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5. ESTUDO DE CASO: MILTOS MANETAS, PINTOR DO ALTER-REALISMO

5.0. Preâmbulo

Figura 19.: ZIP DRIVE AND JOYSTICK. 1998115. Figura 20.: CAT PANTIES. 2005.

Figura.21. (reproduz 3.): DOGS AND CABLES. 2008. Figura 22.: NOW FROM THE SCREEN (SKYPE). 2010.

O último Capítulo propôs uma reavaliação da noção instrumental de técnica, em favor de uma técnica vista como dimensão poética. Esta nova techné afasta a pintura da

reprodução como reprodutibilidade (cópia infinita), assim como a afasta da reprodução

como “imitação” (cópia objetiva). Baseado em Heidegger (2007), o termo original techné, a despeito de sua complexa fortuna crítica, foi instado a sugerir mais um “saber sobre o

que se faz” do que um “saber fazer”, sendo a natureza deste saber, por parte do artista,

o grande crivo a direcionar interpretações como a que se busca estruturar aqui.

Os Software Studies advogam a consideração de outras camadas de realidade atuantes na contemporaneidade, para além de sua dimensão tangível e visível (ou para além do hardware). Uma tela/screen pintada, como na Figura 22, representa, graças ao que dela sabemos, fluxos de informação digital cuja natureza física íntima é invisível no quadro. Tanto no seu referente real como na representação pictórica deste referente,

115 As pinturas reproduzidas nesta página (Figuras 5.1/5.4) referem-se à ilustração descrita na última página: “De forma similar à introdução da tese, o capítulo inicia com uma ilustração prévia de quatro pinturas de Manetas (vide)”. Se não especificado, todas as imagens do Capítulo reproduzem óleos sobre tela e foram acessadas em www.manetas.com , de setembro de 2016 a junho de 2017.

tais fluxos nos são inacessíveis sensorialmente, estando porém lá - e traduzidos em estímulos visuais visíveis (letras, por exemplo). Letras, por exemplo, traduzidas na tela do computador graças à cor-luz cambiante dos pixels - e traduzidas por sua vez na pintura graças aos contrastes fixos da cor-pigmento, em nada cambiante.

A natureza física íntima (“infra”) de tais fluxos de informação não é a única presente indiretamente na pintura. Seu imenso impacto social e cultural também é mais sabido do que visto, ainda que “iluminado” quando dado a ver pela pintura.

De forma geral e a princípio, a questão de como se dão as partilhas de sentido entre arte e realidade parece ser uma questão incontornável. A tese busca delinear como dinâmicas específicas entre realidade e arte (pictórica) se manifestam em Manetas, sem pretensão de necessária generalização.

Aqui, o saber que incide sobre o fazer e nele se concretiza ultrapassa a clássica estrutura poética de uma representação pautada num “saber” conclusivo (saber reproduzir), supostamente clarividente, positivo e focado num “fazer/poder”, em direção ao ordenamento de um “saber” inconclusivo e “tateante”, ocupado mais com um “fazer- buscar”, ciente do caráter ficcional da representação. Este outro saber se alinha mais à experiência que ao conhecimento - e mais à criatividade construtiva que à produtividade, estando associado, inclusive, a um relativo “não-fazer”:

Para tal poética, a falibilidade humana (em geral e, em particular, no “registro/domínio objetivo da realidade”) é dimensão a ser endereçada e não renegada. Numa era digital, a ciência desta falibilidade humana facilmente transita da percepção do humano para a de suas próteses técnicas. O artista diz que

Sim, eu gosto dos erros, bugs e falhas do funcionamento dos computadores tanto quanto de suas habilidades e performances. (...) O assunto principal que busco representar com meu trabalho é o momento em que a habilidade padece116 (MANETAS, 2011: 10).

Se a tese propõe uma ressignificação do conceito de techné como um “fazer necessariamente e conscientemente imperfeito” e se Miltos Manetas testemunha com tamanha veemência e frequência seu fascínio pelo que os computadores (enquanto

hardware e software) apresentam de ineficiente, em suas falhas - temos que uma

“techné alter-realista” irá relacionar este “falhar”; este “não-fazer” das máquinas, ao

116 No original: “Yes, I like mistakes, bugs, and failure of computer’s functions as much as their abilities and performances. (...) The main subject that I choose to represent with my work is the moment when ability fades.” Todas as presentes traduções das citações de Manetas são de autoria nossa.

menos no presente contexto, à falibilidade inerente a todos os produtos e processos humanos.

No presente entendimento, esta “imperfeição” comum a criador e criatura constituirá o núcleo deste “saber” poético em Manetas, pois o artista também se coloca fortemente contra os usos sociais de toda esta “maquinaria”, por parte de seus gestores econômicos, políticos, culturais e artísticos. O caráter especular desta relação entre humano e tecnológico será visto como a grande chave de leitura para o entendimento da obra, de seus nexos culturais e de sua possível interpretação. A citada “partilha de sentido”, assim, é proposta aqui como partindo não da obra ou do mundo, mas daquilo que o artista percebe e concebe entre eles - e com eles.

Esta mesma “imperfeição” pode, certamente, ser encarada mais como natureza inescapável ou mais como contingência a ser criticada e/ou superada. A obsolescência programada (pós-)industrial, por exemplo, constitui certamente mais uma deliberada política de produção do que um objetivo defeito do processo produtivo em si. Determinadas falhas do digital (como sua ubiquidade uniformizante, sua participação no ciclo capitalista de consumo e exclusões sociais etc.) podem ser logo entendidas como resultado de projeto. A pintura de Manetas oscila entre estes extremos de “amor e ódio” ao digital sem se deixar fixar em nenhum deles, pois o digital, como tudo, não seria amável ou detestável em si.

Numa relação que pode congregar posturas tanto de crítica quanto de identificação, como se dá este retrato das limitações de uma civilização (a “ocidental globalizada”) sempre induzida em direção a uma performance “ótima”? Recorrendo a Samuel Beckett117 (1996: 89), como se representa este destino de uma sociedade a

reprimir suas chances de “falhar melhor?” Tomando o digital como simbólico desta civilização neste momento - e agora nas palavras de Staff (2013) - como Manetas “imagina o digital”?

A resposta, para a qual a noção de software será primordial, passa por entender, contextualmente, como a contemporaneidade pode se colocar como “imaginável”.

Sobre este ponto, é preciso localizar uma defesa da representação em meio ao panorama atual das análises sobre a relação entre as mídias artísticas e a realidade. Considere-se, neste sentido, “Arte e Realidade: aproximação, diluição e simbiose no

século XX” (CRUZEIRO, 2014), um vigoroso estudo voltado a demonstrar que, a partir de

certos desenvolvimentos no século XX - a redundar em indeterminações como a dentre

“arte ativista” e “ativismo artístico” (CRUZEIRO, 2014: 450) - arte e realidade passaram a constituir entre si uma relação de simbiose.

A palavra simbiose é a conjunção “do grego sýn, ≪juntamente≫ +bíosis, ≪modo de vida≫, pelo francês symbiose, ≪vida em conjunto≫” [ou] “relação interespecífica entre dois ou mais indivíduos que lhes permite viver com vantagens mútuas. (...) e designa, no seu sentido figurado, uma relação íntima e de cooperação entre dois envolvidos (Infopedia, 2013). (...) ...essa relação determina uma inter-dependência de tal forma importante que faz com que qualquer distinção seja inoperante. (CRUZEIRO, 2014: 445/446).

Segundo o concluído deste estudo, a partir das vanguardas do século XX, no seguimento de um abandono progressivo da representação em direção à realidade “vivida”- e no seguimento de casos de aproximação e de diluição entre arte e realidade - a contemporaneidade do final do século XX conheceria uma nova tendência: a de

simbiose entre realidade e arte. Não qualquer arte, diga-se, mas especificamente a

relacionada a programas de ação direta na vida social e/ou política, na prática em formas de uma anti-representativa “apresentação de uma presença”, como no caso das “cirurgias estéticas” da artista francesa Orlan.

Para a tese, tal proposta de simbiose se apresenta realmente como procedente

nestes casos, em relação a estes meios, uma vez que o resultado artístico aqui

exemplificado (como em Orlan) coincide de fato com um incremento efetivo nas dimensões “material, contextual e social da realidade” (op.cit.), restando saber se resta a propriedade de chamar arte ou realidade a tal incremento ou resultado.

Não é o inegável valor destes experimentos que está aqui em causa, mas a presente convicção de que a relação específica entre o meio pictórico (aqui, nas obras da pintura alter-realista) e a realidade tangível (nos termos de Cruzeiro) não configura casos de simbiose. Configura, isto sim, casos de um outro tipo de (inter)relação - tomada também figuradamente do campo da Biologia : a protocooperação:

Cooperação, protocooperação ou mutualismo facultativo é toda relação ecológica harmônica, em que ambas as espécies são beneficiadas, mas uma pode viver independentemente da outra. A protocooperação é uma relação benéfica para ambas as espécies, embora não lhes seja indispensável. Os seres associados mantêm certa independência: apenas se beneficiam das associações mais ou menos duradouras que estabelecem. (Wikipedia, 2017). O alter-realismo configura, mais que um estilo, uma poética da relação entre a pintura representativa e uma parcela da realidade contemporânea: a digital; parcela esta vista como simbólica desta realidade como um todo. Tal modo de relação não é certamente prerrogativa de toda pintura, em todo momento. Uma vez que uma

característica fundamental do conceito de simbiose é o necessário mutualismo entre as partes envolvidas, a tese entende como mais apropriado o termo sugerido pelas ciências biológicas para uma relação íntima, porém pontual: o de mutualismo facultativo ou

protocooperação.

Utilizamos assim este último termo, pois as relações aqui estudadas entre analógico e digital não redundam em hibridações efetivas e concretas, quer em termos de continuada poética artística, quer em termos de obras singulares, mesmo em Manetas.

Retomando, nem toda “arte contemporânea” é digitalmente orientada e avessa à pintura, assim como nem toda pintura atual dialoga aberta e criticamente com o digital. Quando o fazem, porém, o alter-realismo é possível. Isto posto, a face, por assim dizer, “filosófica” da poética pictórica alter-realista coincide basicamente com o que Michael Heim chama de “realismo virtual”:

Devemos buscar balancear o entusiasmo do idealista pela vida computadorizada com a necessidade de nos ancorarmos mais firmemente à ‘terra sentida’ que o realista afirma ser nossa realidade primeira. (...) O realismo virtual é o caminho do meio entre um realismo ingênuo e um idealismo quanto à rede. (...) O desafio é manter a oscilação entre realismo e idealismo, encontrando a senda que perpassa ambos. Não se trata de uma síntese no sentido Hegeliano de um resultado lógico. Tampouco uma síntese resultante de uma guerra entre os dois lados. Na verdade, o realismo virtual é um processo existencial de crítica, prática e comunicação consciente (...). Rompe com o realismo puro e simples118 (HEIM In.: LUNENFELD, 1999: 41, em tradução

nossa).

Rompe! Nos termos desta tese, desvia! Interessante também notar como esta ideia

de um “processo existencial” nivela, “horizontalmente”, os níveis de realidade colocados de forma hierárquica por Couchot (2003), com o real virtual no topo da pirâmide.

Assim - e em si - tal “realismo aberto e crítico” dirá respeito a um modo geral de

protocooperação entre representação e realidade. Aqui, entre representação analógica e

realidade digital. Pintura dialógica - e não híbrida, mas mestiça. A hibridação pode ser realmente uma tendência inequívoca e irreversível da “arte contemporânea” e da artemídia assistida digitalmente. Isto, contudo, está longe de implicar que toda arte na contemporaneidade deva ser híbrida.

118 No original: “We might learn to balance the idealist’s enthusiasm for computerized life with the need to ground ourselves more deeply in the felt earth that the realist affirms to be our primary reality. (...) Virtual realism is the middle path between näive realism and network idealism. (...) The challenge is not to end the oscillation between idealism and realism but to find the path that goes through them. It is not a synthesis in the Hegelian sense of a result achieved through logic. Neither is it a synthesis arising from the warfare of the two sides. Rather, virtual realism is an existential process of criticism, practice, and conscious communication. (...) [It] parts with realism pure and simple.”

Note-se que o artista aqui em questão tem travado este diálogo também de outras formas além da pintura, ao, por exemplo, proclamar serem os “websites” as grandes obras de arte da contemporaneidade. Sua produção pictórica é plural e heterogênea, mas não híbrida ou “expandida” no sentido físico destas práticas119.

Sua produção global (que inclui produção com mídia digital) é, neste sentido formal, ainda mais plural e heterogênea, mas - novamente - não híbrida.

Isto de resto é coerente com a ideia pictórica, mas dialógica (e dialógica, mas pictórica) de alter-realismo. Como se caracteriza, então, especificamente, tal diálogo em Manetas? Retomando a questão inicial e básica deste Capítulo, como ele “imagina o digital?”