é um ponto conjuntivo e disjuntivo ao mesmo tempo. (BRISSET, 1985, 193)

Teddy e Marie praticam ambos a mímesis, mas de maneira diversa: enquanto o tradutor fracassa na tentativa de suprimir a pluralidade de vozes em seu trabalho de tradução, a moça subverte a univocidade dos textos e saboreia a liberdade e a pluralidade que cria.

Marie gosta de brincar com as palavras; essa atitude opõe-se à rigidez de Teddy, porque se ele pensa em aprisionar a língua, Marie a libera. Quando a moça fala de fazer “une ponce au gin”, por exemplo:

[Teddy] ne put s’empêcher de se demander si ce mot était une déformation de L’anglais « punch » ; si ce dernier se trouvait dans le Petit Robert ; s’il y avait une différence quelconque entre les mots « punch » et « grog » (POULIN< 1995, p. 37)

Do ponto de vista de Teddy, Marie deforma tanto o inglês “punch”, quanto o francês – pela integração da palavra estrangeira. Ela ultrapassa os limites do dicionário do francês standard64 e suscita em Teddy a dialética equivalência/diferença (“punch”/”grog”). O mesmo acontece quando Marie se diverte a respeito da cama do tradutor: “c’était plutôt comique de dormir dans un lit continental quand on est sur une île [...] Est-ce que tu m’invites sur ton continent? ( p. 63). Com essa frase ela evoca outros contextos da palavra “continental” e pluraliza seu sentido.

Marie chega mesmo a desfazer a atitude rígida do tradutor face a língua. Isso pode ser observado quando ela recita um texto da ficção científica: “Teddy avait fermé les yeux aussi, pour mieux écouter. Il les garda fermés jusqu’à ce que l’effet magique des mots de Bradbury se fût dissipé » ( p. 52). Pronunciadas por Marie, as palavras se tornam mágicas, evocadoras, capazes de transportar Teddy a um outro mundo. Agora, não é o tradutor que exerce seu controle sobre as palavras. Ao contrário, são elas que o conduzem a um mundo imaginário. Parece que as palavras de Marie deságuam no universo sem fim da linguagem.

Talvez seja essa atitude liberal por parte de Marie uma das razões pelas quais ela atrapalha o trabalho de Teddy, porque se a moça quebra a rigidez da língua, também o faz no que concerne aos hábitos do tradutor. Este confessa ao Patron qu’[il a] besoin d’être seul pour travailler » ( p. 96), porque a solidão favorece a univocidade. Mas a presença de Marie na ilha instaura o diálogo e perturba, por conseguinte, o emprego do tempo rigidamente determinado e o trabalho mecânico de Teddy, que começa a ter que se levantar mais cedo para poder cumprir suas tarefas e observar Marie enquanto esta nada (p. 40). Acaba negligenciando suas traduções para lhe preparar uma torta de biscoitos Grahan (p. 43) ou para acompanhá-la à “île aux Ruaux” (p. 66). De sua parte, Marie chega repentinamente no momento em que Teddy trabalha e acaba se abrigando na mesma casa que ele (p. 146). A solidão da qual necessita o tradutor desaparece, da mesma forma que a univocidade.

Marie destrói também não apenas a rigidez dos hábitos de Teddy, mas igualmente – indiretamente – a ordem que ele tenta impor à língua, já que ela enaltece a 64 Na verdade, segundo o dicionário digital Antidote, composto no Quebec, a palavra “ponce” é

identificada como um “québécisme” e recebe, entre outras, a seguinte definição: “bebida quente à base de álcool, água e limão, que se toma para combater a gripe”

revisão: “[l]a révision est une étape très importante, déclara-t-elle. Tu peux trouver des mots nouveaux, des mots qui n’avaient pas eu le temps de mûrir » (p.88). Ela dispõe o trabalho do tradutor à hesitação e à plurivocidade, pois, segundo ela, não há nunca uma versão final.

Além disso, Marie gosta de representar papéis, de dramatizar situações. Suas paródias dão um novo sentido – lúdico – às palavras já pronunciadas por outros:

A paródia é [...] repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa (HUTCHEON, 1989, p. 48)

Marie parodia então a literatura através da dramatização, subindo sobre a mesa da cozinha e assumindo o papel de uma princesa sacrificada ao dragão: “[j]e suis Sabra, la fille du roi, et cette fois le sort est tombé sur moi. Oh! terreur, il est trop tard pour vous échapper » (p. 81). Utiliza o texto literário para traduzir sua impressão de « cracher le feu » depois de ter comido um molho muito apimentado, recontextualizando as palavras e acrescentando-lhes um valor metafórico e um segundo sentido. O discurso sofre assim uma hibridização, “a mistura de duas linguagens sociais no interior de um só enunciado [...], o encontro na arena deste enunciado de duas consciências lingüísticas, separadas por uma época ou uma consciência social, ou pelos dois”. (BAKHTINE, 2010, p.175).

Marie parodia também as palavras e os gestos dos insulares. Quando o Autor tenta intimidá-la, interioriza seu olhar e o devolve a seu interlocutor para desconcertá-lo. (p. 120-121). Ela também “imitait à la perfection la voix suraigüe de Tête Heureuse et la façon qu’elle avait de laisser ses phrases en suspens et de compléter sa pensée en traçant des signes avec son petit doigt pointé en l’air » (p.92). Assim sendo, Marie é, simultaneamente, ela mesma e outra ; combina duas identidades em apenas uma. As palavras ditas por Marie não são mais as mesmas, todavia elas o são. Como assinala Ecco

descrevendo esse outro texto (ou texto Outro), conseguimos fazer a crítica do texto de origem ou descobrir suas possibilidades ou valores ocultos, isso não é surpreendente. Nada é mais revelador que uma caricatura, porque ela parece ser (embora não sendo) exatamente o objeto caricaturado. (ECO, 1985, p. 73- 74)

Marie fala frequentemente por metáforas65; serve-se de histórias para se comunicar com Teddy de maneira indireta. A narrativa sobre Toussaint Cartier conta a história de um eremita que vive sozinho numa ilha e morre sem que ninguém perceba, mas Teddy se dá conta de que – como já dissemos anteriormente – trata-se de um aviso endereçado a ele mesmo: “les questions que tu te poses, ça concerne la vie et le travail? C’est ça que tu veux me dire? (p. 101). O mesmo acontece com a história do grande Onychoteutis: um cachalote66 tem que decidir se quer lutar contra o inimigo mais temido do mar ou se deve ceder e fugir. Desta vez, Teddy participa da história, identificando-se com o cachalote e decidindo mesmo quanto ao final: “[é]coute, dit-il, c’est mieux que je te dise tout de suite: il n’y aura pas de bataille. Le vieux cachalot [...] dit adieu et bonne chance au grand Onychoteutis [...] j’ai pas d’agressivité » (p. 190- 191). O fato de, nas histórias de Marie, confundirem-se o sentido metafórico e o sentido literal faz ressaltar a dualidade da língua. A atividade da moça é, portanto, complementar ao trabalho de Teddy, no sentido de que ela também opera transposições na língua, mas seu objetivo é oposto ao do tradutor. Enquanto este fracassa por desejar a univocidade, sua companheira cultiva o plural, a existência de vários discursos nos textos que produz. “A linguagem das margens e das fronteiras assinala uma posição de paradoxo: tanto dentro como fora” (HUTCHEON, 1991, p. 95). Se o discurso híbrido de Marie privilegia as margens, é perfeitamente natural que essa “marginale” instaure o dialogismo nos textos que elabora. Como assinala Linda Hutcheon:

a paródia parece ter-se tornado a categoria daquilo que chamei de “ex- cêntrico”, daqueles que são marginalizados por uma ideologia dominante. [...] a paródia estabelece uma relação dialógica entre a identificação e a distância. (HUTCHEON, 1991, p.58)

Parodiar é, portanto, apropriar-se da cultura dominante e subvertê-la pelo uso da ironia e do humor. Não se trata de rejeitar essa cultura, porque isso não seria possível, mas endereçar-lhe um olhar crítico com vistas à sua reformulação.

65 A metáfora é um “entre-deux”: “todo sentido metafórico é mediato, se considerarmos que a palavra é

um signo imediato de seu sentido literal e um signo mediato de seu sentido figurativo. Falar por metáfora é dizer alguma coisa “por meio” (through) de um sentido literal qualquer” (RICŒUR, 2005, p. 289)