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Excurso sobre os tipos de “mímesis” e a “mímesis praxeos”

CAPÍTULO II: RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO DA VIDA E MÍMESIS NARRATIVA

II.4. Excurso sobre os tipos de “mímesis” e a “mímesis praxeos”

Vimos com Ferry a interdependência entre os processos de racionalização do mundo da vida e a própria diferenciação do meio discursivo em uma compreensão dinâmica da história. A distinção funcional dos discursos (narrativa, interpretação e argumentação) espelha uma transformação das relações sociais a partir do conteúdo específico de racionalidade potencialmente desdobrados em cada tipo discursivo particular. Agora, o caso da narrativa é particular se é que a definimos como mímesis da ação. Não parece possível, seguindo a mesma lógica, que as mudanças na maneira em que se vão definindo os componentes do mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade), isto é, os recursos para ação, e, igualmente, os referentes aos quais se orientam os sujeitos nas situações de ação, ou seja, as restrições à ação (mundo objetivo, social e subjetivo), não representem, por sua vez, modificações internas nas configurações narrativas. Este critério parece-nos fundamental para a distinção entre diversos tipos de mímesis. A noção de mímesis é demasiado abrangente e cheia de desdobramentos histórico-culturais como para tentar sequer uma estabilização conceitual neste espaço, porém, talvez seguindo essa via, podemos reduzir notavelmente

o âmbito da mímesis que corresponde às narrativas. O eixo central deste pequeno e, certamente diagramático excurso,56 está na questão de poder enxergar a especificidade de uma mímesis praxeos que, enquanto função discursiva, liberaria os registros discursivos narrativos do lugar limitado que Habermas e Ferry lhe outorgam nos processos de modernização das sociedades. A tese central seria que toda mímesis da ação é, por sua vez, uma mímesis especial das estruturas diferenciadas do mundo da vida.

De modo abstrato, gostaríamos de introduzir um tipo de oposição que nos parece muito comum nas definições de mímesis e que, em certa medida, remete à velha oposição que a respeito do termo inauguraram Platão e Aristóteles. Podemos resumir tal oposição assim: de um lado, encontramos uma mímesis discursivo-construtiva que, a partir do material oferecido pelo mundo, tapiza os fundos de saber do senso comum com o material da experiência transformado em sucessos e fatos relevantes, a partir dos quais os indivíduos podem configurar uma identidade pessoal e coletiva e podem significar uma história total dos destinos comuns ou privados (a). Do outro lado, encontra-se uma mímesis não discursivo-deconstrutiva que tem por objeto abrir aos sujeitos todos aqueles níveis de experiência que ainda não foram normalizados pela função representativa do discurso perante sucessos e fatos, quebrando desse modo a continuidade linear que tem, em geral, todo pensamento forjador de identidades57 (b).

Nossa hipótese consiste em afirmar que tal oposição está mal enfocada no que diz respeito às narrativas, e a razão principal está no fato de que aquela liga constitutivamente a mímesis com uma filosofia do ente. O critério é similar àquele que opõe o meio comunicativo à razão monológica das consciências individuais abstratas. Uma filosofia do ente desdiferencia o mundo da vida reduzindo-o ao jogo circular de espelhamentos entre natureza e cultura ou entre sujeito e objeto, do mesmo modo como faz na modernidade a chamada filosofia da consciência.58

56 Especialmente, no caso da mímesis em Adorno e Benjamin, por razões de tempo e espaço, apenas

menciono aqui certos tópicos gerais, e, em geral, me deixo guiar pela interpretação de Gunter Gebauer e Christop Wulf (1995). Mimesis. Culture, Art and Society. University of California Press, pp. 269-93. E pelas críticas respectivas do próprio Habermas nos capítulos dedicados a Adorno na Teoria do agir comunicativo e de Axel Honneth (2009), Crítica del poder. Fases en la reflexión de una Teoría Crítica de la sociedad. Madrid: Machado Libros.

57 Gebauer / Wulf, op. cit.

58 Embora [Horkheimer e Adorno] não analisem em detalhes qual é o funcionamento da razão, persistem nas apresentações de modelos que unem noções fundamentais da teoria do conhecimento idealista e da

(a) O modelo discursivo-construtivo tem sua origem, certamente, em Aristóteles, que associa à mímesis capacidades de abstração e formalização com o potencial para sintetizar a experiência cotidiana e reestruturá-la em um tipo de ordenação inovadora. Ricoeur, Habermas e Ferry podem subscrever, guardando as óbvias diferenças, aquela definição global. Agora, o problema começa ao tentar especificar o “objeto” das abstrações miméticas. Desde a ótica comunicativa de Habermas e Ferry a mímesis discursiva teria a função performativa da exposição dos acontecimentos desde um ponto de vista profano ou não teórico. “Na pratica comunicativa cotidiana, as pessoas se encontram com outras, e não assumem somente o enfoque de participantes, uma vez que elas também representam narrativamente dados que acontecem no contexto do seu mundo da vida”.59

A chave do modelo está na síntese de um tipo particular de enunciação que acolhe em si os fins discursivos da mímesis: “A narrativa constitui uma forma especializada da fala constatativa, que serve à descrição de eventos socioculturais e objetos. As representações narrativas dos atores se apoiam sempre num conceito secularizado de ‘mundo’, no sentido de um mundo da vida ou de mundo cotidiano, o qual define a totalidade dos estados de coisas que podem ser reproduzidos em histórias verdadeiras”.60 [O destaque é meu]. Eis a mágica performativa da mímesis. Com sua emissão as narrativas condensam aqueles eventos que “acontecem” aos seres humanos com os enunciados de tipo constatativo, isto é, aqueles que nos informam sobre os objetos do mundo, aqueles com os quais construímos o universo dos entes. É justamente por isso que Ferry pode dizer que a atividade narrativa aparece como “a tematização

teoria da ação naturalista. A razão subjetiva regula justamente duas relações fundamentais que o sujeito pode anter co os objetos poss veis. Sob o ter o “objeto”, a filosofia do sujeito compreende tudo que possa ser apresentado como essente [seiend]; e sob o ter o “sujeito” entende pri eira ente as capacidades de referir-se a entidades como presentes no mundo, com um posicionamento objetivador, e de se apoderar das coisas, de maneira prática ou teórica. Os dois atributos do espírito são representar [vorstellen] e agir. O sujeito refere-se a objetos ora para apresentá-los como eles são, ora para produzi- los como devem ser. Essas duas funções do espírito estão enredadas uma na outra: o conhecimento de estados de coisas está estruturalmente referido à possibilidade de intervenções no mundo enquanto conjunto de estados de coisas; por sua vez, o agir bem-sucedido exige o conhecimento do contexto dos efeitos em que ele mesmo intervém. No caminho que foi de Kant a Peirce, passando por Marx, quanto mais se impunha um conceito naturalista de sujeito, mais claramente ia chegando à consciência o nexo entre conhecer e agir, sob o viés da teoria do conhecimento. O conceito de sujeito desenvolvido no empirismo e no racionalismo, que estava restrito ao comportamento contemplativo, isto é, à apreensão teórica de objetos, é reformulado de modo que possa tomar para si o conceito de autopreservação desenvolvido na modernidade. TKH I, p. 519 / TAC I, p. 667.

59 Ibid., p. 206 / Ibid., p. 249. 60 TKH II, p. 206 / TAC II, p. 249.

reflexiva que produz o primeiro tecido simbólico do mundo circundante”.61 A mímesis liga os acontecimentos humanos com a totalidade de estados de coisas e, dessa maneira, constrói o primeiro vínculo entre o “agir”, enquanto vivência, e o nomear.62

A verdade dos sucessos narrados se expressa em histórias aceitas. Assim, as narrativas constroem a ponte para localizar os acontecimentos vividos em uma cosmologia geral dos fatos e objetos do mundo. Seu fim é, fundamentalmente, a fabricação de uma ontologia das coisas humanas. Nessa via, segundo ou não, se incorporam as vivências naquela ontologia ampliada, é possível a consolidação de uma identidade pessoal se se tem presente que “a sequência das próprias ações constitui uma vida representável mediante narrativas”; e de uma identidade social que “s é possível mediante o reconhecimento de que a manutenção de sua pertença a grupos sociais depende da participação em interações, pois elas estão envolvidas em histórias de coletividades representáveis de modo narrativo”.63

Seguindo aquele funcionalismo logicamente primitivo da narrativa, podem-se ir configurando, em versão moderna, vários dos leitmotivs do estatuto teórico do literário e do textual. A primeira preocupação consiste, nessa via, em identificar os critérios de verdade que já aplicamos aos objetos do mundo, no reino dos acontecimentos. Uma vez que se estabilizam as coordenadas contemporâneas da realidade e da ficção, a questão que mais atormenta a filosofia do literário é qual o grau de realidade outorgável aos eventos imaginários postos em histórias. Qual a distância entre as res factae e as res fictae. As soluções mais comuns e mais aceitas recaem na construção do conceito de verossimilitude como critério particular de validade para a matéria ficcional; ou na separação ontológica entre a atualidade do real e a virtualidade ou possibilidade da ficção. Depois de atingida uma incorporação destas distinções no senso comum, seja na lógica das conversações ou no “pacto da literariedade” entre texto e leitor, é possível desenvolver toda uma série de subfunções pragmáticas típicas como numeramos a seguir:

61 Ferry, op. cit. p. 107.

62 Ibid., p.107.

(1) As narrativas seriam o discurso privilegiado para a aceitação mais natural das transgressões ou ofensas à verdade, no sentido de exatidão dos fatos.64

(2) Esta possibilidade outorga à comunicação narrativa um potencial terapêutico, já que permite a figuração de uma ordem de compensação à angústia e ao fracasso. Trata-se de um nível arcaico de emancipação que opera no desenho daquilo que “pudesse ter sido, se a realidade se conformasse ao desejo”.65

(3) Finalmente, as narrativas têm um potencial edificante ao colocarem em cena o azar que, ao modo de sanção, castiga as transgressões aos princípios de realidade, isto é, às violações da ordem natural ou cosmológica.66 Perante aqueles acontecimentos que tentam inscrever à força as vivências nos fundos inescrutáveis do reino dos entes, a natureza cobra a sua vingança.

Agora, levada ao limite, esta ideia, ao mesmo tempo terapêutica e sancionadora, da mímesis discursiva do ente, se torna o substrato antropológico do que Adorno chamaria o “pensamento identificante”, que castiga como desviada qualquer ruptura com a lógica de correspondências entre o pensamento e a realidade. Esticada ao máximo a mímesis do ente, que coloca no mesmo plano as disposições do agir e a representação das coisas do mundo, não tem mais remédio que cair em uma dialética da ilustração pela qual as forças da natureza, mediante a figura do destino, acabam por se rebelar contra as representações a que foram submetidas, mediante a figura do domínio.

Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento colocam não o recurso da mímesis representativa, mas toda forma de pensamento discursivo, sob os cânones da exposição de fatos e acontecimentos, isto é, sob os moldes de uma filosofia do ente. Se se traduzirem todos os desejos de conhecimento ou manipulação dos entes, pela relação funcional entre o homem e a natureza, todas as intenções e fins que entram no campo semântico do conceito de “ilustra ão” ficam submetidos a um único princípio: a lógica da autoconservação. A única saída possível, nesse panorama, é, por sua vez, o achado de uma forma de mímesis transcendente a toda prática discursiva. Falaremos dela no seguinte ponto.

64 Ferry, op. cit., p. 106.

65 Ibid., p.106. 66 Ibid., p.106.

Entretanto, se olharmos detidamente a listagem de funções pragmáticas mentadas poderemos refletir que aquilo que, na verdade, se rebela, que procura o seu lugar no modelo de uma mímesis discursiva do ente, não é, nem necessariamente nem em primeiro lugar, uma natureza reprimida inominada, mas o vocabulário, a sintaxe e o contexto do discurso da ação que, de maneira nenhuma, pode ficar hipotecado à representação, exposição e manipulação de estados de coisas.

Perante o fim discursivo da exatidão dos fatos, pode-se dizer que o discurso narrativo se compõe de muito mais formas de enunciação que aquelas pelas quais podemos “aceitar” certas transgressões à verdade, isto é, não podem ser reduzidas sem violência à forma dos enunciados constatativos (só poderíamos dizer isto, e ainda com dificuldade, de relatos contados a partir de um narrador omnisciente, que excluísse qualquer marca sintática de alusão a um diálogo, seja entre seus personagens, seja em referência a um leitor potencial). Perante o fim discursivo do efeito terapêutico, também podemos dizer que o espectro das restrições aos desejos dos ouvintes de narrações não se restringe à força coativa do reino da natureza, mas também ao poder não violento de normas aceitas e aos próprios limites construídos sobre os conteúdos da personalidade. Nenhum desses elementos tem por que ficar excluído da matéria dos relatos. Finalmente, a noção de destino não pode ser compreendida mais que por um conceito de ação, no interior de uma semântica própria que já não é a de dizer o mundo. Motivos, intenções, objetivos, obstáculos, circunstâncias delimitam a estrutura básica de um modelo de ação; neste caso, a ação teleológica que, esticada ao máximo nos termos confrontados de espírito e natureza, não pode ser definida mais que como agir instrumental. O destino enuncia como conclusão a cada relato o triunfo ou fracasso dos acontecimentos perante a ordem natural. Mas se, inclusive, as funções pragmáticas desprendidas dos enunciados descritivos contidos nas narrativas nos obrigam a passar do plano de referência de um conceito profano de mundo ao plano do discurso da ação, teríamos que aceitar que a mímesis discursiva não encontra nenhum impedimento para fazer o relato de outro tipo de ações que não o agir instrumental. Seguramente nem Habermas nem Ferry negariam isto, mas não se precatam que uma mímesis de ações de tipo normativo ou expressivo em uma sociedade diferenciada obrigaria a fazer a separação intuitiva entre fatos e acontecimentos a nível dos enunciados linguísticos, isto é, a quebrar a homogeneidade funcional dos enunciados narrativos. Vamos retomar aquilo mais adiante.

(b) O modelo não discursivo-deconstrutivo, a meu ver, parte da imagem, tomada pelo avesso, que Platão outorgou a mímesis enquanto representação dos entes duas vezes degradada de seus ideais suprassensíveis. Mas aquele modelo transforma a figura da negação numa potência que permite “salvar”, sublimadamente, um tipo de experiência originária – em qualquer caso, não sempre declarada, – da relação com a natureza de suas representações instrumentais. Essa “outra verdade” mais originária encontra-se duplamente oculta, através de duas generalizações: em primeiro lugar, do conceito de verdade próprio do pensamento identificante, o qual se expressa na fórmula de concordância entre discurso e realidade; e, em segundo lugar, através de um conceito de racionalidade que impõe o princípio da autoconservação a toda relação entre os homens e as coisas do mundo, ou entre eles mesmos.

Ambos expressam, o primeiro, um modelo de conhecimento, e o segundo um modelo de ação. Dentro dos marcos das filosofias do ente e da consciência, entende-se todo conhecimento como representação, e toda ação como agir instrumental. A integração desses dois atributos do espírito desenha uma antropologia de dupla face, onde uma face mostra a natureza humana como autoconservação, e a outra como mímesis, isto é, como a verdade oculta que, paradoxalmente, só é objetivável enquanto negação da primeira.

Este resumo, apressado certamente, serve, contudo, para tentar uma divisão interna desta mímesis não discursiva. Em primeiro lugar, poderíamos falar de uma mímesis infradiscursiva que abarcaria todas as tentativas de definição da mímesis como o “outro” do discurso. Trata-se de uma mímesis à qual se chega por vias não verbais, mesmo que, finalmente, para poder tornar seus ganhos comunicáveis não se tenha mais recurso que recorrer, paradoxalmente, à ajuda do verbal e do conceito. Vou me limitar aqui, simplesmente e de modo esquemático, ao exemplo da mímesis em Adorno.

Em segundo lugar, falaríamos de uma mímesis supradiscursiva, que compreenderia aquelas tentativas de definição da mímesis como um tipo de conhecimento ou experiência ao qual se chega transcendendo o discurso, isto é, servindo-se da experiência discursiva para chegar a algo “além dela” que já não cabe dentro do comunicável por meios verbais. Esta segunda categoria tem, além de tudo, a característica de retomar paulatinamente a via aristotélica sob a figura da catarse.

Vamos nos deter na definição de Benjamin que, na verdade, aparece como uma espécie de dobradiça entre a mímesis infra e supradiscursiva.

A mímesis infradiscursiva pode ser apresentada em dois momentos diferentes na obra de Adorno. O primeiro estaria caracterizado pela imagem de uma mímesis primária da natureza que toma vingança de uma mímesis secundária das representações. O segundo, digamos, mais positivo, introduziria uma mímesis mnemônica que procura um espaço de não violência ao ativar a lembrança da natureza nos sujeitos. Em qualquer caso, apesar desta divisão, é possível identificar certas premissas que se confirmam ou até se radicalizam no decorrer do conceito nos dois momentos.

Em termos gerais, Adorno parece suster toda a sua teoria da mímesis em uma petição de princípio, dialeticamente apresentada, com a qual se fundamenta a sua antropologia. Aquela assume que toda forma de ilustração se desenvolve nos cânones de um tipo de racionalidade cujo único poder cognitivo é a dissociação e correspondência entre sujeito e objeto; e que, desde sua origem, aquela racionalidade colonizou a pluralidade possível dos sentidos da ação no telos, paradoxalmente irracional, da dominação da natureza. A partir daí, o objetivo central que move a investigação no contexto de uma teoria crítica, isto é, o telos emancipatório, só pode ficar localizado em um lugar transcendente. Só resta invocar “outra” ilustração, abdicando de todos os meios que a velha ilustração subministra, em especial, o meio discurso. Afinal, será a obra de arte o meio pelo qual aquela invocação pode virar objetiva, mesmo em seu caráter enigmático. Os traços principais desta base argumentativa conformam o que Axel Honneth chamou a “tese tecnocrática”.67

67 Resumo aqui, parafraseando A. Honneth, os traços centrais da tese tecnocrática de Adorno e

Horkheimer na Dialética do esclarecimento: Trata-se ao mesmo tempo de uma tese de filosofia da história, de uma teoria da dominação e de uma dialética da identidade subjetiva como fundamento normativo para a emancipação. Como filosofia da história, aproxima-se do tipo de crítica cultural que entende a objetivação da natureza feita pela técnica e a ciência como um signo de decadência da cultura. Adorno e Horkheimer levantam a ligação epocal que o fenômeno da industrialização tem para as sociedades complexas da modernidade, e remetem o processo inteiro a uma razão instrumental constitutiva da “hist ria natural” da espécie desde seus prim rdios. A razão instrumental deixa-se ver já nos modos de intervenção manipuladora dos processos naturais que defrontam os sujeitos com uma natureza indomável. Desde o passo primitivo de uma forma passiva de defesa, os sujeitos desenvolvem, graças ao pensamento coisificador, uma forma ativa de controle. O acúmulo de experiências com o meio natural faz com que a multiplicidade de estímulos que ele provê seja finalmente reduzida a um leque de componentes conceituais organizados sistematicamente, de tal modo que resultem funcionalmente significativos para as intervenções práticas.

Como teoria da dominação, a tese tecnocrática enxerga no controle instrumental da natureza e em sua base cognitiva o modelo original de toda forma de dominação. O meio principal de aprendizagem das

O primeiro momento da mímesis primária da natureza é apresentado na Dialética do esclarecimento, e nele se mostram narrativamente as diretrizes de sua antropologia. A estratégia consiste em dissolver a distância histórica e empírica que separa o mito da ilustração. Depois da exposição geral da tese central no primeiro ensaio do livro, o segundo ensaio exemplifica aquela pretensão ao localizar a razão ilustrada bem no meio dos próprios mitos de origem que se espalham no horizonte homérico da Odisseia. O herói da epopeia é já o primeiro ilustrado.68

A tese interpretativa do poema é a seguinte: para se autoafirmar no seu próprio mundo, logo depois da distância imposta pela aventura bélica, o herói recorre a uma inédita forma de inteligência que se distingue a cada vez dos meios mágicos que caracterizam o proceder dos heróis míticos da Grécia arcaica. Contudo, o preço a pagar