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DICIONÁRIO, LÍNGUA, CIÊNCIA: VINCULAÇÕES

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 179-186)

4 LÍNGUA E CIÊNCIA NO DICIONÁRIO: A CONSTRUÇÃO DE CONCEPÇÕES

1. f Conjunto de conocimientos obtenidos mediante la observación y el razonamiento, sistemáticamente estructurados y

4.3 DICIONÁRIO, LÍNGUA, CIÊNCIA: VINCULAÇÕES

Língua, ciência e dicionário se relacionam a partir do momento em que se inicia a elaboração de dicionários gerais monolíngues, que procuram basear-se em princípios de organização metodológica que se pretendem científicos, ou que buscam incorporar conceitos científicos em consonância com o fim do Renascimento e as propostas do Iluminismo e do Racionalismo.

Em relação aos prefácios dos dicionários da RAE dos séculos XVIII e XIX, as tentativas de aproximar o discurso lexicográfico de temas relacionados à ciência se configuram através do que é novo e atual dentro do repertório do léxico elencado na macroestrutura e definido na microestrutura.

O intuito de organizar o dicionário tendo como base o pensamento científico geral se enfatiza de modo mais próximo a uma pretendida metodologia científica a partir do século XX. Nesse século, o objetivo que a obra seja elaborada com o mesmo rigor do método de trabalho exato e preciso, próprio das investigações científicas, é sinalizado nos prólogos, que explicitam essa preocupação99:

179 Por eso ha parecido oportuno suprimir en esta edición la grafía árabe y substituirla por su transcripción rigurosamente científica (DRAE, Preámbulo, 1956, p.1, grifos nossos).

Se han corregido etimologías y definiciones conforme a criterios científicos actuales. (DRAE, Preámbulo, 1970, p. 1, grifos nossos).

Nos prefácios de 1956 e 1970 se evidenciam a busca e o interesse por incorporar a rigidez da metodologia científica à organização da obra lexicográfica, o que está relacionado ao discurso de legitimação da RAE como instituição elaboradora de instrumentos lexicográficos confiáveis.

Esse aspecto da autoridade da RAE no âmbito linguístico se constitui em correlação com a função atribuída ao dicionário monolíngue enquanto “instrumento linguístico de gramatização” (AUROUX, 1992), que oferece insumos para escrever e usar a língua com precisão. E precisão e exatidão são aspectos referenciados de maneira reiterada nos prólogos dos dicionários, marcando um discurso que estabelece norma em correlação com a regra. A sujeição a essa correlação norma/regra que constrói os dicionários gerais da RAE está de acordo com os parâmetros de correção vinculados à própria instituição e a seu papel normativo.

Nos prefácios, se estabelece um movimento sequencial explícito de incorporação dos lemas oriundos da linguagem técnica e científica de uso comum e se justifica a supressão de uma terminologia especializada com o argumento de que deve ser retirada do dicionário geral da língua e reunida em uma obra específica.

Nos prólogos da Real Academia não se estabelecem conceitos sobre ciência que é referenciada neles em relação à organização lexicográfica dos dicionários, ao que deve compor o caudal léxico da obra. As referências à ciência fazem parte da função apresentadora do prefácio como gênero, que prevê indicar os critérios e os encaminhamentos adotados no arcabouço de cada uma das edições.

180 A trajetória das referências à ciência nos prefácios se organiza através da preocupação inicial com a terminologia e inclui alguns preceitos científicos, adotando uma metodologia descritiva simples. Na última edição do DRAE (2001) é declarado um interesse por aspectos de cientificidade e indicações metodológicas, configurados pela coleta de dados que inclui o recolhimento do léxico através de

corpora eletrônicos100.

As análises do verbete ciência permitem constatar que os conceitos apresentados nas definições estão vinculados às reflexões surgidas a partir dos movimentos historicamente ligados ao saber humano. Nos enunciados lexicográficos, os termos conhecimento, sabedoria, ordem, estrutura e exatidão traçam as diretrizes, alternadamente ou em conjunto, do que conforma cada época e cada movimento intelectual. Os co-enunciadores dos dicionários, como participantes desses movimentos regidos por propostas que visam a novas ordenações, assumem características próprias compatíveis com cada época, embora representados marcadamente pelos instruídos.

O significado que se atribui ao lema ciência varia temporalmente e os enunciados lexicográficos evidenciam as continuidades e descontinuidades, permanências e mudanças, entre as definições das entradas, nas várias edições do dicionário. Um distanciamento significativo assumido nos enunciados elaborados para a obra se relaciona à retirada das autoridades, sinal da reformulação que transformou o DA (1726 a 1739 e 1770) em DRAE (1780), como se expõe no Capítulo 3.

Nos prólogos, a partir da edição do 1º DRAE (1780), portanto, não se incluem as abonações dos clássicos da literatura, mas a referência a esses autores continua

181 registrada nos prefácios. Os escritores de prestígio são declarada fonte de consulta para legitimação do uso de 1780 a 1914, embora só constem exemplos tirados de suas obras nos enunciados lexicográficos dos verbetes dos DA de 1726-1739 e de 1770. Esses movimentos de referenciação reforçam o vínculo enunciador instruído/co-enunciador instruído como par de interlocução constante nos prefácios. Através da entrada ciência, ao longo das diversas edições dos dicionários da RAE, de 1726 a 2001, também é possível observar matizes de perfis diversificados para a composição dos co-enunciadores das obras. Esses traços são relevantes na medida em que se vinculam às referências dos prólogos ao leitor instruído, assinalado alternadamente como culto, especialista, letrado, douto. As referências acompanham a trajetória da sociedade à medida em que ela própria se modifica em decorrência de novos modos de pensar, consequência de descobertas, dos avanços científicos que circulam e dos movimentos intelectuais.

O papel da ciência em relação a esses co-enunciadores é, assim, redefinido e as diferenças se evidenciam ao comparar as mudanças nas definições dos verbetes que acolhem essas acomodações. Nesse sentido, a inclusão de subentradas cada vez mais detalhadas e específicas, remetem a um co-enunciador instruído que está submetido a quantidades maiores de informações correntes novas, oriundas da

técnica e da sua pópria trajetória na sociedade. A incorporação do léxico recém-

criado e com o espaço que a ciência passa a ocupar na vida do cidadao comum é uma preocupação que atravessa os discursos dos prefácios de modo reiterado.

Nos artigos lexicográficos, a trajetória do conceito de ciência que se vincula às humanidades, nos primeiros dicionários, incorpora aspectos do Iluminismo em que ciência e matemática estão relacionados conceitualmente, até consolidar-se na última edição, do século XXI, em associação a dados comprováveis, tomados dos

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corpora eletrônicos. Ao contrário dos prefácios, a concepção de ciência é explícita

nos verbetes, contemplando o gênero, que prevê explicações, descrições, comparações e definições dos lemas, retomando o que se propõe no item 3.1.3.

Os blocos de análise marcam uma contradição entre o que se apresenta nos prefácios como ciência e o que se inclui como ciência nos verbetes. Nos prefácios, as modificações são pouco significativas e os planejamentos apresentados neles repetem características de relacionar ciência ao recolhimento do léxico. Os verbetes articulam as modificações no sentido de representar as mudanças no conceito de ciência que não são registradas nos prólogos explicitamente.

As concepções sobre língua nos prólogos apresentam níveis estáveis quanto a mudanças se comparadas dentro do período em que se inserem. Nos primeiros dicionários, a língua é apresentada como repertório léxico relacionado, em princípio, à correção da norma e da regra considerando o uso como o uso regrado, estabelecido pela norma. Progressivamente, as obras incorporam e legitimam variações decorrentes do uso, já não entendido somente em relação ao emprego que se resgata através dos escritores clássicos, mas aos usos gerais corretos. Nesse sentido, a correção permanece como um aspecto orientador básico, vinculado a uma norma culta.

Os registros de uso e as variações linguísticas de nível léxico aproximam o dicionário do co-enunciador usuário da língua. As variações diatópicas, incorporadas de forma destacada a partir do século XX, como parte integrante do espanhol, estão disponíveis a todo o mundo hispânico como elementos componentes de uma política em prol da unidade linguística e do pan-hispanismo. Nesse sentido, essas noções estão direcionadas a co-enunciadores que tanto podem estar deslocados do unicentrismo da península como fazer parte dela. Essa conjugação de todos os que

183 fazem parte da comunidade hispânica constrói o imaginário da língua como pertencente a todos e se recolhe ao dicionário para que todos possam usá-la, em princípio, sem distinções de territórios, estratos sociais ou períodos históricos. As políticas linguísticas da Real Academia voltadas para o pan-hispanismo acentuam a necessidade de reunir e registrar um imaginado repertório léxico comum disponível aos hispano-falantes em geral.

A preocupação recorrente com o recolhimento do léxico novo, com a atualização do dicionário, com a indicação das especialidades científicas se resgatam nos movimentos de incorporação e de apropriação da língua, em que a norma e o uso se correlacionam como regra, mas que incluem as variações com um papel de significação próprio. As concepções instituídas através dos prólogos e das entradas estão vinculadas à autoridade da instituição RAE e assinalam os conceitos de língua subjacentes à obra lexicográfica.

O dicionário geral, a língua e a ciência constroem uma relação que se estabelece a partir dos próprios papéis que desempenham na sociedade. O dicionário, como repertório que recolhe e concentra o léxico da língua, se responsabiliza pelo estabelecimento de uma norma, cuja gênese está na relação com a metodologia e com os princípios científicos de produção linguística. A presença de aspectos de caráter científico de forma cada vez mais específica faz com que o dicionário de língua busque, de forma reiterada, em relação à ciência, mencioná-la, apoderar-se de seus conceitos, adotar seus métodos. Nesse movimento se realiza um diálogo com o usuário, um co-enunciador instruído em consonância com o que é moderno e atual no momento em que se insere.

Os sentidos de língua e ciência representados no dicionário são atravessados pela mudança e pela permanência. As permanências constroem relações com a

184 preservação de memórias representadas nos dicionários e as mudanças se vinculam às diversificações que se instalam por força dos movimentos intelectuais, do uso da língua, das incorporações do léxico, dos avanços científicos trazidos à sociedade .

O instrumento linguístico de gramatização dicionário se responsabiliza por produzir os enlaces e apresentar esse universo ao usuário com o intento de parecer alcançar o grau máximo de neutralidade em seu discurso. Entretanto, ao buscar um distanciamento do que pode configurar a voz do lexicógrafo, o que é dito e o que

não é dito estão, da mesma forma, representados no dicionário. O que permanece e

o que muda nos prefácios e, também, nas entradas, assinalam as marcas desses

dizeres, cabendo ao co-enunciador identificá-las e estabelecer seus sentidos em

relação à língua e à ciência. De todo modo, o dicionário reforça a conjugação língua/ciência, associando-as para dar base à elaboração da obra e concretizando o vínculo enunciador instruído/co-enunciador instruído. Mantido o foco na incorporação de aportes da ciência, dá legitimidade a um instrumento que procura ser marcadamente científico.

O ethos do enunciador coincide com a imagem que projeta para seu co- enunciador: é um espelho em que eu-dicionário é também eu-leitor do dicionário. Nesse sentido, como dois do mesmo, constituem um só, verdadeiramente. Ao formarem essa imagem reflexiva, ambos coincidem e se fundem no instruído.

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