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3. DESLOCAMENTOS ESPACIO-TEMPORAIS 1 AS GRANDES TRAVESSIAS

3.2. SOBRE A CIDADE

3.2.2. O FLÂNEUR, ESSA IMPOSSÍVEL FIGURA

O flâneur é uma invenção parisiense do século XIX. Surge no contexto de uma literatura já industrial17 e liga-se ao aparecimento na França, na primeira metade desse século, de pequenos livros ilustrados, distribuídos em grande escala, designados genericamente como Physiologies. Esses textos tratam dos mais diversos temas relativos à sociedade, frequentemente com leveza, originalidade e humor e se apresentam como uma mistura de estudo de costumes e tratado científico. Algumas physiologies comentavam a frequência dos lugares públicos parisienses – os teatros, os

17 A literatura de produção de massa tem suas origens nas publicações dos folhetinistas e romancistas do

século XIX. No alvorecer da era industrial, os livros, a partir de então mais baratos em função dos novos processos de fabricação, tornam-se accessíveis a um número considerável de leitores que não mais se concentram em uma elite culturalmente favorecida. Segundo Anthony Grinoer (2009), o editor Pigoreau no Cinquième supplément à la petite bibliographie biographico-romancière de1823, afirma que, no século anterior, escritores como Lesage, Prevost, Diderot escreviam “para esses felizes ociosos que, no canto de suas lareiras durante as longas noites de inverno, ou em seus bosques durante a bela estação, faziam dessas leituras sua distração favorita” (PIGOREAU, apud GRINOER, 2009). Para o editor de romances, entretanto, tudo havia mudado: “hoje todo mundo quer escrever; todo mundo quer ler” (Ibid)

cafés , os bailes, o Champs Elysées – outras descreviam objetos e acessórios da moda em relação à atualidade política e cultural – as physiologies da luva, do guarda-chuva – outras ainda elegiam, como tema, categorias de pessoas, transformadas em tipos sociais, tais como o burguês, o estudante, a cortesã, o músico, o flâneur.

Pode-se considerar que as physiologies se conectam ao que Benjamin nomeia como “perda da aura”, pois consistem em reproduções ou cópias, em mais de um significado do termo. Como mercadorias destinadas ao consumo de massa, seu valor comercial prende-se ao fato de que podem ser reproduzidas a baixo custo e em quantidade correspondente à demanda. Mas as physiologies são também cópias em outro sentido, ao pretenderem ser representações precisas, embora satíricas, dos tipos sociais da época. Se por um lado não era difícil apreender alguns tipos como o estudante ou a cortesã, o flâneur, polimorfo e proteiforme, não se deixava capturar tão facilmente. Régine Robin (2005) fala das dificuldades encontradas por Louis Huart para defini-lo, na sua Physiologie du flâneur, publicada em 1841. O autor tenta, primeiramente, partir de uma definição negativa, evidenciando o que o flâneur não é:

O flâneur não é nem um corcunda, nem um coxo, nem um obeso. Não faz parte também da categoria das pessoas ricas, dos devedores, ou da dos “velhinhos”, dos que vivem de renda ou dos flâneurs de domingo que podem ser encontrados em Monmartre e, menos ainda, dos “assentados”. (ROBIN,2005,p. 41 )

O flâneur também não é o caminhante-filósofo – cujo modelo literário pode ser encontrado no mundo clássico e, mais recentemente em Rousseau – que procura no contato com a natureza um estímulo à meditação e aprofundamento da interioridade. Trata-se de um dandy, dotado de uma inteligência crítica, movido por uma curiosidade insaciável pelo espetáculo diversificado e transitório da metrópole moderna. Nas malhas do tecido urbano, distingue-se claramente da multidão graças à sua faculdade de interpretar o cenário da cidade, transformado a seus olhos em um texto ou um enigma a decifrar. Pode ser reconhecido, ainda segundo Huart, por sua elegância excêntrica – caminha sem pressa, impecavelmente vestido, com sua bengala dentro do bolso – e por sua postura irônica em relação aos demais.

Com seu caráter preguiçoso, ocioso, improdutivo, o flâneur questiona a lógica de uma sociedade burguesa fundamentada sobre o trabalho, a produtividade e a ordem social. E, no entanto, ele se move. Assim como o viajante de outrora – o peregrino, o nauta, o corsário – que atravessava indômito os grandes espaços do planeta, esse personagem que dialoga com a solidão e a liberdade, fruto da modernidade da grande

cidade – ou da Paris do século XIX, a cidade por excelência, a capital emblemática das grandes transformações – viaja também no espaço urbano, fazendo das ruas, morada do coletivo, a sua própria moradia e da cidade, o seu templo. Não existe sem a multidão, porém não se confunde com ela, pois, perfeitamente à vontade no espaço público, caminha por entre os passantes agudamente consciente de si próprio e do ambiente que o cerca.

Mas não é apenas o espaço físico da cidade – seus edifícios, estações ferroviárias os “grands magasins”, as salas de exposições – que interessa ao flâneur; é também a sua história: “cada rua é uma ladeira que desce em direção ao passado – o dele e o da cidade” (ROUANET, 1993, p. 22). Submetido ao ritmo de seu próprio devaneio, embora atento ao ambiente urbano que o envolve, é conduzido pela flânerie a um tempo desaparecido. É que, mesmo se sentindo em casa na cidade, a ela dirige um olhar estrangeiro, afastando-se dela para mirá-la de longe, em sentido de tempo – o que a transforma numa cidade antiga – e em sentido de espaço – o que faz dela uma cidade exótica. Trata-se, de um passeio pela modernidade, mas como essa pode ser ao mesmo tempo objetiva e fantástica, a viagem do flâneur através das ruas da cidade, é simultaneamente real e imaginária. Talvez fosse melhor dizer que ela se situa entre dois níveis da realidade: a realidade desperta e a onírica, a vigília e o sonho.

É possível, portanto, identificar no comportamento do flâneur duas características que o conduzem a situações que se podem conceber como opostas: se de um lado é ele, por sua observação minuciosa da realidade urbana, o “detetive” das ruas, aquele que se demora nos cafés numa apreciação distanciada da massa informe e anônima, sob um outro ângulo, a atitude desse personagem está também ligada à excitação de sair da solidão individual e se misturar à multidão. Em seu poema “À une passante”, Baudelaire – responsável pela consagração literária do flâneur, durante os anos 40 do século XIX – descreve a situação típica dos (des)encontros das ruas. Nesse soneto, o narrador experimenta o sentimento de estranheza próprio àquele que comunga com o anonimato das multidões e se dirige a alguém que passa, uma mulher de quem ele ignora a proveniência e o destino. Essa desconhecida, cuja aparição é como um clarão fugaz e repentino, encarna o amor que, segundo Benjamin (1996), o habitante da cidade grande vota à multidão.

La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,

Une femme passa, d’une main fastueuse Soulevant, balançant le feston et l’ourlet

Un éclair... puis la nuit! – Fugitive beauté Dont le regard m’a fait soudainement renaître,

Ne te verrai-je plus que dans l’éternité ? [ ...]

Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais! ( BAUDELAIRE, 1972, p. 162)

Os encontros na multidão, onde reinam o acaso e o provisório, nunca se cumprem. O verdadeiro encontro não se completa jamais: é indefinidamente adiado, porque substituído pela multiplicidade, pela efervescência da multidão, pelo gozo intenso de fundir-se a ela.

Em Baudelaire, flânerie e escrita se aproximam e pressupõem, o recurso a uma nova forma literária, o poema em prosa, para a qual ele próprio fornece um modelo de referência com Le spleen de Paris cujos textos curtos, comparáveis a cenas, a instantâneos tomados ao acaso na multidão, revelam tanto a fragmentação das experiências da deambulação quanto as inspirações súbitas que residem na base da escrita. Esse fragmento de “Les foules” fala desse sentimento amoroso que mistura, num mesmo impulso, poesia e vida, distância e comunhão com a multidão que passa:

Ce que les hommes nomment amour est bien petit, bien restreint et bien faible, comparé à cette ineffable orgie, à cette sainte prostitution de l’âme qui se donne toute entière, poésie et charité, à l’imprévu qui se montre, à l’inconnu qui passe. (BAUDELAIRE, 1997, p. 21)

Baudelaire, ele próprio figura exemplar do flâneur, é o poeta de um mundo em transformação, em ruínas. Se desse mundo despedaçado da modernidade só restam fragmentos, vestígios, traços, cabe a ele juntá-los e colecioná-los, como um chiffonier que recolhe as sobras da sociedade – o que ela despreza e destrói – retomando esses objetos decaídos para trazê-los novamente à vista como algo socialmente valorizado.

Elemento central da poética baudelairiana, a metáfora da cidade como texto remete explicitamente ao papel do flâneur como leitor e intérprete da cena urbana. Trata-se de um arquétipo que continua a manifestar-se em formas e experiências literárias as mais diversas – do romance realista às vanguardas – que, desde a segunda metade do século XIX, a ele se referem para designar o tipo de personagem que se regozija ao palmilhar o espaço urbano. Os surrealistas, principalmente, fizeram da liberdade de movimento e do acaso, como princípio, uma atividade artística e um método de trabalho. Passear sem um fim determinado é uma ação liberadora do imperativo alienante do produtivismo e permite subverter e renovar as percepções da realidade na tentativa de reconciliar a vida cotidiana com as pulsões e os desejos inconscientes do indivíduo. A “vagabundagem” dos surrealistas, entretanto, difere do

alegre deambular do flâneur huartiano, “o único homem feliz que existe sobre a terra” (HUART, 1840, p. 82) e afasta-se da ideia original da flânerie, uma vez que o caminhante surrealista, em sua procura quase febril de uma ruptura da ordem das coisas ou na perseguição de um alterego feminino quimérico – como em Nadja de Breton –, parece condenado a uma insatisfação indefinida a uma incompletude permanente que pode ser, talvez, a condição necessária para se habitar a dimensão do eternamente possível.

Pois foi exatamente a leitura dos surrealistas18 que inspirou a Benjamin seus estudos sobre a “literatura panorâmica”19, um conjunto de textos em que o flâneur se distingue como uma das figuras mais representativas da Paris do século XIX. Benjamin chama a atenção para o valor crítico desse personagem que, no alvorecer da modernidade urbana, se caracteriza por uma ambiguidade fundamental, dividido entre o desejo da burguesia de ascensão social e a tendência contrária de se confundir com a multidão e nela se dissolver. A caminhada sem um fim determinado, a deriva, possui um valor político, pois consiste em uma forma de resistência aos mecanismos de controle acionados pela sociedade industrial e a recuperação, na atualidade, desse arquétipo sobre o qual Benjamin se debruça ao desenvolver a noção de “literatura panorâmica” revela-se útil para a análise das transformações que sobrevieram à cidade contemporânea. Personagem central também na reflexão sociológica ou no debate sobre o desenvolvimento urbano20, o flâneur passou de figura individual a uma categoria crítica para indicar uma possibilidade de existência no espaço da modernidade. Na literatura, esse personagem oriundo da tradição literária do século XIX tornou-se uma referência para os autores que fizeram da relação entre o indivíduo e a cidade um elemento primordial em suas obras. O flâneur permanece como símbolo de uma atitude crítica e contemplativa, rigorosamente individualista, face à realidade urbana. As características que definem a flânerie parisiense – a liberdade de julgamento e observação do caminhante, seu esforço para ler e decifrar o espaço urbano como um texto e a correlação entre a deriva e a escrita – encontram correspondência em modelos

18 Em 1929, Walter Benjamin evoca o surrealismo, esse desencadear da imaginação, como o “último

instantâneo da inteligência europeia”. (DIDI-HUBERMAN, 2010)

19 O “Panorama” consistia em uma grande tela circular e contínua, pintada de maneira enganosa sobre as

paredes de uma rotunda iluminada por cima e que representava uma paisagem. Tratava-se de um divertimento que, como a literatura industrial, destinava-se ao grande público. Daí a analogia estabelecida por Benjamin.

20 A esse respeito, podemos citar, como exemplo, os trabalhos de Michel de Certeau, A invenção do cotidiano 1: artes de fazer, e de Zigmunt Bauman, O mal-estar da pós-modernidade.

literários ao longo do tempo, o que nos permite imaginar uma linha que, partindo de Baudelaire se prolongaria até os nossos dias.