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4. TEORIA (DO MÉTODO): O REALISMO COMO DESVIO

4.1. Por "uma" história da arte: iconologia, micro-história e história serial

4.3.2. O digital

Não importa o que ele [artista] faça; se ele se dirige aos seus contemporâneos, deverá responder às inevitáveis questões colocadas por este novo sistema de figuração, de percepção e de conceito de mundo, que é a simulação numérica. COUCHOT (2003:308) Contra o consenso que o digital impõe, mesmo aos setores da sociedade preocupados com alguma manutenção da tradição, a visão de uma experiência estética

- pode enfim contornar o suposto embate entre analógico e digital, redimindo assim a pintura de sua “crise” e abrindo a ela, pintura, a possibilidade de demonstrar pertinência na contemporaneidade. Aqui faz-se necessária uma ressalva talvez relativamente tardia, mas de qualquer modo até aqui implícita: a de que a presente defesa da pintura desviante deve reconhecer também a proposição, entre os próprios defensores da artemídia, de um desvio também a ela próprio:

Existem, portanto, diferentes maneiras de se lidar com as máquinas semióticas cada vez mais disponíveis no mercado eletrônico. A perspectiva artística é certamente a mais desviante de todas, uma vez que ela se afasta em tal intensidade do projeto tecnológico originalmente imprimido às máquinas e programas que equivale a uma completa reinvenção dos meios. (MACHADO, 2007: 13).

A tese reconhece este propósito de "humanizar as tecnologias". Pressupõe, contudo, que é também possível reinventar um meio (o digital, por exemplo) a partir de outro (o da pintura analógica, por exemplo), numa possível reinvenção recíproca.

Na prática e na realidade presentes, contudo, os sectarismos persistem, daí os desvios. Um desvio, neste sentido, é definido por sua diferença e oposição em relação a um fator visto ou como inicial, ou como normal, ou como bom. A valoração associável ao desvio será então tributária da valoração associável à origem, ou àquilo “do que se desvia”. A tomar pela acepção mais genérica possível, a do dicionário (Buarque de Holanda, 1990), tal valoração da origem enquanto normalidade será positiva sob um ponto de vista conservador – e negativa sob um ponto de vista “irreverente”.

O desvio alter-realista respeita o digital, mas não o reverencia, pelo que segue o caráter de irreverente. Sendo assim, qual destas três dimensões (normal, inicial ou bom) o desvio alter-realista associa ao digital? Pressupondo que o digital pode ser bom, é preciso reconhecer que ele se afigura como normal no sentido de normativo.

Desviar desta normalização em termos de divergência ou ruptura é possível (ou pensável), mas esta tese propõe um desvio visto como síntese dialógica, dissociado da ideologia vanguardista da ruptura sem por isso incorrer numa visão nostálgica, segundo a qual a “ditadura do digital” não possui nenhum aspecto positivo.

Em termos mais “técnicos”, os processos computacionais de "sintetização" (gênese) e "digitalização" (gênese e/ou veiculação) das imagens, ao exponenciar os efeitos da reprodutibilidade técnica das imagens, configuram o estado mais avançado e agudo de uma sucessão de transformações protéticas na arte pictórica. Na contemporaneidade, o grau de hibridação proporcionado pela digitalização das imagens

legitimaria ainda mais a progressiva indiferença pela busca das especificidades da pintura ou de qualquer outra “linguagem”. Esta nova pintura expandida, além de hibridizada com outras artes e com o “mundo da vida”, estaria convergindo para uma nova base digital de hibridação que tudo absorve, contamina e simula, deslocando a arte para um novo regime da imagem: o da simulação numérica. Este regime como que direcionou o pictórico, hoje, mais para a publicidade que para a pintura. Esta não cessa de lidar com os juízos sobre seu passamento, como este, de um pintor, já em 1946: "Vivemos numa era mecânica, na qual gesso e tinta sobre tela não mais significam. (...) A velocidade se tornou uma constante na vida da humanidade"110. (FONTANA, Lucio, 1946,

In.: BELL, 1999: 124).

Em termos mais “críticos”, a tese relembra a flexibilização deste ponto de vista segundo o qual a pintura estaria fadada a ser absolutamente absorvida pelo computador enquanto metameio (Manovich, 2013), aqui contraposto a uma metatécnica focada no infrapictórico da pintura alter-realista. Dito de outro modo, a simulação não constitui, aqui, a alternativa obrigatória da representação.

A noção de digitalização, como raiz da simulação numérica, é sabidamente mais ampla do que a sua apropriação pelas atuais tecnologias. Aicher atribui a Descartes a primeira grande formalização de uma lógica digital, ao abstrair o funcionamento físico dos fenômenos de sua tradução matemática, em sistemas de coordenadas binárias, sendo interessante notar como este processo se avizinha da discutida noção de representação enquanto “ideologia de domínio da realidade”.

Quando o pintor pernambucando Paulo Meira reproduz em pintura uma folha de papel pautado, é a tecnologia da escrita que vai ali representada, entre outros sentidos. Assim, paralelamente à consideração da distinção geral entre o digital como ferramenta ou como meio, é necessário considerar a presença do digital na pintura de três formas básicas possíveis: ou como tematização; ou como influência processual indireta; ou

como influência processual direta.

A influência processual direta respeita os casos de “pintura digital” em que o acabamento pictórico é realizado não pelo pintor, mas por uma impressora. A diferença entre um pincel e uma impressora pode ser questionada, considerando ambos como próteses. Uma vez que a tese considera o vínculo mecânico entre o pincel e o corpo do pintor como matizador desta natureza protética, vai aqui desconsiderada a modalidade

110

No original: We are living in a mechanical age, in which plaster and paint on canvas are no longer meaningful. (...) Speed has become a constant in the life of mankind.

de influência processual direta, restano a discussão das possibilidades de tematização e de influência processual indireta.

Ao mesmo tempo, cruzando transversalmente esta oposiçaõ, está a citada dimensão da veiculação digital, que pode permear ou não o processo poético desde o início. Teríamos então uma veiculação digital poética e uma veiculação digial

instrumental. Estes dois pares de critérios serão tidos em conta, em seu cruzamento, na

presente análise da influência digital sobre a pintura alter-realista.