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A mímesis praxeos para além da mímesis do ente e do bidimensionalismo entre natureza e

CAPÍTULO II: RACIONALIZAÇÃO DO MUNDO DA VIDA E MÍMESIS NARRATIVA

II.5. A mímesis praxeos para além da mímesis do ente e do bidimensionalismo entre natureza e

A distinção entre uma mímesis do ente e uma mímesis praxeos serve, conforme os fins deste capítulo, para mostrar como nos processos de racionalização das sociedades modernas, além de uma diferenciação dos tipos de ação em esferas de valor e formas de validação, além de uma diferenciação funcional dos registros discursivos, também é previsível uma diferenciação interna dos próprios discursos e, especialmente, daquele que nos interessa, a narrativa. Pois, enquanto passamos da racionalidade unidirecional de um sujeito, enfrentando prática e cognitivamente a um mundo de objetos, a uma racionalidade plural de sujeitos encarnados em âmbitos diferenciados do mundo da vida, o genitivo praxeos, que delimita a abrangência das orientações miméticas nas narrativas, não tem mais opção que evoluir, a cada vez, de modo mais complexo.

Interessam-nos, nesta Primeira parte, aqueles aspectos relacionados com a pré- compreensão da ação (a sua semântica, e a sua simbólica) que, como temos advertido, encontram-se diferenciados nos âmbitos das imagens de mundo que formam a cultura; nas instituições e tipos de interação que caracterizam a sociedade; e nos sistemas de representação, as motivações e as expressões que identificam as personalidades.

Neste sentido, a obra de John Redfield, Nature and Culture in the Iliad. The Tragedy of Hector, especialmente o capítulo dedicado à definição da tragédia é muito iluminador, pois faz ênfase na especificidade dos objetos da mímesis praxeos. Na esteira da Poética de Aristóteles, Redfield propõe um modelo de definição universal da ficção, a partir de um dos seus gêneros mais originários, a tragédia grega. Redfield parte daquela passagem nuclear da Poética, no capítulo VI, anterior inclusive à enumeração das partes da tragédia, na qual se mencionam os objetos possíveis da mímesis trágica. A tragédia é uma representação de ações, mas entendemos aquelas ações na encenação do

caráter e do pensamento. Aristóteles chama esses dois elementos, as “causas naturais da a ão”. Redfield se refere a elas como as fontes da ação. Mediante aquela definição se estabelece a equivalência entre a esfera da ação e a esfera da liberdade. Uma ação submetida a restrições é para Aristóteles uma contradição nos termos, não é uma ação em absoluto. Uma pessoa obrigada mediante a força a realizar este ou outro comportamento não está atuando em verdade. Deixaremos esta ideia fundamental da filosofia clássica da ação em suspenso.

O mais importante, neste ponto, é que as decisões livres dos atores, que os poetas mostram ao exibir o caráter e o pensamento, têm como conteúdos valores e normas, isto é, trata-se de conteúdos simbólicos. Redfield chama a eles as condições da ação. Mas, com isso não está querendo dizer, necessariamente, que aquelas sejam restrições que se oponham à vontade dos atores, mas que elas são características do tipo de ação que realizaria um ator situado em uma cultura com determinados valores e normas, perante os quais a sua ação pode ser avaliada.84 Quando dizemos que a ação, conformada por caráter e pensamento, é dependente de valores e normas, que, por sua vez, são prescritos pela cultura, estamos afirmando, de certo modo, que o objeto da orientação da mímesis é cultura em si mesma.

Porém, a cultura como objeto de ficção pode ser interpretada em dois níveis, seja desde o ponto de vista do ator, seja desde a ótica dos leitores ou espectadores. Pois, segundo Redfield, os valores e normas não explicam a ação para o ator em si mesmo. Elas, talvez, servem para justificar suas ações, no caso em que ele seja compelido a fazê-lo. “Um fim ou procedimento pode ser justificado nos termos de outro”,85 mas a ação, pensa Redfield, encontra-se fundada afinal em valores e normas incondicionados. Desde o ponto de vista do ator, os valores e normas não são restrições a sua ação, mas “ (teleologicamente) as fontes, os recursos para sua ação”.86

Pelo contrário, desde a ótica dos leitores ou espectadores, os valores e as normas estão cultural e historicamente determinados. Assim, podemos “explicar as ações das pessoas nos termos dos valores e normas da sua cultura”.87 Quanto mais distanciados

84 Redfield, p. 70.

85 Ibid., p. 70. 86 Ibid. 87 Ibid., p. 70.

nos encontramos espacial e temporalmente de uma obra de ficção, mais difícil resulta o entendimento das razões que utiliza o ator para se justificar. Por exemplo, sabemos que o samurai atua seguindo um código, porém cada vez nos é mais difícil compreender como aquele código serve ao samurai, no seu foro íntimo, como fonte de motivação. Assim, “perdemos o sentido que o ato tem para o ator; nós não o vemos como um ato livre mas determinado”.88

Nesse sentido, fica claro que as coordenadas da ação, recursos ou restrições, variam conforme esses dois níveis: o que em um nível se entende como recurso, no outro se entende como restrição. Para Redfield, essa descontinuidade é a chave do laboratório que as obras de ficção colocam em jogo. Elas teriam como procedimento o drama das relações entre a atualidade da cultura, segundo a qual os atores encarnam e criam as suas próprias situações, e os fundamentos da cultura, os ideais ou ideias segundo as quais podemos explicá-las,89 e que, desde nossa ótica como leitores ou espectadores, encontram-se por traz dos atores e predeterminam o seu agir.

Porém, essa descontinuidade está construída a partir de uma divisão mais abrangente entre as esferas da natureza e da cultura. O critério para distinguir ambos os âmbitos é claramente construído a partir do teorema da ação teleológica: “aquelas coisas que podem ser de outra maneira graças à escolha, ao esforço e à aplicação do conhecimento constituem a esfera da cultura”.90 Estes são os recursos para a ação. Pelo contrário, aquelas coisas que não podem ser de outra maneira, utilizando as mesmas faculdades, constituem a esfera da natureza.91 Estas são as restrições para a ação.

Igual ao critério de distinção entre o ponto de vista do ator e o ponto de vista do espectador, o critério de distinção entre natureza e cultura é flexível. Pois, mesmo que a natureza proveja o ator de uma ordem duradoura, um cosmos e uma realidade material que a cultura deve respeitar (os humanos têm necessidades orgânicas, são dependentes na infância, existem dois sexos e são mortais), a cultura, enquanto aparece ao ator como inquestionável e fixa, adquire o status de natureza. “O hábito é uma espécie de segunda

88 Ibid.

89 Ibid., p. 71. 90 Ibid., p. 70. 91 Ibid., p. 71.

natureza; a estrutura social é percebida como natural enquanto não se tenha nenhuma consciência de mudan a”.92

A flexibilidade do limite que separa a cultura da natureza, segundo aquele critério, está em direta relação com a particularidade das culturas e aquilo que cada uma delas constituiu como inquestionável ou imodificável. Cada cultura fixa as restrições particulares para o agir. Conforme aquelas coordenadas, Redfield define as duas operações básicas que caracterizam o fazedor de ficções: em primeiro lugar, deve estatuir as restrições, o corpo de normas que predeterminam as ações a serem imitadas. As ficções criam uma natureza hipotética (conformada tanto por fatos brutos quanto por normas culturais); em segundo lugar, sob esse contexto de restrições hipotéticas o autor desdobra a cadeia de ações de pessoas que perseguem a felicidade, e que triunfam ou fracassam no uso das condições para seu agir que eles consideram conformes àquilo que deles se espera, isto é, conformes às restrições da cultura à qual pertencem. Redfield diz: “A interpretação de uma obra tem, então, em esquema, dois aspectos. Devemos primeiro identificar as premissas da obra, as restrições hipotéticas sobre a ação. Depois, devemos reconstruir a ação e mostrar sua probabilidade e necessidade”.93 [O destaque é meu].

Agora, essas operações que se podem sintetizar como o jogo de colocar uma ação completa sob restrições hipotéticas podem oferecer definições parciais da ficção e da tragédia, segundo sejam observadas do ponto de vista do ator ou do ponto de vista dos espectadores.

Redfield aclara que o interesse primeiro do poeta é, justamente, nos mostrar as ações desde a ótica daqueles que as experimentam e sofrem. A figura do pathos implica o interesse do poeta pela ação concreta, não só como resultado das causas dos eventos, mas na forma pela qual os eventos são sentidos pelas personagens. Uma pergunta clássica do drama pode ser esta: “Como pude me fazer isto a mim mesmo? ”. As normas da cultura aparecem para o ator como aquilo que lhe prescreve os fins e lhe identifica os meios para seu agir. “O ator tem alguma ideia do que é um ato valioso e algumas ideias de como efetuá-lo”.94 Porém, a ação se defronta com resultados inesperados que

92 Ibid., p. 71.

93 Ibid., p. 72. 94 Ibid., pp. 82-3.

provocam o sofrimento do ator ou de outros pela ação do ator. O mythos não é outra coisa que a configuração de uma ordem coerente entre praxis e pathos, isto é, entre o agir feito conforme as fontes da cultura e os resultados não esperados pelo ator, os quais separam a ação realizada do caminho que a conduzia à felicidade que tinha como fim.

Desde essa ótica, Redfield pode definir a ficção como a criação na qual as regras da cultura são colocadas sob determinadas restrições inteligíveis e, desse modo, pode se inquirir sobre o seu funcionamento. O poeta faz testes imaginários da capacidade de funcionamento das normas de sua própria cultura.95

Desde o ponto de vista dos espectadores, o assunto é ainda mais complexo e a definição da tragédia ganha em especificidade, mas também em universalidade. Pois para os espectadores as normas estabelecem um marco de expectativas a respeito da performance dos atores. O espectador tem assim a possibilidade de distinguir dois níveis interpretativos da norma. De um lado, o que Redfield chama normas ideais, que são as mesmas que aparecem ao ator, isto é, que prescrevem os fins e identificam os meios. E de outro, as normas descritivas que estimam, sob determinadas condições ou restrições, como os atores responderiam às prescrições da norma ideal. “As normas culturais variam nos dois níveis; homens diferentes em momentos e lugares diferentes têm ideias diferentes da virtude e da felicidade, e têm também diferentes expectativas quanto à probabilidade de encontrar, na experiência atual, homens que sejam virtuosos e felizes”.96 Uma característica adicional do contexto sociocultural da tragédia é que a “norma ideal” está ligada ao caráter. Existe, de antemão, uma distância interpretativa entre os caracteres heroicos das personagens trágicas e os espectadores contemporâneos ao espetáculo da representação. Para eles, membros de uma nova cultura cidadã, os heróis da tragédia são tipos ideais, são spoudaios, homens excelentes. Não são simplesmente uma classe de homens, mas desenham uma imagem do humano per-se.97

Com esses pressupostos, a pergunta central da tragédia seria esta: assumindo que pessoas excelentes se servem para suas ações dos recursos que determinada cultura providencia, sob que circunstâncias aqueles recursos resultam inadequados? O poeta trágico não só testa os limites da cultura, mas, ao fazê-lo, mostra o inesperado de

95 Ibid., p. 80.

96 Ibid., p. 83. 97 Ibid., p. 84.

pessoas excelentes que seguem normas ideais e, contudo, os resultados são disfuncionais e problemáticos.

Assim, a tragédia seria o gênero no qual uma cultura não só é posta à prova, mas se torna problemática. A tragédia ocupa-se da disfuncionalidade de determinada cultura. Para Redfield, essa caracterização não só especifica a tragédia como gênero, mas a eleva a um tipo ideal de ficção que se desenvolve até nossos tempos modernos.

A partir desta reconstrução, gostaríamos de ressaltar três traços específicos da definição da tragédia em Redfield, enquanto modelo da ficção que a diferencia radicalmente do que temos chamado uma mímesis do ente: primeiro, Redfield reitera o status específico de símbolos dos objetos característicos da representação: caráter e pensamento provêm de complexos de normas e valores. Não são simples coisas no mundo mas “regras e conteúdos simb licos”.

Segundo, o mundo da ficção imaginado pelo autor não é, simplesmente, uma ordem espaço-temporal na qual são inseridos sujeitos de ação. É, como diz Redfield, um mundo construído sob restrições hipotéticas de ordem normativa e valorativa. Desde a ótica do discurso particular que é a narrativa, podemos chamar aquelas restrições de “pressuposi es pragm ticas” que se supõem necessárias para o entendimento dos relatos por parte dos leitores ou ouvintes.

Terceiro, as restrições hipotéticas não aparecem com determinações fixas ou, pelo menos, não para os espectadores. Elas estão submetidas ao laboratório imaginativo da criação narrativa. Elas são “testadas”. Assim, a narrativa pode se definir em termos gerais como um laboratório de tais restrições hipotéticas.

Entretanto, segundo nosso ponto de vista, Redfield continua ligado ao paradigma de uma mímesis do ente, enquanto reduz o que seria uma imitação do cenário em relevo do mundo da vida ao universo plano das dimensões que formam a natureza e a cultura. Se colocamos a cultura como o avesso indiferenciado de tudo aquilo que constitui nossas restrições naturais à ação, mas, ao mesmo tempo, a convertemos sem modificações internas em uma segunda natureza para os personagens das ficções, assumindo hipoteticamente que se apresenta a eles com os mesmos traços duros da primeira, acaba-se por cair em um círculo vicioso. Culturalismo é, em última análise,

estrito naturalismo, como o próprio Redfield parece dar a entender.98 Só muda o nome, dependendo do ponto de vista do ator ou do espectador.

A separação bidimensional nas ordens da natureza e cultura, da esfera da liberdade e das restrições materiais, e das personagens que atuam conforme um código e os espectadores que podem explicar tal código, é típica de uma mímesis do ente. Pois uma mímesis da ação deveria perguntar-se pelas competências racionais que permitiriam aos sujeitos questionar os limites entre uma e outra das ordens. Redfield outorga, como pressuposição pragmática, o caráter e o pensamento às personagens das narrativas que, nós supomos, são características humanas. Porém, ele nos obriga como espectadores a retirarmos daqueles recursos da ação os tipos de racionalidade que permitiriam aos atores transcenderem os limites de suas próprias restrições culturais. Aquilo significaria que as restrições hipotéticas, os contextos e as situações de ação objetos da mímesis são muito mais amplos que aquelas fixadas por uma cultura particular. O poeta não só cria restrições hipotéticas com base na cultura à qual pertence ou a qual descreve, mas também estabelece os cenários possíveis em que aquelas restrições seriam discutidas, convertidas em tema pelas personagens, seja em interações explícitas, seja em reflexões.

Como se entenderiam estas ampliações das restrições hipotéticas para além das prescrições culturais?

É muito interessante pensar na tragédia, como Redfield e também Ricoeur fazem, enquanto um tipo ideal do qual se podem extrair traços aplicáveis às narrativas em geral. Isto porque a tragédia, na sua origem, possui traços únicos que a fazem irredutível a qualquer outro gênero, especialmente pelos antecedentes sócio-históricos que a ligam ao surgimento das cidades. E, ao mesmo tempo, são justamente essas particularidades que lhe permitem evoluir e aparecer transformada em outros momentos históricos. Gostaríamos de ressaltar, a partir dos já clássicos estudos de Jean-Pierre Vernant, dois aspectos centrais do contexto social da tragédia ática que, ao mesmo tempo que mostram a sua singularidade, seu caráter de gênero datado e finito, também lhe conferem vários dos potenciais que podem continuar se desdobrando nas formas de narrativas posteriores.

98 “Quaisquer que sejam as premissas, a l gica interna da a ão deve seguir certas regras que entendemos;

a alternativa não é um novo significado para a ação, mas nenhum significado. É neste sentido, então, que toda fic ão é naturalista.” Ibid. p. 72.

Em primeiro lugar, o status de instituição social com o qual se instaura a tragédia nas cidades lhe outorga uma qualidade especial absolutamente distinta, por exemplo, a função de reprodução simbólica de conteúdos tradicionais que tinham os antigos aedos:

A tragédia não é somente uma forma de arte; é também uma instituição social que, pela fundação dos concursos trágicos, a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários. Instaurada sob a autoridade do arconte epônimo, no mesmo espaço urbano e seguindo as mesmas normas institucionais que as assembleias ou os tribunais populares, um espetáculo aberto a todos os cidadãos, dirigido, representado, julgado pelos representantes qualificados das diversas tribos, a cidade se faz teatro; ela se torna de alguma maneira objeto de representação e se representa ela mesma perante o público.99

Em segundo lugar, o modo de representação pelo qual se apresenta o encadeamento dos acontecimentos, o mythos como tal, se desdobra a partir de debates internos entre os personagens:

Os personagens heroicos aproximados pela linguagem do homem ordinário não são simplesmente apresentados no palco aos olhos de todos os espectadores, mas, através das discussões que os opõem aos coristas ou uns aos outros, eles viram objeto de debate; eles são de alguma maneira postos em questão perante o público.100

É claro que, à diferença das assembleias ou tribunais, a tragédia não tem como função tomar decisões executivas ou jurídicas ponderadas que afetem positivamente o destino das cidades. Igualmente, mesmo que a tragédia esteja inundada de termos técnicos do direito, seu uso não é para decidir juridicamente a sorte dos personagens trágicos, mas, como diz Vernant, para jogar com as suas incertezas, seus deslocamentos de sentido e suas incoerências.101 É comum a definição da tragédia como um tipo de composição que introduz um universo cultural caracterizado pela transformação em drama de sistemas de oposições absolutas, de choque de valores e normas antinômicos, e de tensões e ambiguidades irresolúveis. Porém, mesmo assim, esses dois traços característicos, o status de instituição e sua mímesis da discussão pública, fazem com que, como modelo de representação, isto é, internamente, a tragédia deva dar “um passo ao costado” do universo ou universos culturais que representa.

99 Vernant, J. P. (2001). Mythe et tragédie en Grèce ancienne I. Paris: La Découverte, p. 24. 100 Ibid., p. 14.

Eis como a fórmula de Redfield, que nos serve de guia sobre como devem ser interpretadas as narrativas, isto é, o jogo de colocar uma ação sobre restrições hipotéticas que para o ator se apresentam como recursos, precisa de uma notável ampliação. Pois os elementos de uma mímesis das instituições e de uma mímesis da discussão pública fazem com que aqueles recursos, com os quais revestimos imaginativamente a racionalidade do agir das personagens do relato, não sejam, simplesmente, mais que “falsos recursos” que operam por trás das decisões e intervenções dos atores e que nos explicam seu comportamento enquanto seres jogados à sua própria intriga (mythos), isto é, aos limites do seu universo cultural. O teste dos limites da cultura de que fala Redfield e Ricoeur não pode ser apenas um acaso interpretativo de leitores bem treinados – leitores que, por exemplo, devem possuir uma potente enciclopédia para reconhecer os contextos histórico-culturais com os quais se constroem as restrições para cada relato –, ele opera já desde dentro da mímesis narrativa, no que podemos chamar sua diferenciação interna. A diferenciação interna das estruturas do relato se coloca assim como pressuposição para a compreensão dos mesmos. Uma mímesis das instituições, da discussão e, acrescentamos, da reflexão individual ou cooperativa imediatamente faz explodir o cânone do sistema hipotético de restrições-recursos histórico-culturais, que afinal só tem como elemento diferenciador o seu correlato “espelho”, que é o sistema hipotético de restrições-recursos materiais ou da natureza. A especificidade do gênero trágico faz com que a esses dois sistemas devam ser acrescentados os níveis de um sistema hipotético das restrições-recursos sociais, no qual se faz mímesis dos elementos normativos com os quais as pessoas das cidades aprenderam a fazer gestão – com sucesso ou calamitosamente – da sua crescente pluralidade cultural; e um sistema hipotético das restrições-recursos da personalidade, no qual se faz mímesis das capacidades de que dispõem os membros de uma cultura ou sociedade para refletir sobre os limites da sua cultura articulada