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O arbítrio das formas simbólicas Para um simbolismo reflexivo

CAPÍTULO I: A PRÉ-COMPREENSÃO DA AÇÃO NARRADA

I.2. Os recursos simbólicos da ação

I.2.2. O arbítrio das formas simbólicas Para um simbolismo reflexivo

Ao ingressar na segunda tese cassireriana, relativa à questão do arbítrio das diferentes formas simbólicas, o preciso rever a distância que Ricoeur assume sem muita ampliação do chamado funcionalismo crítico em Cassirer, ainda herdeiro do transcendentalismo objetivista kantiano. Na verdade, essa suposta identidade de Cassirer no espírito do “modo kantiano de filosofar” pode ser questionada em sua transparência. A questão, vista de modo abrangente, não é de pouca monta. Poder-se-ia dizer que o que Cassirer faz a respeito da filosofia crítica representa um capítulo a mais no interior de uma história das ideias: ele reedita com novos termos o eterno problema metafísico do uno e do múltiplo.60 Contudo, a defesa de uma multiplicidade de formas simbólicas, reconduzidas por via de um perspectivismo de pretensões de validade a uma razão una, não é necessariamente uma motivação estritamente kantiana, como afirma Mario Ariel González Porta, a quem seguimos a partir daqui em seus argumentos centrais.61 O ponto central é que a filosofia das formas simbólicas, longe de reproduzir um idealismo crítico esforçado em determinar as condições de validade para as distintas formas de compreensão de mundo em face de assegurar a sua objetividade, é a base para um idealismo pluralista que, em não poucos aspectos, inverte os interesses do próprio criticismo kantiano. Claro está: o que nos interessa, para além da exegese do kantismo cassireriano, é o assunto de como complementaria este idealismo pluralista a primeira exposição do símbolo feita por Ricoeur. Porque aí onde Ricoeur vê a transversalidade unificante da mediação do simbolismo como competência integradora dos diferentes estratos de significação da ação, deve-se ver também o fato incontornável da pluralidade de formas de vida segundo contextos diversos de descrição da ação. A premissa hermenêutica da legibilidade da ação, segundo o seu próprio contexto de descrição, implica eo ipso o reconhecimento de outros contextos diferentes deste no qual X ação vem provida de Y significação. Isto é, a fenomenologia da ação simbólica que Ricoeur inicia vem a se encontrar de frente com o fato do pluralismo. Porém, é pouco o que Ricoeur acrescenta a este assunto em seu estudo sobre a reflexividade simbólica, além

60Ver “A unidade da razão na pluralidade das suas vozes”. In: Habermas, J. (2004). Pensamento pós- metafísico. Coimbra: Almedina, pp. 159-88.

61 González Porta, M. A. (2011). Estudos neokantianos. São Paulo: Loyola. Especialmente o capítulo

do reconhecimento, inerente por definição à filiação hermenêutica, de vários contextos de descrição.

Em sua nota crítica do kantismo cassireriano, Ricoeur reproduz a intenção de Cassirer de passar do postulado da substância ao postulado da unidade funcional. Trata- se do interesse crítico de passar de uma metafísica dogmática de matriz ontológica para uma teoria transcendental. “A pergunta kantiana não se dirige aos objetos, mas à objetividade e suas condi es.”62 Porém, a esta oposição clássica na leitura de Cassirer deve-se acrescentar outra oposição: a oposição entre “uma substância una e a pluralidade das determinações do ser”.63 Esta segunda oposição está longe de ser plenamente um motivo kantiano, mesmo que a evolução da primeira à terceira crítica pareça antecipá-lo. Mas bem, essa segunda oposição é aparentada espiritualmente com a “regionaliza ão da ontologia” que teve lugar no começo do século XX, especialmente na fenomenologia e no historicismo.64 Assim, embora as duas oposições tenham fontes de inspiração kantianas, a acentuação sobre uma eleva como prioritários interesses bem distintos. Pois, no segundo caso, já não se trata da dedução de um padrão de fundamentação segundo o qual as distintas pretensões de validade universal (a razão teórica, a razão prática, a arte e a moralidade) encontram a possibilidade de sua objetividade.65 Pelo contrário, a ontologia regional tem como interesse a delimitação das pretensões de validez “uma em face das outras”. Assim, o objetivo já não é garantir a objetividade, seja teórica (no marco ainda não totalmente abandonado das condições dadas pelo entendimento) ou prática (para além dessas condições), mas garantir a autonomia, isto é, a possibilidade de autolegislação de cada pretensão de validade segundo a forma de compreensão do mundo na qual se desenvolve.66

Assim, mesmo que ambas as filosofias aspirem a mecanismos de fundamentação universal, o kantiano é um procedimento “vertical”, enquanto o cassireriano “procura

62 Ibid., p. 148.

63 Ibid. 64 Ibid., p. 150.

65 Este padrão se impõe, certamente, por afirmação ou por negação do limite marcado pela crítica do

entendimento. Na introdução à Filosofia das formas simbólicas, vê-se muito bem este tratamento quando se resgata, do perspectivismo característico a cada esfera de compreensão, a unidade do programa sobre o qual se edifica cada ponto de vista singular: este programa é o mesmo cânone metafísico do qual provêm a Estética e a Analítica transcendental, isto é, as formas do tempo e o espaço, e o problema do ente e seus atributos. Cassirer, E. (1971). Filosofía de las formas simbólicas. México: Fondo de Cultura Económica.

uma fundamentação da autonomia ou a pluralidade irredutível” que horizontaliza a filosofia transcendental. Como diz González Porta, “Cassirer girou em noventa graus o eixo da filosofia transcendental”.67

Contudo, a tensão entre o “transcendentalismo crítico” e a “ontologia regional” se mantém, pois, uma vez achado o fato incontornável de múltiplos modos de compreensão da realidade, a pergunta pela objetividade volta sob novo signo e sob paradigmas distintos. A tensão é assim resumida por González Porta:

Tal como em Kant o real é produto de uma espontaneidade. Não obstante, diferentemente de Kant, agora se enfatiza que esta espontaneidade pode atuar de diferentes maneiras, isto é, ela pode estruturar a realidade de diversas formas, ou seja, construir vários ‘mundos’. Dito negativamente: não existe algo assim como ‘a’

realidade, mas em cada forma simbólica a totalidade do real é elaborada de maneira singular.68

A pergunta pela objetividade ou, mais precisamente, pela convivência de múltiplas pretensões de validade em igualdade de condições é a base, problemática claro, para o horizonte deste idealismo pluralista. A questão, em poucas palavras se diz assim: é possível uma versão pluralista do idealismo? Porém, somente na pergunta já está reformulado o idealismo objetivista kantiano, pois são muito diferentes a fundamentação da possibilidade do conhecimento em geral e a justificação de distintos modos de interpretação de mundo. A grande dissimetria entre os idealismos de Kant e Cassirer fica resumida nestas linhas: “A temática da objetividade não se dirige primariamente, como em Kant, à fundamentação da validade universal contra o ceticismo, mas à fundamentação de autonomias e especificidades contra o reducionismo”.69

Este giro é fundamental, pois a pergunta pela legitimidade de pretensões de validade próprias de “contextos de descrição da a ão” ou de formas de vida começa a se desprender do cânone marcado por uma teoria do conhecimento, para assumir, cada vez mais, uma orientação pragmática. O que aqui se anuncia é a necessidade de aceitação de uma virada do paradigma de compreensão do fenômeno, que passa de um simbolismo

67 Ibid., p. 150.

68 Ibid., p. 162. 69 Ibid., p. 163.

imanente a um simbolismo explícito. A interpretação alternativa da Filosofia das formas simbólicas oferece em perspectiva a direção de desenvolvimento da segunda tese sobre o símbolo.

Frente à leitura de um mero funcionalismo crítico entre as formas de compreender introduz-se um novo conceito de autonomia (1). Frente ao resíduo que ainda persiste em Cassirer de uma ordem hierarquizante de matriz cognoscitiva, opõe-se a tese da equidade das diferentes pretensões de validade das formas simbólicas (2). Finalmente, no interior do problema filosófico do uno e do múltiplo, a apelação a um conceito metafísico da totalidade fica redimida por um idealismo transformado em meio de arbítrio cada vez mais próximo de uma opção pragmático-discursiva (3). Apenas enunciarei as duas primeiras transformações para me deter na terceira que, por um lado, aproxima o idealismo pluralista à dialética das regras simbólicas e, por outro, nos introduz a um novo âmbito de recursos simbólicos da ação para a compreensão da narrativa que, em sua forma moderna, se apresentaria não só como modelo integrador dos estratos do simbolismo, mas também como “testemunho mimético” da ruptura com qualquer “ordem da totalidade” e como meio reflexivo da diferenciação de ordens ou esferas da ação.

(1) Na verdade, a virada do paradigma na própria filosofia transcendental já está anunciada pela primeira tese cassireriana, pois a espontaneidade na constituição do mundo passa, de uma atividade de síntese abstrata própria de um sujeito transcendental, a um meio simbólico do qual já dispõem os sujeitos empíricos.70 Esse meio simbólico não é privativo, em qualquer caso, de ninguém, nem tampouco surge ab ovo da arquitetura formal de uma consciência racional. “Pelo contrário, o sujeito que fala [o que se provê de um meio simbólico] se ergue desde já em um elo no processo de conservação e renovação de formas de pensamento e de vida estruturadas simbolicamente.” 71 Por isso, quando se fala de autonomia aqui, já não se faz referência à qualificação de uma arquitetura da consciência desligada de seu mundo natural e cultural, mas a autonomia dos modos únicos em que o meio simbólico nos abre ao mundo. E também, quando se fala de princípios específicos de cada forma simbólica que não se deixam reduzir uns aos outros, isto é, de um funcionalismo crítico, eles

70 Habermas (1999), op. cit., p. 24. 71 Ibid., p. 25.

devem ser entendidos de um modo bem diferente dos princípios categoriais que asseguram, por exemplo, a unidade da apercepção, ao modo kantiano. Tais princípios, mesmo que estruturem tipologias formais, já vêm dotados de conteúdo, pois eles são, ao mesmo tempo, produtores e produtos da textura cultural. Esses princípios já não garantem a unidade da experiência desde uma perspectiva objetivista, mas garantem a salvaguarda de cada esfera da experiência de mundo das pretensões absolutistas de qualquer cânone avaliativo. Talvez os principais exemplos de tal absolutismo sejam os que aceitam como válidas somente as descrições físicas do mundo, ou os que permitem a colonização total da razão política pela força do mito.

(2) Do mesmo modo como falamos de um “funcionalismo distinto” entre a “crítica da cultura” e a “crítica da razão”, também deve ser matizada a crença assumida em um projeto hierarquizante em A Filosofia das formas simbólicas. Porque a interpretação de um sujeito transcendental, integrado na multiplicidade da sua produção simbólica, implica tacitamente a impossibilidade de apelação a um padrão de validação das pretensões de validade, surgido totalmente além do próprio mundo configurado simbolicamente. A verticalidade de uma identidade racional conseguida sob a redução dos fenômenos empíricos a uma estrutura legaliforme que age de maneira espontânea, isto é, isenta de mundo, é transformada em uma identidade que joga a sua permanência na articulação de formas de compreensão de mundo diversas, porém igualmente válidas. É verdade que a estratégia concebida em A filosofia das formas simbólicas ainda parece apelar a certa “unidade ideal da razão”, que simplesmente se objetiva em perspectiva desde o ponto de vista de cada forma simbólica; e que, além disso, o ponto de confluência desta monadologia pareça, em certos momentos, ser o mesmo que acompanha especificamente os pressupostos de uma teoria do conhecimento (os problemas do tempo, do espaço e dos atributos do ente); porém, como diz Habermas:

Cassirer em nenhum caso atribui ao desenvolvimento da cultura uma lógica do progresso. No interior de cada uma das esferas se produz esta mesma dialética de crescimento e independência ao preço de novas dependências. E nenhuma forma simbólica, nem sequer o mito, perde o seu privilégio em favor de uma esfera diferente.72

(3) Agora, o que foi dito sobre a autonomia e sobre a equidade das formas simbólicas também altera a relação com o velho problema da tensão entre o uno e o

72 Habermas, op. cit., p. 37.

múltiplo. Se aquele surge como um problema de tipo cosmológico, a modernidade epistemológica o fez pendular entre as alternativas da egologia abstrata do sujeito transcendental que ao mesmo tempo constrói e caracteriza judicativamente o mundo dos fenômenos, e da teleologia de um espírito historicizado que submete as contingências e pluralidades culturais à lógica de uma filosofia da história previamente decidida.73

A virada efetuada pela Filosofia das formas simbólicas, e, em geral, pelo historicismo, a sociologia compreensiva e a hermenêutica de começos do século XX, foi, talvez, o início da compreensão do fenômeno da modernidade ou da modernização de um modo diverso das alternativas oferecidas por Kant e Hegel. Porque o fato incontornável do achado de um “pluralismo cultural” – ainda mais determinante que a evidência epistemológica de uma “multiplicidade objetual” – é apenas uma cara da moeda. A outra é a relação mesma do idealismo com essa realidade simbolizada, encarnada, que pretende subsumir. O idealismo se questiona assim a sua própria origem com a modernidade que o fez surgir. Trata-se simplesmente, como diz Ricoeur, da ideia de modernidade que descreve o passo do postulado da substância ao postulado da unidade funcional? Ou será melhor o fenômeno das transformações sócio-históricas do surgimento de esferas de valor diferenciadas em sociedades pós-tradicionais?

Não pretendo claramente sequer responder aqui a semelhante alternativa abrangente da história das ideias. Aquela me serve simplesmente de estímulo para defender, ainda em Cassirer, um idealismo que precisa estar sensibilizado com a estrutura simbólica da ação, tal como foi descrita por Ricoeur. Quais seriam as características deste idealismo? Em primeiro lugar, deve-se entender como um idealismo afastado da perspectiva de uma teoria do conhecimento que pretende a consecução de uma forma de identidade unitária sem considerar o caráter significativo singular das ações particulares em contextos de descrição específicos. Sua potência, pelo contrário, radica em sua possibilidade de comunicar, de traduzir, de regular as diferenças semânticas entre cada esfera. Em segundo lugar, deve-se dizer que podemos qualificar este “mecanismo de tradu ão” de idealismo, não porque produza uma esfera à parte além das esferas efetivas dos contextos de descrição, mas porque este deve, em qualquer caso, transcender o seu provincialismo. Trata-se de um mecanismo que produz formalizações ideais ou distanciamentos dos conteúdos primários das ações e seus

contextos. Toda comunicação entre as pretensões de validade das diferentes esferas implica exercícios contrafactuais ou ideais. Por último, devemos dizer que este idealismo só pode ser efetivo se conserva o caráter dialético do meio simbólico. Por um lado, trata-se de um mecanismo que surge dos próprios conteúdos que a rede simbólica da cultura oferece, mas que, ao mesmo tempo, deve limitar as suas abrangências para distinguir e regular os diferentes contextos de descrição. Em resumo, é um mecanismo que não pode assimilar-se de modo transparente à rede da cultura em sua totalidade.

Esta versão de um idealismo pluralista se comporta de modo análogo à já nomeada dialética das regras simbólicas. Poder-se-ia dizer, talvez, para reconduzir a nossa indagação ao território da fenomenologia do símbolo, que uma dialética das regras simbólicas seria uma versão fraca do idealismo cassireriano. Pois aquela se preocuparia, como diz Ricoeur, não com a coerência de uma unidade funcional além da ação, mas com a eficácia da ação enquanto social, ou, podemos dizer, simbolicamente articulada. Este pequeno apelo a uma pragmática da interpretação da ação simbólica faz com que seja difícil compatibilizar duas das afirmações básicas que resumem a fenomenologia do símbolo em Ricoeur. A primeira diz que o símbolo já é em si mesmo uma regra de interpretação. “Os símbolos são interpretações internas aos fenômenos culturais antes de serem objetos de interpreta ão.” Ricoeur chama aqui as regras simbólicas “operadores imanentes de interpretação de ações particulares”.74 Porém, a segunda afirmação diz que “os interpretantes que operam na cultura viram objetos de interpretação somente no texto do sociólogo ou do antrop logo”, ou no formato do simbolismo reduplicado das formas poéticas.75

Neste ponto, torna-se difícil a compreensão do por que a mesma sabedoria prática, que na forma de operadores de interpretação da ação é própria dos atores que executam ações legíveis em determinados contextos, parece ser retirada dos atores- intérpretes que na contemporaneidade da interação pudessem avaliar, à luz das próprias regras simbólicas, a efetividade, a correção, a comunicabilidade do agir realizado. Somente no caso exclusivo de ações instrumentais, nas quais o agente se encontra frente a uma natureza de objetos que deve manipular para atingir seus planos de ação, a efetividade da ação pode ser validada, e com reservas, pelo próprio sujeito. Para o caso

74 Ricoeur, “Poética y simbólica”, op. cit., p. 23. 75 Ibid.

dos gestos, das expressões, das emissões linguísticas, a efetividade é um resultado da interpretação por parte de ao menos outro agente. A efetividade da ação simbólica, por assim dizer, é uma efetividade interpretativa: sua compreensibilidade e avaliação dependem daqueles a quem a ação se dirige ou, inclusive, dos observadores não participantes da interação.76

A dialética das regras simbólicas, quando retirada essa competência interpretativa do avaliador contemporâneo à ação, parece quebrada. Pois, por um lado, não oferece ao agente os mecanismos para se assegurar de que suas ações puderam ser lidas “em termos de...”, “em função de...” tal regra simbólica. Sem essa confirmação do contexto, parece difícil entender como se pode atingir a reprodução simbólica de âmbitos culturais. A fórmula que delimita o contexto de descrição “em termos de...” perderia o seu sentido para o agente. Mas, por outro lado, impediria o exercício de contraste que o agente poderia fazer entre a significação de sua ação em determinado contexto e a significação da mesma ação em outros contextos. Este exercício de contraste a partir do modo de recepção da própria ação é o que vai definindo os contornos, os limites, das esferas de validade, ou das formas de vida ou das culturas em geral. O fracasso da ação no próprio contexto ou a inadequação ao contexto implica, enquanto processo de aprendizagem dos agentes, em primeiro lugar, o exercício de abstração da regra simbólica que serve de suporte à ação particular. O agente idealiza, formaliza o enunciado da regra e o separa dos conteúdos específicos das ações empíricas. O aprendizado de regras simbólicas já é um exercício de distância do ator, a respeito da iminência e assimilação da ação ao contexto. Mas, além disso, em segundo lugar, a contradição entre regras simbólicas de contextos diferentes leva à tematização, à relativização mesma de determinada regra que o agente pode aceitar ou rejeitar. As dissonâncias que se apresentam, nesse caso, entre atores e intérpretes terão que se desenvolver, as mais das vezes, pela via do diálogo argumentativo. Este exercício cotidiano de distância, esta competência interativa, é incontornável se, como diz Ricoeur, “o símbolo é em si mesmo uma regra de interpreta ão”.77

Só podemos entender a fórmula de um “simbolismo de segundo grau” se a interpretação redobrada da textualidade se refere ao fato de já existir uma hermenêutica

76 A não ser que falemos de ação estratégica ou de atos de fala perlocutivos. 77 Ibid.

prévia nas situações de diálogo que o texto não pode mais que acolher reflexivamente. Porque o que está em jogo aqui, além da ocultação de uma competência reflexiva dos próprios usuários das regras simbólicas, é a compreensibilidade mesma dos próprios textos.

Do contrário, Ricoeur recairia em um idealismo com pretensões semelhantes ao absoluto do idealismo objetivista que ele rejeita. Porque a textualidade liberada da dialética das regras simbólicas e das competências discursivas para explicitar a distância, e, ao mesmo tempo, redimi-la comunicativamente, é uma textualidade que revive um espírito extramundano, esvaziado dos meios de retorno, ou, como diz Ricoeur, de apropriação renovada de um material simbólico.