• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3: Reflexões teóricas sobre a valorização salarial do professor

3.4. Dilemas no financiamento de um salário de valor

Não ficaria completa, para efeito desta tese, a reflexão teórica sobre a valorização salarial do professor se não se introduzisse, mesmo de forma tentativa, a questão de classe como uma das chaves na definição do valor do salário dos professores públicos. Para tanto, vamos nos valer principalmente das posições de Adam Przeworski.

Vamos analisar aqui o texto da 2ª reimpressão de Capitalismo e Social- Democracia, tradução de Laura Teixeira Motta, editado em 1995 pela Companhia das Letras.

Embora o livro seja uma coletânea de artigos e trate de vários temas, suas teses principais são: (a) no processo de competição eleitoral, os partidos socialistas são forçados a solapar a organização dos trabalhadores como classe; (b) compromissos entre trabalhadores e capitalistas sobre questões econômicas no

regime capitalista não só são possíveis como quase sempre preferidos pelos trabalhadores a estratégias mais radicais. (Przeworski, 1995: 16)

Para a nossa tese, interessam sobremaneira os dois primeiros capítulos em que o autor teoriza e historiciza o fenômeno da social-democracia e o fundamenta sob o argumento central de que “a organização da vida política em termos de classes deve ser considerada um resultado histórico dependente de conflitos contínuos, no decorrer dos quais as classes são organizadas, desorganizadas e reorganizadas”.

Essa visão se contrapõe, ou pelo menos completa e matiza a concepção original de Marx pela qual as classes são constituídas e definidas pelas relações de produção na sociedade. Assim, no capitalismo, como as relações de produção se dão pela apropriação dos meios de produção por alguns (capitalistas) que se servem do trabalho assalariado de outros (trabalhadores) para prover a subsistência de todos, haveria duas classes distintas e com interesses antagônicos que se digladiariam até a superação da relação de produção capitalista-assalariada, que resultaria na sociedade socialista através de processos revolucionários centrados nesta luta de classes.

Przeworski não nega, como marxista que é, a estrutura econômica como fundante da distinção de classes, mas coloca na dinâmica do conflito a fonte histórica real do desdobramento da constituição das classes e da luta de classes. Assim, fica mais inteligível e interpretável a situação relativamente nova – pelo menos em sua amplitude – do comportamento econômico, social e político dos trabalhadores públicos, em que se inserem os professores. Eles não têm uma relação direta de trabalho para o capital, pois são assalariados de fundos públicos, onde por definição não se geram lucros nem mais valia. Entretanto, os professores são atores muito ativos na luta de classes e nos processos políticos de evolução da sociedade. E a questão passa a ser exatamente esta : os professores são trabalhadores, são capitalistas, pertencem a ambas as classes ou a alguma classe diferente? Ou ainda: dividem-se entre várias situações ? Ou, finalmente : se as classes não se definem por lugares mas por processos de luta, se elas não são conjuntos de pessoas mas “relações”, que conseqüências teria esta nova concepção sobre as lutas salariais dos

professores ? Da resposta a estas perguntas, inclusive, depende a viabilidade de uma reivindicação comum e unitária como é a do Piso Salarial Profissional Nacional.

Aprofundemos, com Przeworski, as condições de luta dos trabalhadores e dos professores dentro do capitalismo :

O capitalismo é uma forma particular de organização social da produção e troca. Baseado numa avançada divisão do trabalho, é um sistema no qual a produção orienta-se para as necessidades de terceiros, para a troca. Portanto, é um sistema em que mesmo os indivíduos que participam diretamente na transformação da natureza em produtos úteis – os produtores imediatos – não podem sobreviver fisicamente sozinhos. Ademais, o capitalismo constitui um sistema em que aqueles que não possuem os instrumentos de produção precisam vender sua capacidade de trabalho. Os trabalhadores recebem um salário, que não é um direito sobre qualquer parte do produto específico que geram, mas um meio abstrato de aquisição de quaisquer bens ou serviços. Devem produzir lucros como condição da continuidade de seu emprego. (Przeworski, 1995 : 24)

E os professores públicos, como não geram lucros, teriam direito de participar de que forma do produto que geram, ou seja, os alunos educados que a sociedade remunera com parte da poupança pública ?

A democracia política proporciona aos trabalhadores a oportunidade de defender alguns de seus interesses. A política eleitoral constitui o mecanismo pelo qual todo indivíduo, enquanto cidadão, pode reivindicar seu direito a bens e serviços. Embora como produtores imediatos os trabalhadores não tenham direito legal ao produto, como cidadãos podem obter tal direito via sistema político. Ademais, novamente como cidadãos e não como produtores imediatos, podem intervir na própria organização da produção e na alocação dos lucros. (1995: 25)

Daí a legitimidade, dentro do capitalismo, não só das reivindicações da população por educação pública e dos professores por melhores salários na arena eleitoral como também na luta direta dos sindicatos via pressões e greves.

Entretanto, acrescenta Przeworski, “a menos que a participação em instituições burguesas seja totalmente ineficaz na promoção dos interesses dos trabalhadores no curto prazo, todas as organizações de trabalhadores devem unir-se ou desaparecer” (l995 :26) É isso que tem acontecido na luta dos trabalhadores brasileiros ? Na luta dos professores públicos ?

Na realidade, o que tem acontecido em todas as sociedades capitalistas, seja pela ação dos patrões, seja pela organização do Estado, é que os assalariados formam-se como classe em diversas organizações independentes e com freqüência competitivas. Além disso, o Estado burguês impõe a estrutura parlamentar da

“representação”, inclusive dos trabalhadores, o que dá origem a novas e mais complexas relações políticas dos assalariados

Assim, uma relação de representação impõe-se à classe pela própria natureza das instituições democráticas capitalistas. As massas não agem diretamente em defesa de seus interesses, e sim delegam essa defesa. Isso vale tanto para os partidos como para os sindicatos: o processo de negociação coletiva apresenta- se tão distante da experiência cotidiana das massas como as eleições. Os líderes tornam-se os representantes. Massas representadas por líderes – eis o modo de organização da classe trabalhadora no seio das instituições capitalistas. Dessa maneira, a participação desmobiliza as massas. (1995 : 27)

Mas a reflexão e as dúvidas vão mais além. Os trabalhadores assalariados constituem mesmo uma só classe ? Segundo Przeworski, no capitalismo, especialmente em situações de alto desemprego, os operários competem entre si quando não estão organizados como uma classe. A similaridade de posição nas relações de produção não resulta automaticamente em solidariedade, em classe unida.

Um aumento geral nos salários é de interesse de todos os operários, mas não afeta as relações entre eles. Por outro lado, uma lei estabelecendo um nível salarial mínimo, ampliando a instrução obrigatória, aumentando a idade para a aposentadoria ou limitando a jornada de trabalho afeta a relação entre os operários sem ser necessariamente do interesse de cada um deles. (1995 : 34)

No caso dos professores públicos, como se verá adiante, os conflitos de interesses não se dão somente entre cada professor e a categoria, mas entre grupos da categoria, intencionalmente criados pelos donos do poder para dividi-la. O paralelo com a situação dos operários é perfeito:

Para superar a competição, os operários precisam organizar-se e agir como uma força coletiva. Nas palavras de Marx, ‘a associação possui sempre um duplo objetivo: fazer cessar a competição entre os operários, para que possam empreender a competição geral contra os capitalistas. (1995 : 35)

Assim, percebe-se que a categoria dos professores públicos se constitui ou não em classe trabalhadora ou mesmo em classe ‘tout court’ à medida em que se organiza, em que se percebe em luta a favor de sua valorização e contra os que trabalham na direção oposta.

Mas a questão de classe precisa ser contextualizada, como o faz Adam Przeworski. Marx e Engels balizaram a luta de classes como um processo revolucionário em que a propriedade dos meios de produção pelos capitalistas seria

abolida pela instauração de uma ditadura do proletariado. Hoje duvida-se que a experiência da União Soviética, após a revolução de outubro de 1917, tenha sido exatamente isto. Mas na Europa Ocidental o caminho das classes trabalhadoras foi outro: ao invés da revolução, as reformas da social democracia, que acreditava numa via eleitoral e pacífica para uma gradual conquista do bem estar coletivo. No campo econômico, num primeiro momento se tentou a nacionalização dos meios de produção. O processo emperrou, até que a Grande Depressão dá espaço a uma mudança de concepção de reforma socialista : por mediação do Estado, far-se-ia uma “nacionalização e expansão do consumo” que iria reativar a economia não mais pelo lado da expansão dos lucros dos capitalistas mas do aumento regulado dos salários e dos benefícios sociais como a educação, a saúde e a previdência públicas. (1995 ; 50-54)

Assim, chega-se na Europa nos meados do século e, talvez, se tenha tentado no Brasil até recentemente dar ao Estado “social-democrata” as seguintes funções:

“(1) o Estado responsabiliza-se pelas atividades que não são lucrativas para as empresas privadas, mas que se fazem necessárias para a economia como um todo; (2) o governo regula, especialmente por meio de políticas anti-cíclicas, o funcionamento do setor privado; (3) o Estado, aplicando medidas pautadas pela teoria do bem-estar, atenua os efeitos distributivos do funcionamento do mercado.” (1995 : 57)

A intervenção do Estado, mesmo nas políticas sociais, deve se pautar por critérios de eficiência, que na prática se distanciam dos resultados reclamados pela eqüidade ou por critérios distributivos. O Estado estaria sempre correndo atrás dos prejuízos perversos que o mercado e suas próprias empresas e instituições trazem para a sociedade, num “motum continuum” de correção.Isso significa o definitivo adeus à essência do reformismo, pois se renuncia à transformação da sociedade em direção ao socialismo. Após a II Guerra Mundial, nem pensar numa justa distribuição da pobreza: a palavra de ordem agora é aumentar a riqueza geral, ou seja, investir no aumento da produtividade do capital para depois distribuí-lo, o que no Brasil

Delfim Neto convencionou chamar de teoria do bolo, que, para chegar a todos, primeiro precisa crescer.

No caso dos professores públicos pagos por salários oriundos de impostos com percentuais vinculados para a educação, a relação é mais direta:

O Estado que intervém na economia depende da ação dos capitalistas para seus recursos fiscais, informação, capacidade de elaborar políticas e de fornecer serviços sociais. (...) Qualquer governo em uma sociedade capitalista é dependente do capital. (...) Sob o capitalismo, os lucros do presente constituem as condições de investimento, e, portanto, da produção, emprego e consumo no futuro. (...) Essas expectativas de que os lucros correntes seriam transformados em melhoras futuras nas condições materiais dos assalariados tornou-se a base do consentimento dado pelos social-democratas ao capitalismo. (1995 : 60)

No ciclo longo de expansão do capitalismo de pós-guerra, houve inegáveis ganhos salariais dos trabalhadores, especialmente dos europeus e norte-americanos, sem dúvida alavancados pelos lucros do imperialismo das multi-nacionais lá sediadas, que extraíam dividendos dos países subdesenvolvidos. Finalmente,

Os social-democratas protegem os lucros das reivindicações das massas porque as políticas redistributivas radicais não são vantajosas para os trabalhadores. O funcionamento do sistema capitalista se dá de tal modo que se os lucros não forem suficientes, as taxas de salário e o nível de emprego acabam por declinar. As crises do capitalismo não trazem vantagem material a ninguém; constituem uma grave ameaça aos assalariados, pois o capitalismo é um sistema no qual o ônus das crises econômicas recai inevitavelmente sobre os que vivem de salários.(1995:61)

No capítulo “A organização do proletariado em classe” encontram-se chaves importantes para as reflexões desta tese sobre a luta pela valorização salarial dos professores, ou seja, da sua luta de classe pela apropriação maior de uma remuneração extraída da relação mais ampla entre capital e trabalho.

A partir da distinção de Marx entre “classe em si” e “classe para si” determinadas uma pela posição nas relações econômicas de produção e outra pela esfera das ações subjetivas, políticas e ideológicas, que geram a consciência de classe, e diante das dificuldades que tal teoria enfrentou na interpretação das sociedades e na luta pelo socialismo, Przeworski afirma:

A análise de classes não pode limitar-se às pessoas que ocupam lugares no sistema de produção.(...) Os processos de constituição dos operários em classe vinculam-se inextricavelmente aos processos de organização da mão-de-obra excedente. Em conseqüência, são possíveis diversas organizações de classes alternativas em qualquer momento da história. (1995: 67,68)

Embora, desde o Manifesto Comunista, a posição de Marx parta dos “lugares” dos trabalhadores assalariados no modo de produção, ele sempre frisou que o proletariado existe “como classe” somente em oposição ativa à burguesia, e, portanto, “as classes se formavam no decorrer das lutas de classe”. (1995: 72)

Semelhantemente, não é o fato de ser ou não ser professor que o naturaliza como integrante de uma classe ou ator numa luta de classes. O jesuíta e o mestre régio nem se identificavam nem lutavam como “classe do magistério”. Será pela luta, e especificamente pela luta salarial, que os professores públicos vão se associar e se definir na luta de classes. E não é por acaso que se fundam sindicatos de professores, que depois se transformam em sindicatos de “trabalhadores em educação”.

E então, os professores, como assalariados separados dos meios de produção, são alinhados na luta de classes como proletários, como trabalhadores, ou constituem um setor componente da “classe média” ? Ou, talvez, seduzidos pela possibilidade de ascensão social, seriam pequena burguesia ?

Przeworski não se detém na análise específica da categoria dos professores, embora os cite explicitamente ou dentro do setor mais amplo dos “funcionários públicos”. Entretanto, ao expor e ao se contrapor à concepção weberiana de estratificação social não mais pelas relações de propriedade mas de autoridade, oferece substancial contribuição a esta tese, balizando o território da valorização salarial dos professores como um capítulo da luta de classes, não só dos professores, mas de todos os trabalhadores. Como ele diz,

é necessário perceber que as classes são formadas no decorrer de lutas, que essas lutas são estruturadas por condições econômicas, políticas e ideológicas sob as quais ocorrem e que essas condições objetivas – simultaneamente econômicas, políticas e ideológicas – moldam a prática de movimentos que procuram organizar os operários em uma classe.(1995: 89)

Portanto, o movimento de valorização, desvalorização e revalorização salarial dos professores corresponde ao que Przeworski define como as práticas de organização, desorganização e reorganização de classes pelas lutas políticas estruturadas pelas relações e pelo modo de produção da sociedade. Em última análise,

Classe é o nome de uma relação, não uma coleção de indivíduos. Os indivíduos ocupam lugares no sistema de produção; os agentes coletivos aparecem em lutas em determinados momentos da história. Nenhum deles – ocupantes de lugares ou participantes de ações coletivas – são classes. A classe é a relação entre eles, e nesse sentido a luta de classes diz respeito à organização social de tais relações. (1995 : 102)

Para concluir este capítulo e para fazer a ligação direta ao tema da valorização do professor, demos de novo a palavra a Przeworski, que responde a uma pergunta chave para esta tese : quais são as formas que pode assumir a força de trabalho excedente, motor econômico do êxito de todos os capitalismos ? Elas não são determinadas pelas relações de produção, mas por efeito direto de lutas de classe :

A primeira é o subemprego, especialmente em serviços públicos. Isso significa uma situação em que a força de trabalho excedente é comprada em troca de salário mas não é consumida em nenhuma tarefa necessária à produção material ou à reprodução das relações sociais. A segunda forma é a de um exército de reserva como definido por Marx, ou seja, um fator regulador dos níveis salariais. Em terceiro lugar, a força de trabalho excedente pode tomar a forma de uma exclusão permanente do emprego por toda a vida do indivíduo. Em quarto, pode assumir formas distribuídas ao longo da vida de determinados indivíduos, principalmente via tempo de instrução e aposentadoria. Finalmente, pode ser distribuída ao longo do período de trabalho de um indivíduo, em termos de menos horas de trabalho, fins de semana prolongados, etc. (1995 : 110)

A complexidade das lutas dos professores está prenunciada aí : o caráter público de seu salário transforma sua luta corporativa em luta cidadã.