• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO DA VIDA E MÍMESIS NARRATIVA

II.3. Diferenciação discursiva do mundo da vida

(3) No primeiro capítulo, dissemos que a ideia de um idealismo pluralista sugeria a necessidade de um mecanismo regulativo que medeie a multiplicidade emergente de contextos simbólicos. Habermas, outorgando a esta ideia uma dimensão pragmática, a traduz em uma competência para o entendimento, suscetível de aprendizagens dirigidas, nas quais são visíveis os acumulados dos modos práticos de lidar com situações problemáticas, mas que, ao mesmo tempo, enquanto competência, acaba sendo a iniciadora, o a priori pragmático da vida social. Podemos traduzir essa dupla função t de arbitragem de contextos diversos, por um lado, mas de produtor e

sedimentador das diferenças estruturais, por outro – como um caminho de ida e volta do

meio comunicativo. Podemos tentar, como recurso analítico, uma separação destas duas vias. Assim, o caminho de ida se refletiria nestas linhas:

Quanto mais os componentes estruturais do mundo da vida e os processos que servem à sua manutenção são diferenciados, tanto mais os contextos da interação passam a

depender das condições de um entendimento motivado racionalmente, ou seja, da formação de um consenso respaldado, em última instância, no melhor argumento.23

É muito provável que, mesmo que o recurso da argumentação comparta, nas situações de interlocução, seu protagonismo com outros registros discursivos; afinal, só possamos extrair um consenso válido, que transcenda o hermetismo dos contextos, dos potenciais de distância e de formalização dos procedimentos argumentativos.

Segundo essa ótica, o desenvolvimento de uma competência inteiramente ligada à ordem da interação culmina naquilo que Habermas chama de conceito complementar ou correlato do mundo da vida: o agir comunicativo. Porém, antes de que, a partir desse termo, se desenvolva todo aquele aparelho terminológico próprio da pragmática formal, baseado em uma teoria da argumentação,24 Habermas oferece exemplos das condições sistemáticas que uma competência comunicativa cio meio de entendimento discursivo – deve cumprir para que seja possível falar de uma racionalização do mundo da vida e, em termos gerais, de uma racionalidade comunicativa. E é esta racionalização, em última instância, o que caracterizaria o caminho de volta do meio comunicativo. No cumprimento de tais condições de uma racionalização comunicativa, pensamos que o comportamento argumentativo do discurso é, evidentemente, necessário, mas provavelmente muito insuficiente. Tais condições são três, e podem enunciar-se do modo seguinte:

a. Diferenciação estrutural do mundo da vida: no que concerne à relação entre

cultura e sociedade, ela se manifesta em uma “crescente desconexão (Entkoppelung) entre sistema institucional e imagens do mundo; na relação entre sociedade e personalidade, ela se mostra na ampliação do espaço de contingência, necessário para a produção de relações interpessoais; finalmente, na relação entre cultura e personalidade ela se revela no fato de que as

23 Ibid., p. 218 / p. 263.

24 Isto é, a classificação performativa dos tipos de ação racional (teleológica, normativa e expressiva),

segundo o marco de pretensões de validade diferenciadas (verdade, legitimidade e sinceridade) que, por sua vez, se referem a distintos de mundo (objetivo, social e subjetivo). Trataremos por extenso este assunto no quarto capítulo desta pesquisa.

renovações das tradições dependem cada vez mais da crítica e da capacidade inovadora dos indivíduos”.25

b. Separação de forma e conteúdo: “no plano cultural, os núcleos da tradição

garantidores da identidade separam-se dos conteúdos concretos com que se entrelaçam nas cosmovisões míticas (...). No plano da sociedade se solidificam princípios universais [alguns com certo grau de volubilidade (morais), ou estabilizados em instituições (jurídicos), que são cada vez menos um mero reflexo das formas de vidas concretas]. E no plano do sistema da personalidade, as estruturas cognitivas adquiridas no processo de socialização emancipam-se cada vez mais dos conteúdos de saber cultural”. 26

c. Reflexibilização da reprodução simbólica: com a noção de reflexibilidade, a

nomeada dialética das regras simbólicas poderia encontrar uma ancoragem empírica. Pois, desde o plano da cultura, é possível dizer que “nas sociedades modernas formam-se sistemas de ação em que tarefas especializadas da transmissão cultural, da integração social e da educação são elaboradas de modo profissional”.27 Do mesmo modo, aquilo que Habermas chama de “tipos de formação discursiva da vontade política” implica o aprendizado dos atores para a desnaturalização da ordem normativa tradicional de legitimação do poder. Por sua parte, no plano da personalidade, o surgimento de um “sistema educativo, liberado dos mandatos imperativos da igreja e da família”, supõe, na mesma medida, “uma ruptura reflexiva na reprodução simbólica do mundo da vida”.28

No espaço das configurações discursivas, esta listagem de condições representa as características, em abstrato, que os tipos de discurso particular podem preencher, se dizemos deles que cumprem uma função comunicativa, nessa via de retorno que nomeamos como racionalização do mundo da vida. Conforme Habermas, esses níveis de abstração com potencial de se tornarem competências universais, para além das contingências espaciais e temporais, só podem ser atingidos por uma lógica ampliada e

25 Ibid., p. 224 / pp. 264-5.

26 Ibid., pp. 224-5 / pp. 265-6. 27 Ibid., p. 225 / pp. 266-7. 28 Ibid., p. 225 / pp. 266-7.

complexa da argumentação. Isto é, tudo se passa como se esse fenômeno determinante e singular da origem da modernidade, que é capaz de provocar variações estruturais na ordem social, atravessasse a ordem plural da discursividade (os registros conversacionais, narrativos e interpretativos), sem causar-lhe maiores transformações.

Quão distante está essa outra maranha linguística do mundo da vida em relação aos condicionantes de uma ordem social diversificada?

A aposta forte de Habermas neste ponto consiste em não supor estas condições do agir comunicativo como fazendo parte simplesmente de uma antropologia fundamental, isto é, de uma imagem do homem. Para ele, são razões empíricas as que permitem supor uma estrutura linguística na base dos desenvolvimentos socioculturais. Porém, nesses termos, não seria ainda mais consequente um desenvolvimento equivalente na própria produção linguística e discursiva? Por que pensar que as conversações, as narrativas ou as interpretações, ao contrário das discussões argumentadas, se identificam sempre com imagens do mundo, as quais são simplesmente um reflexo do seu contexto cultural?

Jean-Marc Ferry, em Les puissances de l’expérience, parece iluminar esta questão, ao postular uma ordem diferenciada dos discursos do mundo da vida, paralela à ordem das estruturas simbólicas (cultura, sociedade e personalidade). Ao falar de um caminho de volta do meio comunicativo, entramos diretamente no nível do discurso que expressa um sistema de relações com o mundo da ação, desde já racionalizado. Nesse sentido, Ferry, como Habermas, começa por distinguir a noção do discurso da noção da linguagem. Enquanto a noção da linguagem é expressar os conteúdos da experiência individual ou comunitária por meio de símbolos, a função do discurso é a tematização da experiência no meio da linguagem. Assim, no nível da linguagem podem ser visíveis os símbolos particulares de uma cultura, enquanto no nível do discurso se desenvolve uma lógica geral transcultural. “A linguagem tem uma estrutura simbólica, e se orienta às formas mentais da representação. Por sua parte, o discurso tem em si mesmo uma estrutura lógica ou lógico-sintática, a qual se orienta às formas gramaticais da interlocução.”29

29 Ferry, op. cit., p. 89.

Esta distinção aclara ainda muito mais a posição de uma teoria da comunicação a respeito do idealismo hermen utico na esteira de Gadamer: “À diferen a da simb lica particular das línguas culturalmente

Assim, a intermediação do meio comunicativo implica que esses dois momentos analíticos surgidos do seu uso (a ida e a volta) estejam já entendidos como competências discursivas, isto é, reflexivas. Este movimento tem consequências no quadro formal-pragmático da comunicação em Habermas. Podemos entender esses dois momentos na chave sociológica como formas de compreensão do processo de modernização das sociedades que operam de modo complementário. O primeiro refere- se à lógica evolutiva das sociedades modernas e remete às dimensões estruturais das formas de interação social que se estabilizam para além das províncias e contingências culturais. O segundo refere-se, por sua parte, à dinâmica histórica das sociedades, isto é, ao modo mais substantivo em que uma lógica evolutiva tem afetado as formações e mudanças das relações entre culturas, sociedades e pessoas. Vamos enunciar, apenas, o primeiro momento, para deter-nos no segundo que é aquele que nos interessa desde o ponto de vista de uma pluralidade discursiva além da argumentação.

O momento lógico-evolutivo corresponderia em Habermas ao quadro formal- pragmático dos tipos ideais dos atos de fala com suas distintas pretensões de validade (constatativos, normativos e expressivos), e suas correspondentes referências ao mundo (objetivo, social e subjetivo). Ferry vai um degrau mais abaixo e ancora as próprias referências ao mundo em uma gramática elementar que reflete as distinções que se produzem nas situações de ação. Nessa via, as orientações ao mundo são constituídas a partir da aclaração das funções sintáticas da gramática, nas pessoas gramaticais “eu”, “voc ”, “ele/a”; e nos modos verbais (indicativo, imperativo e subjuntivo). Enquanto as alocuções de terceira pessoa no modo indicativo assumem a forma de enunciados constatativos ou descritivos que remetem a um mundo objetivo, as alocuções de segunda pessoa no modo imperativo assumem a forma de enunciados prescritivos ou normativos que se referem a um mundo social, e as alocuções de primeira pessoa no modo subjuntivo se constroem na forma de enunciados avaliativo-expressivos que se orientam a um mundo subjetivo. Finalmente, os enunciados na primeira pessoa do plural, o “n s”, implicam o ponto de vista utópico que remete à intersubjetividade que afinal sustém as interações fatuais das pessoas singulares, sua realização significaria no

encarnadas, a lógica geral dos discursos permite a comunicação entre essas linguagens. Por esta razão ela não pode se inserir no domínio dos objetos deduzíveis pela hermenêutica das tradições. Ela é mais a condição de uma apropriação hermenêutica das línguas estrangeiras. Nela reside o princípio formal de uma comunicabilidade hist rica entre culturas diferentes”. Ibid., p. 89.

discurso uma referência aos acordos obtidos entre as interações enunciativas do “eu” e do “voc ”.30

Importa aclarar que esta gramática apoiada em uma divisão típica das línguas clássicas não é moderna em si mesma, mas pela reflexividade que a acompanha, isto é, “o fato de que as pretensões de validade sejam elevadas na prática do discurso ordinário as reenvia a uma arquitetura invisível na qual se reflete uma distinção ontológica das distinções gramaticais”.31 Uma consciência gramatical dos enunciados corretos segundo tipos de ação e conexões ao mundo só é possível nas sociedades modernas. Moderno traduz, aqui, um constante processo de aprendizagem a partir dos fracassos e desilusões dos sujeitos no seu confronto com a realidade. São as restrições à ação que terminam por estabilizar os tipos de ação, os meios, os fins, reflexos na gramática.32

Agora, ao falar de uma gramática constituída a partir das desilusões da ação, isto é, a partir de processos de aprendizagem, surge imediatamente a pergunta: por qual mecanismo cognitivo entendemos essa “desilusão particular”, esse “acordo atingido” ou “essa representação dissolvida” como algo aprendido? Pois, se não existir esse mecanismo cumulativo, cada posição intermédia, cada fracasso, cada acordo aceito ficaria como arbitrário em relação aos outros. No caso das interações dialogadas, se não

30 Ibid., pp.87-8.

31 Ibid., p.190.

32 Ferry o explica assim:

Os seres capazes de ação se fazem conscientes daquilo que diferencia as pessoas das coisas, e os processos sociais dos processos naturais. E é refletindo sobre esta consciência em si mesma, que eles podem também autonomizar os processos mentais, isto é, distinguir a realidade da representação. No domínio das orientações às coisas, eles puderam experimentar a superioridade do encantamento mágico sobre a adaptação mimética, depois a superioridade da instrumentação técnica sobre o encantamento mágico. No dominio das orientações às pessoas, eles experimentaram paralelamente a superioridade da persuação retórica sobre as imposições dramatúrgicas, depois a superioridade da ordenação ética sobre a persuação retórica (ou a manipulação estratégica). Aprendendo que a manipulação é preferível à conciliação no que diz respeito aos processos naturais, e que, ao contrário, a conciliação é preferível à manipulação para a insersão nos processos sociais, eles atingem uma diferenciação entre a direção às coisas e a direção às pessoas, isto é, uma especificação unívoca de orientação ao Ele e de orientação ao Você. Entretanto, a obrigação socialmente instituida de certas regras a seguir, na ordem técnica de um lado, na ordem ética do outro, serve para consolidar uma consciência na ordem simbólica de orientação ao Eu. Esta consciência ontológica é ao mesmo tempo uma consciência linguística. O que entendo por isso é que a diferenciação ontológica das pessoas pronominais e dos tempos verbais está fixada na linguagem através da prática comunicativa do discurso. Os indivíduos têm levado, então, a competência comunicativa à maturidade. Isto se faz a partir de todo o material do imaginário comum, do jogo, do ritual, da ficção co partilhada que constitui isso que V. Turner deno inou “o entreteni ento”. Na intercompreensão da linguagem cotidiana, os indivíduos estabilizam e refinam esta gramática que não é outra coisa senão sua ontologia. Pode-se, de certa maneira, falar de uma “perfor ance transcendental” pela qual os sujeitos empíricos constroem seu mundo. Ibid., pp. 82-4.

se tem um meio de ligação que coloque em relação de sequencialidade, de contraste ou de associação uma situação de ação já vivida e outra por viver, seria quase impossível até a estabilização tanto de uma gramática quanto de uma lógica das pretensões de validade contrapostas.

É necessário pensar no caminho de volta, o segundo momento, que Habermas e Ferry associam com uma dinâmica histórica das sociedades modernas. Esse caminho deve mostrar não como as restrições à ação se constituem em um recurso para os aprendizados, isto é, em modos de lidar com situações problemáticas, mas como os aprendizados viram recursos disponíveis do mundo da vida que qualificam os indivíduos para o seu confronto com novas situações de interação e, claro, com novas restrições. Assim, para compreender os ganhos cognitivos nessa perspectiva histórica, não é suficiente entender por que uma posição é aceitável (ponto de vista lógico), é preciso, aliás, compreender por que essa posição obteve o assentimento em tal ou qual momento (ponto de vista dinâmico).33

Talvez, o exemplo concreto mais próximo deste caminho de volta a um nível intuitivo seja o do discurso da jurisprudência. Nele se mostra como as decisões alcançadas pelos órgãos judiciários vão se repetindo em mais de uma resolução. A compreensão de uma norma significa a compreensão da história de suas aplicações efetivas mediante sentenças. Frente ao caráter transcendental-ideal da norma está sua contrapartida mais substantiva de suas realizações fáticas, variáveis no tempo e no espaço, mas susceptíveis de serem abstraídas em um tipo de discurso especial, a jurisprudência.

Este modelo é facilmente assimilável pois tem atingido uma estabilização plena nas formas e procedimentos “duros” do direito. Porém, às experiências concretas das situações de ação devem ser associados registros discursivos com a mesma força pragmática que, de modo ainda vago, podemos chamar de força reconstrutiva.

Ferry introduz o modo de operar destes registros por meio de uma sugestiva metáfora dos aspectos “noturnos” do discurso:

33 Zaccaï-Reyners. v. 3, op. cit., p. 64.

O discurso é então a história. Ele é como o conto da noite, o próprio sonho noturno, que metaboliza em um saber o resultado das experiências diurnas do trabalho, da interação e da linguagem em si mesma. Falando metaforicamente, no “a anhã” esta capitalização da experiência é reinvestida na experiência, acrescentando deste modo a potência racional da interrogação do real, isto é, a intensidade das respostas aportadas pela realidade. Este é o aspecto positivo, cognitivo, do potencial de historicidade próprio ao discurso.34

Mas a imagem do noturno não deve nos levar ao erro de confundir essa nova pragmática com uma mera função subliminal e imanente ao trabalho imanente do símbolo nas representações pessoais ou coletivas dependentes de tradições. O discurso, segundo Ferry, é, em seu aspecto dinâmico, criador da matéria histórica em dois sentidos. O primeiro é similar ao simbolismo de segundo grau em Ricoeur, ele eleva a sentido as experiências de compreensão de mundo culturalmente circunscritas. Porém, o segundo sentido refere-se ao fornecimento de uma “mise en communication” das identidades culturais umas com outras: “Trata-se de uma operação secundária de tematização através da qual o discurso coloca a experiência de sentido de cada espaço cultural que ele produz, perante outro espaço cultural, transformando assim essa significa ão”.35 Poderíamos acrescentar que este segundo sentido deve mostrar aliás a encenação dos modos como o desenvolvimento dos âmbitos da sociedade e da personalidade tem cobrado autonomia ao respeito da autoridade subliminal dos fundos de saber cultural.

Para desenvolver uma tipologia daqueles que seriam os registros discursivos da dinâmica histórica, Ferry apela à tese da autorreferencialidade do discurso, também utilizada a seu modo por Ricoeur. A referência do sentido, não a um objeto, nem a um sujeito, mas a outro sentido. Esta imagem de uma comunicação entre discursos, herdeira de conceitos como a intertextualidade ou o dialogismo, serve a Ferry para pensar uma ordem estratificada de registros discursivos que sedimentam diferencialmente a matéria verbal do mundo da vida.36 Ferry refere-se a essa “mise en séquence” como “estratos de

34 Ferry, op. cit., p. 95

35 Ferry, p. 96. 36 Ibid., p.197.

reflexividade crescentes que esses registros diferenciados do discurso constituem uns para os outros”.37

Quais esses registros com capacidade funcional para dar conta dessa dinâmica histórica? São fundamentalmente quatro: a narração, a interpretação, a argumentação e a reconstrução. Deixaremos o último deles sem apresentar neste momento, já que ainda não sabemos se ele pode ser considerado um registro autônomo ou se é uma qualidade e uma função que os outros três registros compartilham de modo diferenciado. Deixamos esta questão para o último capítulo desta pesquisa.

Assim, para começar, segundo Ferry, a função da narrativa seria a de permitir a integração das experiências vividas heterogêneas, seja desde um ponto de vista individual ou comunitário, na unidade temporal de um relato que coliga os sentidos dos conteúdos da experiência, volúveis e variáveis, em uma totalidade com significado. A narrativa seria o modo primário pelo qual uma identidade é construída sob mecanismos discursivos. Eis a fórmula da narrativa de Ricoeur elevada à função universalizável do primeiro poder da experiência ligada ao discurso. Poder-se-ia dizer, de um ponto de vista comunicativo, que este registro permite que as experiências “contadas” já não sejam simplesmente “vividas”, agora são transmitidas. Desta maneira é possível fazer ingressar os acontecimentos nas tradições, eles viram histórias.38

A sociogênese do mundo da vida em termos de discurso confere à narrativa a função pragmática básica de tapizar de conteúdo os fundos do senso comum. São eles que fazem maior justiça ao lema de Wittgenstein: os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Eles estruturam no limiar dos conteúdos primários das experiências vividas as fronteiras de cada cultura e correlativamente das biografias pessoais e comunitárias. Por sua vez, o trabalho pessoal de dotação de sentido às múltiplas experiências contadas em uma história única, a transformação dos acontecimentos em relato, é a base para o critério avaliativo daquilo que podemos chamar “vidas aut nticas”.

Porém, justamente pelo fato de ficar intrinsecamente ligado o meu mundo cultural a meu mundo narrado, deve surgir um novo estrato que permita, pelo menos, a

37 Zaccaï-Reyners, v. 3, p. 60. 38 Ferry, p. 104.

aclaração de suas diferenças, que nomeie os traços distintivos entre a multiplicidade de relatos “aut nticos”. A “experi ncia universal da vida” e não a “experi ncia particular do meu relato” é informada, então, como referente pragmático pelo registro discursivo da interpretação. Aquele expressa, por meio de máximas, provérbios ou conselhos, as