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5. ESTUDO DE CASO: MILTOS MANETAS, PINTOR DO ALTER-REALISMO

5.3. Análise comparada e gráfico dos procedimentos desviantes

5.3.1. O desvio como divergência em Manetas

Em realistas como Courbet, no século XIX, a tradução pictórica da realidade, mesmo dada a orientação social de seu realismo, salientava de forma mais contundente a faceta visível e tangível, ou material, da equação “cultura material x cultura imaterial”, em direção ao fenótipo/tangível/analógico/pictórico/coisa como signo, mas como objeto; num simbolismo entre o real bruto e o real fabricado. Já no século XXI, a figuração, no entendimento da tese, salienta de forma mais contundente a faceta invisível e intangível, ou imaterial, da equação, em direção ao genótipo/intangível/digital/software/infrapictórico/coisa como signo, mas como

Não são pois polos, mas diferentes ênfases sobre distintos pontos do paradoxal escopo da pintura, que representa o mundo de forma sígnica, ou seja, utiliza a representação do visível (quando figurativa) ou a apresentação do visível (quando “abstrata”) para evocar conteúdos mais ou menos inefáveis. Nas palavras de Manetas, este escopo paradoxal pode ser abarcado no lema “Da tela(screen) à natureza e de volta, de novo” (tradução nossa para “From screen to nature and back again.” Para a tese, o escopo da pintura alter-realista poderia ser adaptado deste lema a outro: “Da pintura ao

digital e de volta”, ou “Do software para o hardware e de volta, e de volta...”.

Temos então, neste incremento de natureza, um incremento de realidade, o que implicaria um novo realismo. O problema, em relação a uma pintura como a ilustrada na Figura 48 , é que ela nos mostra realmente um infrapictórico novo, constituído pelo

software e configurado pelo hardware que o traduz; mas o faz processualmente de forma

similar à empreendida por Courbet um século atrás. Se o computador propicia um “infoleisure” (“lazer informático”), ele também impõe um “infowork” (trabalho informático), situação temática que sensibilizaria Courbet.

Em suma, o infrapictórico desta pintura é novo em sua tradução do digital, mas

seu pictórico, não.

Figura 48.: Patients. The Architect with his Laptop. Óleo sobre tela. 1995 Fonte: manetas.com. Acesso em: jul. 2017.

Em outros termos, o alter-realismo está aqui, mas não em todo seu potencial desviante. Interessante a este propósito notar como um “realismo social” focado na crítica ao establishment cultural e artístico, faceta do establishment social, é operado por Manetas não tanto em suas pinturas, mas no uso “ativista” da própria internet.

Em 2017, a Edição 14 da Documenta de Kassel foi parcialmente transplantada por seus organizadores para uma sede paralela: Atenas, capital do país de nascimento de Manetas. Controversa desde o início, a iniciativa foi criticada basicamente por falta de empatia com a realidade de grave crise econômica e social na Grécia - e como

“paternalista”, “populista” e “hipócrita”. Graffiti tomaram conta das ruas, dizendo um dos mais influentes que “não me deixarei exoticar [sic] para aumentar o seu capital cultural. Assinado: o povo”. A mostra foi inclusive batizada pelos seus críticos como “Crapumenta”, num jogo de palavras com “crap” (“excremento”). Manetas participou ativamente destas críticas à Documenta 14, transformando seu site numa grande plataforma para a expressão de posicionamentos seus e de outras personalidades. O site do artista, irônica e contundentemente, diz:

A Documenta 14 representa o esforço do ideário 'Total North' em apagar os resquícios terríveis do Sul ao gentilmente hipnotizar este, incorporando-o, modulando-o em algo como uma aceitável cultura de masssa. Uma maratona de tristeza e comiseração, a Documenta 14 toma lugar em Atenas. De lá, ensinará o mundo e os gregos algo renovadamente patético a cada dia. As intenções desta Documenta oscilam entre o pedagógico e o ético e seu moto operacional é TELIC: 'Chegaremos a nosso destino final'. A Europa, seus artistas e convidados iluminarão o planeta, com a lição vinda de Atenas, de onde todo maravilhoso ensinamento se origina157. (manetas.com, em julho de 2017).

Desde bem antes Manetas vinha criticando a “arte contemporânea” como “arte do século passado”. O episódio da Documenta 14 acentua o posicionamento do artista. Posicionamento em muitos aspectos contraditório, pelas estreitas relações que o artista mantinha com membros da equipe grega de recepção da mostra, bem como por sua própria participação em mostras de “arte contemporânea” que o tiveram como “artista contemporâneo”. Os posicionamentos e a própria posição do artista podem dar margem a pontuais ambivalências, mas o princípio de (também) defender uma arte para além das instituições vigentes encontra forte e continuada comprovação na prática.

Assim, se as internet paintings tematizam a rede mais como um problema de pintura, o ativismo do artista tematiza a rede mais como um problema da instituição arte e da própria ideia de instituição. Notavelmente, a pintura se inscreve como um tema transversal a lidar com todas estas inquietações do artista, o que se infere de declarações como: “Como se programa uma vida? Pintando-a”.

O artista está ciente do status problemático da pintura em relação à “arte contemporânea”. Ao impor um outro ritmo temporal às internet paintings, Manetas

157 No original: Documenta 14 represents Total North's struggle to erase the dirty and horrible leftovers of the South by gently hypnotizing it, incorporating it, fine-"tuning it into some kind of acceptable mass-culture. A marathon of sadness and misery, Documenta 14 takes place in Athens. From there, it will be teaching to the Greeks and to the World something newly pathetic everyday. The intentions of this Documenta fluctuate from Educational to Ethical and its operational moto is TELIC: "We"ll reach our final destination". Europe, it's artists and its guests for yet another time are giving their lesson to the planet, a lesson coming now from Athens, the place where all the wonderful teaching started.

dinamiza a aura mesma da pintura . Se Jorn produziu uma pintura desviada, Manetas produz uma pintura transviada, no sentido de transformada, ou melhor, metamorfa.