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5. ESTUDO DE CASO: MILTOS MANETAS, PINTOR DO ALTER-REALISMO

5.2. Aspectos desviantes e não desviantes da pintura alter-realista na

5.2.1. Manetas temático

5.2.1.2. O software alter-realista

Se o hardware é a face material do digital, o software seria sua face imaterial, lógica e “cultural”. Por sua novidade, simboliza mais fortemente uma época e uma sociedade que, basicamente, “tecnologizou” a cultura do espetáculo. Aparentemente louvando tal cenário, Manetas reproduz, por exemplo, a “imagerie” tipográfica dos signos verbais apresentados na internet, mas com pinceladas “sujas”, opacas, sem contorno definido (como na Figura 37). Impõe às luminosas, precisas e cambiantes imagens da semiosfera digital a corporeidade viscosa da pintura.

Figura 37.: 4:44. Óleo sobre tela. 2013. 20cm x 15cm Fonte: facebook.com/miltosmanetas. Acesso em jul. 2017.

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“...Courbet, the prophet of Realism, was making history by calling his painting “a real allegory”. Instead of the old symbolic figures, he was painting people from real life - not just those writers, thinkers and poets that had influenced him (Proudhon, Baudelaire, Champfleury), but also priests, prostitutes and workers. All of those people portrayed were based on real, living characters, but also carefully chosen to tell a story [Grifos nossos] - Courbet wanted his paintings to display his thoughts about society at that time...” (AMAN In MANETAS, 2011: 64, em tradução nossa.).

Assim, quando Manetas pinta uma tela de busca do Google, ele está por um lado cedendo ao enorme poder deste agente simbólico contemporâneo, mas também está, ao mesmo tempo, elaborando formas mais ativas de reação “discursiva”, ao determinar

quais os dados textuais que a representação dará a ver. O digital, ainda que

metaforicamente e tematicamente, se torna “matéria plástica”; se torna “munição”. Por falar em ativismo, o Manifesto Neen (transcrito na íntegra no Apêndice) se apresenta como um verdadeiro ponto de convergência do pensamento do artista, iluminando tanto sua produção anterior quanto a subsequente, em retrospecto. Por coincidência, o texto data do ano 2.000, simbólica baliza entre distintos períodos e visões convencionados sobre a arte, a cultura e sua inter-relação.

Neen é uma palavra bi-facetada. Neen, como Jano, contém o círculo do tempo e da vida e, assim, o futuro da arte. (...) Os conceitos, do século passado, de ciberespaço, arte contemporânea, moda e estilo chegaram junto conosco ao nosso presente e significam agora o que significavam então, mas de forma diferente. Este universo está animado de uma forma diversa da anterior a 2.000 e Neen é, definitivamente, um elemento deste novo mundo animado. (The Neen Book, 2006. In www.manetas.com, a 06/06/2017, em tradução nossa) [e] Em grego antigo, Neen significa “exatamente agora”: este momento e não um segundo depois143 (MANETAS, 2011 :44).

Para Manetas, a “arte contemporânea” está (ainda) para um Sistema das Artes visto como janela, enquanto NEEN, a arte após a Internet, está para a tela (“screen”), para o mutável, o errático, o anônimo, o pirata, o website como obra de arte. Nos termos de Bourriaud (ao falar - por ironia - da “arte contemporânea”), está para o radicante (ou

sem raízes). A face inexpressiva do usuário em Manetas ecoa o sorriso da Mona Lisa em

G. C. Argan: nada expressa em particular porque tudo congrega; toda a complexidade e completude do ser. Aparentemente imóvel, como um computador online, é a ponta de um iceberg de estados de espírito.

Em Manetas, a tradicional representação da sociedade industrial (como uma “sociedade do hardware”) é desviada no sentido de uma representação da sociedade da informação (como uma “sociedade do software”, mesmo que percebida graças ao

hardware). Como elemento de continuidade, temos a persistência da representação.

Como elemento de desvio, a evocação infrapictórica do software enquanto dimensão cultural cognitivamente ubíqua, mas perceptualmente subliminar ou mediada; de

143 No original: Neen is a two-faced word. Neen, like Janus, contains the circle of time and life, therefore the future of art. (...) Last century’s concept of cyberspace, contemporary art, fashion, and style slipped together with us into our present day and they are now the same they were before, but still a bit different. This universe is animated in a different way than the one before 2000, and Neen is definitely an element of this newly Animated World.

qualquer modo, filtrada ou indireta. A hipótese do desvio parcial da pintura alter-realista, aqui, parece novamente se impor.

Manetas pinta tanto cabos USB quanto informação textual e imagética traduzida dos softwares nas telas de computador. Mais que uma oscilação entre hardware e

software, temos aqui na verdade o agenciamento de um “continuum” em que a

dimensão material dos artefatos pode sinalizar (ou melhor, simbolizar) seu substrato informacional invisível e este, por sua vez, pode simbolizar a dimensão cultural de uma sociedade absolutamente permeada pelo software.

Ainda que invisível, tal estado de coisas (e fluxo de signos) “está lá”; é um invisível real (independentemente de seus diversos graus de virtualidade). Isto, de resto, justifica mais uma vez o entendimento da obra de Manetas como realista, deixando aberta inclusive a consideração sobre o registro de diversos níveis de realidade, graças ao citado “continuum” entre hardware e software.

De resto também, tal estado de coisas confirma o entendimento de que a usual distinção entre cultura material e cultura imaterial, se em algum momento fez sentido, parece não mais fazer neste momento. Esta indistinção se insinua inclusive como fator de entendimento da experiência de interface humano-computador como uma experiência de imersão.

Em suma, podemos entender a mudança representativa em questão como um desvio da representação de movimentos dinâmicos para a representação de “movimentos estáticos144”, mesmo que entendidos de forma figurada. Este tipo de ação

que aqui se propõe como estática, marcada por uma dinâmica mental e emocional própria de um corpo aparentemente inerte, é bem exemplificado na observação de um jogador de “videogame”.

Um personagem de videogame não é apenas o cartoon que vemos na tela. O personagem inteiro é uma criatura compósita: é aquele cartoon juntamente com o jogador145 (MANETAS, 2011: 41, em tradução nossa.).

O software alter-realista em Manetas, infrapictoricamente, aponta para a realidade de uma “sociedade digital” de tal forma atulhada de signos e sentidos, que sua

144“De certo modo, a estaticidade é uma propriedade altamente específica, pois só se apresenta para referenciais

muito especiais, de modo que o comum é que em qualquer situação, possamos atribuir movimento ao objeto em análise”. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento, a 16/06/2017).

145 No original: A videogame character isn’t just the cartoon we see on the screen. The complete character is a combined creature: it’s that cartoon together with the Player.

expressão, ou melhor, sua expressividade, é mais figurada pelos “emoticons” utilizados pelos usuários do software do que pela face real destes mesmos usuários. Isto nos leva ao ponto da interface humano-computador.