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4. Economia Solidária

4.2 Economia Solidária: Teoria e Prática

4.2.1 Diferentes visões sobre a abrangência da Economia Solidária

Para contextualizar a economia solidária em uma perspectiva econômica mais ampla, França e Laville (2004) apresentam uma discussão inicial sobre o conceito de economia. Estes autores argumentam que é necessário compreender a economia como uma construção sócio-histórica cuja forma atual não corresponde a uma realização final da evolução humana. Desta forma, estes autores refutam a visão defendida por Adam Smith que coloca o mercado como algo natural.

Apresentando uma visão mais ampla sobre a economia, França e Laville (2004) retomam a pesquisa de Polanyi (1983), na qual apresenta quatro princípios do comportamento econômico:

- domesticidade; tem como princípio prover as necessidades do grupo. - reciprocidade; relação estabelecida por seqüência durável de dádivas. As transferências são indissociáveis das relações humanas.

- redistribuição; produção fica a cargo de uma autoridade que tem responsabilidade de distribuí-la.

- mercado; lugar de encontro entre oferta e demanda para fins de troca. Após apresentar os diferentes tipos de comportamentos econômicos, o autor faz uma análise histórica e afirma que antes do século XIX, os três primeiros princípios predominavam sobre o mercado, sendo que no decorrer do século XIX este modo passa a ser predominante.

Além de argumentar que o mercado não é uma forma natural e única de organização econômica, coloca que outras formas de organização econômica com lógicas distintas coexistem com o mercado.

Outro autor que argumenta sobre a coexistência de outra lógica econômica no interior do modo de produção capitalista é Gaiger (2003) pág. 12, que coloca:

“à medida que avança, o capitalismo dissolve ou mantém reclusas

outras formas de produção... deixa as formas sociais atípicas em uma situação de instabilidade, mas não as descredencia de todo a sobreviverem no interior do modo de produção capitalista”.

Somente a partir da compreensão sobre uma multiplicidade de princípios econômicos é possível compreender como grande parte das populações, sobretudo de terceiro mundo, consegue sobreviver regida prioritariamente pela solidariedade.

França e Laville (2004) colocam que a introdução da comunidade política moderna implicou um rearranjo dos princípios apresentados por Polanyi, o que leva a distinguir três economias: a economia mercantil, a economia não-mercantil (estatal-redistributiva) e a economia não-monetária, que reagrupa de certo modo a economia reciprocitária e a economia doméstica, abrangendo um amplo campo de atividades não monetárias como a autoprodução, o benevolato ou voluntariado, o trabalho doméstico etc. Como desdobramento do trabalho de Polanyi, deve-se associar a cada uma destas três economias um princípio de comportamento: à economia mercantil, o interesse individual, à economia não-mercantil, a obrigação, e à economia não monetária, um “impulso reciprocitário” que nada mais é do que a lógica da dádiva.

Após argumentar sobre a multiplicidade de princípios que existem na economia, França e Laville (2004) definem a economia solidária como uma tentativa de

articulação inédita entre economia mercantil, não mercantil e não monetária. Sendo assim, não seria uma nova forma de economia que viria acrescentar no sentido de uma eventual substituição.

A visão da economia solidária como uma economia plural foi elaborada a partir do estudo de diversos casos, onde estes autores verificaram que os empreendimentos de economia solidária articulam diversas fontes de recursos: o mercado, através da venda ou prestação de serviços; os poderes públicos através de várias formas de subsídios; e os recursos oriundos de práticas reciprocitárias, como trabalho voluntário, as doações e as mais diversas formas de trocas dádivas.

Esta visão, apresentada por França e Laville, é parcialmente diferente da percepção de outros importantes autores sobre o tema. Paul Singer, atual secretário nacional de economia solidária e um dos autores mais respeitados sobre o tema, coloca que a economia solidária seria um modo de produção alternativo ao modo capitalista. Em seu livro, Introdução à Economia Solidária (2002), Singer define-a como:

“A economia solidária é um outro modo de produção cujos princípios

básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação destes princípios unem todos os que produzem em uma única classe de trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica” (Singer

2002, pg.10).

Este mesmo autor preconiza que:

“A economia solidária surge como um modo de produção e distribuição

alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados do mercado de trabalho"

(Singer, 2002, p.13).

Em relação a este debate, se a economia solidária seria um modo de produção alternativo ao modo de produção capitalista, Gaiger (2003) procura alertar sobre o cuidado ao se realizar tal afirmação, devido à complexidade dos fatores envolvidos.

Para verificar a tese da economia solidária como novo modo de produção, Gaiger (2003) apresenta uma breve revisão sobre as categorias modo de produção e a teoria da transição de Marx.

Segundo Marx, modo de produção é a categoria mais fundamental e englobante, para expressar sinteticamente as principais determinações que configuram as diferentes formações históricas. Estas determinações encontram-se no modo como os indivíduos, de uma dada sociedade, organizam-se no que tange à produção, à distribuição e ao consumo dos bens materiais necessários à sua subsistência. No âmago da base material, as contradições entre as forças produtivas e as relações sociais de produção, ambas constituintes do modo de produção, fazem mover a sociedade e terminam por determinar a sua forma.

Formas econômicas que não apresentam uma estrutura político- econômica relativamente auto-suficiente, capaz de reconstituir continuamente as relações de expropriação e acumulação de excedentes, não remeteriam ao modo de produção como unidade de análise. É o caso da economia camponesa e da produção simples, as quais poderiam ser consideradas como modos de produção subsidiários ou remanescentes de um modo outrora dominante. A chamada economia camponesa é um caso ilustrativo das formas sociais capazes de adaptarem-se a modos de produção das quais são atípicas, porém, o campesinato reproduz-se a si mesmo, mas não à sociedade inteira.

Na economia solidária, a autogestão e a cooperação são acompanhadas por uma reconciliação entre o trabalhador e as forças produtivas que ele detém e utiliza. Por conseguinte, as relações de produção dos empreendimentos solidários não são apenas atípicas para o modo de produção capitalista, mas em alguns aspectos, contrárias á forma de produção assalariada.

Entretanto, é importante observar que, no atual estágio de desenvolvimento, a economia solidária encontra-se em diversos aspectos submetida à lógica capitalista. Como exemplo, pode-se pensar nas empresas autogestionárias presas a cadeias produtivas ou a contratos de terceirização. Assim como na base técnica, que permanece intocada ou superficialmente alterada, mostrando um déficit de autonomia que atesta o caráter incompleto da emancipação do trabalho solidário, diante do predomínio do capital.

Gaiger (2003) afirma ainda que pensando-se na possibilidade de transição de um modo capitalista de produção para outro modo alternativo, deve-se ter claro que um período de transição ancora-se em processos de longa duração. Para

ocorrer a transição são necessárias deficiências estruturais críticas, insolúveis no quadro do sistema existente, aliada a uma reunião de elementos formando um todo coerente, capaz de reproduzir e de impor uma nova lógica reprodutiva ao sistema social.

Sobre esta questão Gaiger (2003) conclui que fica estremecida a noção de que a economia solidária constitui uma alternativa ao capitalismo, ao evidenciar a complexidade dos fatores em jogo e o atual estágio de desenvolvimento da economia solidária.

Embora não exista consenso na literatura sobre o potencial alcance da economia solidária como um modo de produção alternativo, como debatem Singer (2002) e Gaiger (2003) ou como uma tentativa de se articular diferentes princípios econômicos como defendem França e Laville (2004), estes e outros autores como Eid (2003), Gallo (2003) concordam sobre o que representa a economia solidária nos dias atuais; uma forma de re-inserção social de parte da população excluída do mercado de trabalho e um processo em construção de um modelo de desenvolvimento, cujos princípios se diferenciam do modo de produção atualmente dominante.