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Talvez o ponto mais polêmico e mais discutido na teoria do Direito Penal do Inimigo é a separação realizada pela celeuma: cidadãos e inimigos. Jakobs defende a aplicação de duas formas de Direito Penal dentro de um mesmo ordenamento jurídico,

O Direito Penal do cidadão é o Direito de todos, o Direito Penal do inimigo é

daqueles que o constituem contra o inimigo: frente ao inimigo, é só coação física, até chegar à guerra. Esta coação pode ficar limitada em um duplo sentido. Em

primeiro lugar, o Estado, não necessariamente, excluirá o inimigo de todos os direitos. Neste sentido, o sujeito submetido à custodia de segurança fica incólume em seu papel de proprietário de coisas. E, em segundo lugar, o Estado não tem por que fazer tudo o que é permitido fazer, mas pode conter-se, em especial, para não fechar a porta a um posterior acordo de paz. Mas isto em nada altera o fato de que

medida executada contra o inimigo não significa nada, mas só coage. O Direito

penal do cidadão mantém a vigência da norma, o Direito penal do inimigo (em

sentido amplo: incluindo o Direito das medidas de segurança) combate perigos (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 30).

Jakobs defende a incidência de dois Direitos Penais num mesmo ordenamento jurídico, um para pessoas ou cidadãos e outro para inimigos. Greco (2018) afirma que o Direito Penal do cidadão respeita os princípios fundamentais característicos do Direito Penal tradicional; já no Direito Penal do Inimigo não há preocupação com as garantias do imputado, haja vista não se estar diante de cidadãos, mas sim de inimigos.

Neste horizonte de separação entre inimigos e pessoas, resta saber quem são os inimigos do Direito Penal. Gomes (2010, p. 1) afirma, que para a teoria, os inimigos são os terroristas, os criminosos econômicos, agentes do crime organizado, autores de crimes sexuais e outras infrações perigosas. O inimigo se afastou completamente do Direito, não oferecendo garantias de cumprimento à norma. Jakobs afirma que,

Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve trata- lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 42).

Sánchez afirma que o inimigo, na teoria do Jakobs, é

[...] um indivíduo que, mediante seu comportamento, sua ocupação profissional ou, principalmente, mediante sua vinculação a uma organização, abandonou o Direito de modo supostamente duradouro e não somente de maneira incidental. Em todo caso, é alguém que não garante a mínima segurança cognitiva de seu comportamento pessoal e manifesta esse déficit por meio de sua conduta (2013, p. 194).

Aquele indivíduo adepto do estado natural de direito, não está apto para viver em sociedade, portanto, não adquire o status de pessoa, Martín (2007, p. 133) afirma que o Direito Penal do inimigo visa erradicar os perigos emanados pelos indivíduos que negam a condição de cidadão e permanecem num estado de natureza, um estado de ausência normativa, de excessiva liberdade. Na guerra contra o inimigo, quem a ganhar a luta determinará a norma a ser seguida. O tratamento distinto aplicado ao inimigo é afirmado por Jakobs,

[...] o Estado pode proceder de dois modos com os delinqüentes [sic]: pode vê-los como pessoas que delinqüem [sic], pessoas que tenham cometido um erro, ou indivíduos que devem ser impedidos de destruir o ordenamento jurídico, mediante coação (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 42).

O cidadão oferece garantias comportamentais de respeito ao contrato social e a vida em sociedade, não se encontra em permanente estado de guerra contra a comunidade. Moraes (2006, p. 165) aduz que para Jakobs e Luhmann, a condição de pessoa não é algo

subjetivo, ôntico, mas sim algo adquirido. A condição de pessoa só é concebida para aqueles que são capazes de conviver socialmente. É o que afirma Martín,

[...] Essa privação e negação da condição de pessoa a determinados indivíduos só é possível na medida em que se reconheça a qualidade de pessoa, isto é, a personalidade, não é, em princípio, algo dado pela natureza, mas sim – e assim deve ser aceita e reconhecida – uma atribuição normativa, seja de caráter moral, social e/ou jurídico (2007, p. 133, grifo do autor).

Jakobs (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 37) afirma que o Direito Penal para pessoas esperará que a conduta se exteriorize para reagir, com a finalidade de reforçar a estrutura normativa da sociedade. Moraes aduz (2006, p. 166) que na “prevenção geral positiva, a dor penal se comina a uma pessoa competente, capaz de ser culpável, e não a inimputáveis, eis que frente a estes não há expectativas normativas que possam ser defraudadas.” No entender de Jakobs, (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 36-37) aquele que não possui expectativa de cumprimento normativo vive numa ausência de legalidade, em um estado de natureza, e pode ser classificado como uma ameaça constante. Portanto o inimigo deve ser interceptado prontamente, mesmo que de forma prévia ao delito, haja vista ser reprimida a sua periculosidade. Conforme afirma Jakobs, para o inimigo

[...] não se trata, em primeira linha, da compensação de um dano à vigência da norma, mas eliminação de um perigo: a punibilidade avança um grande trecho para o âmbito da preparação, e a pena se dirige à segurança frente a fatos futuros, não à sanção de fatos cometidos. (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 35-36)

Sánchez afirma que as principais características do Direito Penal do inimigo consistem em:

[...] ampla antecipação da proteção penal, isto é, a mudança de perspectiva do fato passado a um porvir; a ausência de uma redução de pena correspondente a tal antecipação; a transposição da legislação jurídico-penal à legislação de combate; e o solapamento de garantias processuais (2013, p. 194).

Segue por essa linha Meliá, o qual afirma que o Direito Penal do inimigo se caracteriza por três pontos elementares:

[...] em primeiro lugar, constata-se um amplo adiantamento da punibilidade, isto é, que neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal prospectiva (ponto de referência: fato futuro), no lugar de – como é o habitual – retrospectiva (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionalmente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é considerada para reduzir, correspondentemente, a pena cominada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou inclusive suprimidas (JAKOBS; MELIÁ, 2005, p. 67).

As características trazidas por Meliá e Sánchez remetem-se as reações penais que atacam perigos abstratos, proteção antecipada e ataques simbólicos. Numa concepção tradicional, de resposta à lesão concreta a um bem jurídico, tais características seriam

inviáveis, porém, no funcionalismo sistêmico, esses substratos se tornam possíveis em razão da ausência de um bem jurídico concreto, sendo o objeto de proteção a norma.

As características de um Direito Penal cidadão e um Direito Penal para o inimigo são muito diferentes, da maneira em que aquele mantém o indivíduo na sociedade e este declara guerra permanente ao delinquente. Gomes (2010, p. 1) aduz, que no sistema de Jakobs, o inimigo não ingressa no estado de cidadania, consequentemente não possui os privilégios e garantias que possuem as pessoas. Ao exemplo disso é que o inimigo não é considerado sujeito processual, portanto não há garantias no processo para ele, cabendo ao Estado não reconhecer os seus direitos, ainda que de uma maneira juridicamente ordenada. Não há lei penal contra o inimigo, de outra monta, existe um procedimento de guerra.

Gomes (2010, p. 2) resume as características do sistema jurídico aderente ao Direito Penal do inimigo: para o inimigo incide a medida de segurança, e não a punição através da pena; a forma de punir o inimigo ocorre de acordo com sua periculosidade, e não através de sua culpabilidade; contra o inimigo o agir do Estado visa coibir um perigo futuro, e não punir um ato realizado no passado; é um direito prospectivo e não retrospectivo; o inimigo é tratado como coisa, um objeto de coação e não como sujeito de direitos; o inimigo, em razão de sua periculosidade, perde seu status de pessoa, já o cidadão, mesmo após delinquir, mantém essa condição; o Direito Penal do inimigo combate perigos, já o Direito Penal para cidadãos mantém a vigência da norma; para o inimigo o âmbito de proteção normativa tem de ser adiantado, punindo os atos preparatórios e, assim, justificando a antecipação da tutela penal; a pena para o inimigo pode ser desproporcional com o fato; para o cidadão o Estado tem de esperar a exteriorização da ação para atuação do Direito Penal, para o inimigo pode ocorrer a interceptação no estado prévio, em razão da sua periculosidade.

O inimigo, ou não pessoa, tem o aspecto da periculosidade realçado na terceira velocidade do Direito Penal. Não ocorre uma responsabilização por atos pretéritos, tampouco um juízo de culpabilidade, em outra monta, há apenas um indivíduo perigoso, o qual não tem direitos e deveres, devendo ser constantemente vigiado e oprimido para não cometer delitos.

A teoria apresentada chama atenção, principalmente por legitimar anseios que afastam o Direito Penal do Estado de direito. No ambiente vernáculo, seria compatível um Direito Penal de terceira velocidade com a constituição brasileira?