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Dimensão cultural do lobo junto das comunidades rurais: implicações da etnozoologia na biologia da conservação

Resumo

Nas comunidades rurais ibéricas a percepção do lobo ultrapassa a das suas características biológicas e comportamentais, construindo-se em seu redor uma imagem complexa que persiste no imagin{rio popular e na tradição oral. O presente estudo efectua uma an{lise da dimensão cultural associada ao lobo no Noroeste de Portugal com base em entrevistas directas a habitantes rurais, prospecção de vestígios de cultura material e revisão bibliogr{fica. Em particular, pretendeu-se responder |s seguintes questões: (1) Quais os v{rios tipos de manifestações culturais associadas ao lobo no Noroeste de Portugal? (2) Qual o enquadramento etnogr{fico do lobo na {rea de estudo e, em particular, de alguns dos exemplos mais marcantes de cultura material a ele associada? e, (3) Qual a atitude das comunidades rurais face ao lobo, reflectida nestas manifestações ancestrais, e quais as implicações actuais na conservação desta espécie?. Os resultados obtidos revelam um património expresso em v{rias lendas, mitos, crenças e aspectos materiais, ainda hoje presentes na memória ou nas pr{ticas quotidianas dos habitantes serranos, e sem paralelo com outras regiões da Europa. Os v{rios exemplos de manifestações culturais associadas ao lobo encontram-se relacionados com dois tipos de motivações: i) o lobo como uma ameaça real aos animais domésticos, o que originou um rico acervo de cultura material na forma de diversas construções destinadas | defesa dos animais domésticos ou | caça do lobo através de “fojos”; e ii) a percepção deste carnívoro como um ser mítico e simbólico, onde uma das manifestações mais impressionantes é a utilização de partes do corpo do lobo como cura de doenças em humanos ou animais domésticos. A percepção do lobo pelas comunidades ibéricas que com ele convivem apresenta motivações de car{cter ancestral que vão muito além da ameaça aos animais domésticos. Neste }mbito, a etnozoologia revela-se como uma fonte de informação fundamental na compreensão das atitudes das comunidades rurais face ao lobo e da magnitude do conflito Homem-Lobo. Além disso, o estudo e salvaguarda destas manifestações culturais associadas ao lobo é urgente e importante do ponto de vista antropológico pois exprimem os laços íntimos que unem as comunidades rurais ao seu meio natural e condensam crenças pagãs e religiosidade cristã. A herança cultural associada ao lobo no Noroeste Ibérico, ainda bem patente em testemunhos materiais e na memória colectiva, apresenta-se igualmente como uma oportunidade única comparativamente com outras regiões da actual {rea de ocorrência de lobo, para o desenvolvimento de acções que promovam o valor recreativo e cultural deste carnívoro. Para tal, estas acções deverão valorizar o lobo como um elemento fulcral, não só na biodiversidade regional, mas também na identidade da cultura e tradição popular. Uma vez que a distribuição do lobo coincide com zonas de montanha economicamente desfavorecidas, a valorização económica e turística da imagem do lobo e do rico património cultural a ele associado revela-se uma fonte potencial para o desenvolvimento rural, bem como uma forma de conduzir, no futuro, a um aumento da toler}ncia e aceitação deste carnívoro.

Palavras-chave: arquitectura rural, conflito homem-lobo, etnografia, fojo do lobo, gola, medicina

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8.1 - Introdução

Numerosos estudos ecológicos têm demonstrado que as actividades humanas possuem uma influência inquestion{vel no comportamento do lobo, nomeadamente nos seus padrões de actividade, selecção de recursos, reprodução e uso do espaço (revisão em Fritts et al., 2003). Da mesma forma, existem evidências desde épocas pré-históricas que mostram como as populações humanas são sensíveis a este carnívoro. Essa convivência surge fortemente estigmatizada do ponto de vista material e simbólico, dando origem a um vasto património cultural expresso em v{rias lendas, crenças e pr{ticas (Lopez, 1978; Grande del Brio, 1984; Bernard, 2000; V{zquez, 2004) que, no seu conjunto, representam a dimensão cultural do lobo junto das comunidades humanas. Contudo, o reconhecimento desta dimensão cultural carece de estudos direccionados para a avaliação das suas implicações na biologia e conservação deste carnívoro. Apesar da evidente reciprocidade da relação Homem-Lobo, este tema tem sido estudado maioritariamente duma forma unilateral através da ecologia, etologia e etnologia (Lescureux, 2006). Surge assim a necessidade de uma abordagem integrativa que permita compreender de que forma o comportamento do lobo exerce um efeito nas percepções e pr{ticas humanas e quais as suas consequências. Esta questão é de inevit{vel import}ncia para a conservação do lobo em {reas com grande actividade humana. Nestas {reas, o futuro do lobo depende em grande medida da percepção dos valores e atitudes das comunidades que com ele convivem e da incorporação destes elementos nas estratégias de conservação e gestão (Boitani, 1995, 2000). Com efeito, é reconhecido que o desconhecimento das motivações ancestrais que justificam o actual nível de toler}ncia ou perseguição ao lobo possa comprometer o sucesso de projectos que envolvam a investigação e conservação deste carnívoro (Boitani, 1995; Bath, 2009).

A incorporação da dimensão humana na biologia da conservação do lobo tem-se limitado

| an{lise das atitudes de v{rios grupos de interesse face a este carnívoro. Estes estudos incidem, por isso, numa percepção actual da sociedade perante diferentes níveis de presença do lobo e de conflito com os interesses humanos (e.g. Huber et al., 1993; Blanco & Cortés, 2002; Naughton-Treves et al., 2003; Karlsson & Sjöström, 2007; Stronen et al., 2007; Bath, 2009). Tal abordagem traduz-se no deficiente entendimento das crenças e pr{ticas tradicionais associadas |s atitudes actuais (Edgell & Nowell, 1989; Boitani, 1995). A justificação mais plausível para a falta de conhecimento reside na complexidade da necess{ria abordagem multidisciplinar, aliando {reas tem{ticas como a antropologia, a etnografia, a história e outras ciências sociais e humanas (Brosius, 2006). Neste }mbito revela-se crucial o estudo, em sistemas de conhecimento comum, das pr{ticas e crenças que as comunidades humanas exercem numa relação quotidiana com a fauna silvestre – a denominada etnozoologia (Reyes-García & Marti Sanz, 2007). A recolha de dados etnogr{ficos relativos |s interacções entre humanos e lobos envolve o recurso ao conhecimento tradicional das comunidades humanas que, por longos períodos históricos, coabitaram com este carnívoro, assimilando-o como um objecto associado aos processos naturais, e identificando-o como um vizinho ou competidor (Lescureux, 2006). Por esta razão, estudos desta índole têm sido maioritariamente realizados em comunidades humanas tidas como “primitivas”, como por exemplo os esquimós da América do Norte (Lopez, 1978; Stephenson, 1982) ou os povos nómadas da [sia central (Lescureux, 2006).

As comunidades rurais da Península Ibérica apresentam um rico património etnogr{fico derivado de uma assídua relação com a vida selvagem, com pouco paralelismo num contexto europeu. Este legado cultural, muitas vezes de cariz religioso e simbólico, continua bem presente na memória colectiva e faz parte das actividades quotidianas (Brito et al., 2001; Boza, 2002; Pestana, 2009). Neste contexto, o lobo assume um lugar de destaque, tal como têm demonstrado os v{rios trabalhos de car{cter

156 etnogr{fico que, de forma geral, descrevem os diversos aspectos da dimensão cultural associada a este carnívoro em Espanha (Risco, 1948; Murga, 1978; Grande del Brio, 1979, 1984; Gonz{lez & Chapa, 1993; Mariño Ferro, 1995; García Diez, 1997; Su{rez-Llanos, 1997; Veja Pato, 1997; Valverde & Teruelo, 2001; Boza, 2002; V{zquez, 2004; Gutiérrez Alba, 2006; Pérez López, 2010). Ao contr{rio, constata-se em Portugal uma ausência de estudos que caracterizem este precioso manancial de informação e o contextualizem do ponto de vista das atitudes e do conflito das comunidades face ao lobo, com as devidas implicações na sua conservação.

O presente trabalho pretende efectuar uma caracterização da herança cultural e das atitudes ancestrais das comunidades rurais face ao lobo no Noroeste de Portugal, através da contextualização com outras regiões ibéricas e da an{lise das suas implicações actuais na conservação deste carnívoro. Para tal, procedeu- se a uma pesquisa de fontes documentais apoiada em trabalho de campo para a recolha sistem{tica de testemunhos orais e vestígios de cultura material. Em particular, pretende-se responder |s seguintes questões: (1) Quais os v{rios tipos de manifestações culturais associadas ao lobo no Noroeste de Portugal? (2) Qual o enquadramento etnogr{fico do lobo na {rea de estudo e, em particular, de alguns dos exemplos mais marcantes de cultura material a ele associada? e, (3) Qual a atitude das comunidades rurais face ao lobo, reflectida nestas manifestações ancestrais, e quais as implicações actuais na conservação desta espécie?

8.2 - Metodologia

Este estudo envolveu métodos de investigação de }mbito histórico e antropológico incidindo, maioritariamente, na actual {rea de distribuição do lobo no Noroeste de Portugal. Contudo, foi igualmente efectuada uma recolha de informações através da realização de trabalho de campo pontual e de pesquisa documental e bibliogr{fica em outras regiões de Portugal e Espanha.

Para a realização das entrevistas sistema- ticas foram preferencialmente seleccionados, dentro da comunidade rural, os informadores mais idosos e com mais longa actividade associada | pecu{ria. Desta forma, pretendeu-se privilegiar, não só a quantidade, mas sobretudo a qualidade e credibilidade das informações da tradição oral, crenças e património material associado | relação das comunidades agropastoris com o lobo. No que respeita, em particular, ao património construído destinado | caça do lobo (os “fojos do lobo”), sempre que possível os informadores foram acompanhados até ao local de edificação de forma a identificar, inequivocamente, a estrutura no terreno. Foram também inquiridos acerca da época de construção, datas de utilização, método operativo utilizado e populações implicadas na sua construção ou utilização.

O conhecimento de outros potenciais locais de edificação destas estruturas foi também obtido mediante: i) a pesquisa de topónimos referentes a fojos, principalmente através da consulta das cartas militares editadas pelo Instituto Geogr{fico do Exército, | escala 1:25.000, e ii) a pesquisa de fontes documentais históricas (e.g., Memórias Paroquiais de 1758) que permitissem não só a identificação de fojos, como também a maior aproximação possível | sua antiguidade. Estes locais de edificação foram posteriormente alvo de prospecção de campo com vista | detecção de vestígios materiais. Foi ainda efectuada uma consulta bibliogr{fica a trabalhos científicos e liter{rios, relativos a Portugal e Espanha, para compilar referências | existência concreta destas estruturas. Sempre que possível, aliando a pesquisa bibliogr{fica e documental ao trabalho de campo, registou-se a localização, tipologia, características estruturais e cronologia de cada fojo identificado a nível ibérico.

Tendo em conta o nível de confiança na informação recolhida, cada fojo foi considerado como: i) confirmado, se foi detectado no terreno ou obtido registo fotogr{fico de vestígios materiais inequívocos da estrutura; ou ii) prov{vel, se a sua existência foi conhecida unicamente pela toponímia e informações orais

157 ou fontes escritas, sem observação de vestígios da estrutura. A distribuição (i.e. {rea de edificação) e densidade (i.e. intensidade de edificação) dos fojos foram quantificadas ao nível do concelho (Portugal) ou município (Espanha) e representados num Sistema de Informação Geogr{fica.