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ASPECTOS METODOLÓGICOS 2.1 A Escolha da Comunidade

3. DIMENSÃO JURÍDICA E CATEGORIAS CENTRAIS DA PESQUISA

A proposta da tese, inicialmente, repousa nas narrativas sobre a concepção de moradia digna e sobre as relações estabelecidas entre a mulher e a cidade, para a qual

sobressai a relevância da etnografia e da microanálise histórica do lugar pesquisado, tomando-se como ponto de partida o espaço urbano e, por consequência, a observação da vida citadina local. Inicialmente, o desafio é a análise da vida e da lógica social daqueles que ocupam os espaços marginais da cidade, posto que a segregação socioespacial evidenciada se relaciona intrinsecamente com o direito, em virtude da urbanização desordenada do lugar, sem que os instrumentos jurídico-urbanísticos do sistema nacional e local contribuam significativamente para a reversão desse processo. Então, como diz Agier: “pensar a cidade a partir dos espaços precários e certo despojamento de bens, sentidos e relações que desenha a primeira imagem, a de uma cidade nua25, simples

aglomeração densa e heterogênea que se fixa e se transforma sem projeto inicial de cidade.” (AGIER, 2011, p. 40).

Sendo assim, pode-se dizer que, o surgimento da comunidade às margens da cidade central revela um fenômeno importante sobre a ocupação desordenada e os problemas relacionados à democracia urbana, porque permite constatar a disjunção entre o caráter formal do direito urbanístico e a irradiação concreta do seu alcance. Holston vai salientar esse aspecto ao dizer que:

Além disso, se as cidades têm sido, ao longo da história, palco de desenvolvimento da cidadania, a urbanização global cria condições especialmente voláteis na medida em que as cidades se enchem de cidadãos marginalizados e de não cidadãos que contestam sua exclusão. (HOLSTON, 2013, p. 21-22, Parte Um).

Uma das ferramentas para se minimizar a distância entre a teoria e a prática, buscando uma melhor compreensão do fenômeno urbano, parece estar situado no exercício de campo, na investigação de cunho antropológico, como sugere Geertz (2012, p. 10) ao dizer que “as formas do saber são sempre e inevitavelmente locais”, o que torna,

25 Nesse item, Agier (2001, p. 40) explica que a cidade nua reenvia, em parte, a noção de “vida nua”, no

sentido em que a experiência concreta vivida, do que é a vida nua (a sobrevivência biológica fora de qualquer reconhecimento social, local, política) se realiza forçosamente num espaço específico, ou em espaços múltiplos que a põem de parte.

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sob essa perspectiva, esse trabalho mais próximo das ciências sociais para compreensão do Direito, no sentido de que a compreensão de uma localidade, depende de se conhecer as pessoas que nela vivem, através de suas experiências entre si e com o espaço onde e com o qual interagem.

Esse dilema impele a pensar que enquanto a tradição do direito busca analisar textos e/ou suas teorias, sem refletir sobre o embate entre o que está na norma e a realidade vivenciada, uma vez que a força normativa dissociada do mundo social, não traduz completamente essas interações, a proposta aqui em análise, é a cidade não compreendida categoricamente, mas observada enquanto vivência, como um complexo conjunto de experiências, que podem atrair múltiplas dimensões, como proposto por Henri Lefebvre (2009, p. 125)26, quando coloca que “o futuro do homem não está nem no cosmos, nem

nas pessoas, nem na produção, mas na sociedade urbana.” Afinal, como bem pontua Alexandre Bernardino Costa (2006, p. 9) “a sociedade contemporânea revela-se hiper- complexa e plural e o aumento da complexidade exige do direito instrumentos capazes de lidar com ela.”

Portanto, a pesquisa vai se recorrer em parte da Antropologia do Direito, que por sua vez “se interessa por todas as formas reconhecidas pelos atores como apropriadas para equacionar conflitos, nas várias circunstâncias, assim como pelos processos sociais que envolvem disputas e pelos procedimentos adotados para fazer valer direitos e interesses” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2010, p. 457). A proposta é discutir as narrativas dos citadinos do bairro e das mulheres participantes da construção de um projeto habitacional de interesse social selecionadas por demanda aberta, chefes de família, de baixa renda, para compreender as dimensões do direito à moradia dessa mulher e procurar refletir teoricamente as persistências das vulnerabilidades vivenciadas em seu cotidiano, compartilhadas por elas na pesquisa.

Nessa dinâmica experimentada pelos próprios cidadãos e cidadãs do bairro, do município, é imprescindível observar no campo social, as interações vivenciadas.

26 Lefebvre diz também que “o Direito à Cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à

liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade.” (LEFEBVRE, 2009, p. 125). Na verdade, o que se quer dizer é que a análise da cidade exige uma dimensão crítica que abarque tanto a dogmática quanto a prática social.

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Também, porque o processo de urbanização e de ocupação das cidades é extremamente insurgente. David Harvey ao citar Don Mitchell27, ressalta que:

o direito à cidade é um grito, uma demanda, então é um grito que é ouvido e uma demanda que tem força apenas na medida em que existe um espaço a partir do qual e dentro do qual esse grito e essa demanda são visíveis. No espaço público – nas esquinas ou nos parques, nas ruas durante as revoltas e comícios – as organizações políticas podem representar a si mesmas para uma população maior e, através dessa representação, imprimir alguma força a seus gritos e demandas. Ao reclamar o espaço em público, ao criar espaços públicos, os próprios grupos sociais tornam-se públicos. (HARVEY, 2013, p. 33-34).

Nesse contexto, a pesquisa vem se ancorar na análise das políticas públicas de habitação de interesse social no sistema brasileiro, que segundo Raquel Rolnik (2006)

estão em dissonância com a política urbana, uma vez que não se verifica nas cidades brasileiras essa articulação da política habitacional com a política urbana, apontando para o fato de que a especulação imobiliária e o elevado preço da terra têm contribuído para a construção de habitações populares em espaços desprovidos de uma infraestrutura ajustada às necessidades da população de baixa renda, assim como, a ausência de regularização fundiária, por outro lado, acaba por cooperar para o avanço desordenado das habitações e impedir o crescimento imobiliário irregular nos municípios.

Embora, os princípios da função social da propriedade e da cidade, sejam

instrumentos basilares para respaldar a política urbana impulsionando ao controle, ao uso, à ocupação, ao parcelamento e ao desenvolvimento urbano, que melhor sirvam à coletividade e ao bem-estar de todos, também, são merecedores de receberem uma ressignificação, que transcenda a ideia fundiária calcada na propriedade privada, cujos resquícios resistem à finalidade precípua do uso da terra como bem maior.

No que concerne ao direito à moradia, o significado do uso social da terra rompe

com o tratamento que o sistema conferiu à moradia, com a reprodução de um modelo de construção massiva de unidades habitacionais, em locais destituídos de infraestrutura, cuja padronização atende ao mercado da construção civil, mas que não atende ao dispositivo de moradia digna conferido constitucionalmente como direito social.

O pressuposto teórico que atravessa a pesquisa se pauta, inicialmente, na concepção de que é a partir das dinâmicas de produção e reprodução que o espaço urbano

27 David Harvey (2013, p. 33) coloca que o direito à cidade não é a condição ao acesso do que já existe,

aliás ele enfatiza que como a cidade está em constante atividade, deve-se buscar torná-la diferente e adequada às necessidades coletivas.

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é constituído, dado as intervenções do Estado e do capital, que se desenham as relações do espaço com a própria sociedade. Assim como enuncia Lefebvre:

A cidade deixa de ser o recipiente, o receptáculo passivo dos produtos e da produção. O centro de decisão, aquilo da realidade urbana que subsiste e se fortalece na sua deslocação, entra a partir de então para os meios da produção e para os dispositivos da exploração do trabalho social por aqueles que detêm a informação, a cultura, os próprios poderes de decisão. (LEFEBVRE, 2001, p. 138).

As repercussões dessa simbiose entre o espaço e a sociedade dentro da lógica do capitalismo, se traduz nos mecanismos de concentração de renda e apropriação privada da cidade, relegando à grande parcela da população a inacessibilidade à terra, e consequentemente, trazendo os alijamentos que se evidenciam nos espaços urbanos, com a segregação socioespacial, a carência de atendimento dos serviços e equipamentos públicos, que se associam a outros processos de precarização das condições de vida urbana.

Neste sentido, saliente-se que o espaço ao bairro e à cidade que cabe à mulher refletem as incongruências que impactam fortemente suas potencialidades e seu bem- estar, a começar da reprodução desigual da cidade, empurrando seus moradores para locais e comunidades mais longínquas e sem infraestrutura, provocando, uma segregação, que obriga boa parte de seus citadinos a se deslocarem para outros centros, a fim de que possam exercer suas atividades produtivas, sendo um aspecto muito agravante para as mulheres, que se veem destituídas de oportunidade de interação social onde vivem e de acompanhamento do cotidiano de seus filhos, já que muitas delas, são chefes de família, nem sempre acompanhadas de outros adultos.

Então, não se pode deixar de conferir ao princípio da função social da propriedade e da cidade, uma análise que permita compreender o cenário em que se pousa essa força estruturante sobre os valores e as concepções atribuídos ao gênero, que é o da concentração fundiária e de renda que reitera as desigualdades que ainda separam mulheres e homens e dentro de uma perspectiva interseccional, outras categorias sociais, como raça e classe, assim, como alertam Guzmán & Salazar:

O lugar das mulheres na sociedade não é um produto, não é um resultado direto do que elas fazem, mas do significado que suas atividades adquirem através da interação social concreta. O significado não é apenas o produto dos sujeitos individuais, mas de sua interação com a organização social. (GUZMÁN & SALAZAR (1992, p. 10). (tradução nossa)

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O protagonismo da mulher na política de habitação de interesse social e no

projeto Novo Bairro é o eixo que surge a partir da discussão do papel da mulher no âmbito da moradia popular, uma vez que o avanço em políticas públicas para mulheres e transversais de gênero fazem parte de todo um processo histórico de luta na reivindicação pela melhoria nas condições de vida dos sujeitos, que ao se mobilizarem e se articularem passam a representar esse sujeito coletivo de direito, que precisa ser reconhecido, muitas vezes, sem que ele mesmo se identifique. Através da análise da atuação da mulher que está inserida no projeto em tela, busca-se reconhecer o protagonismo dela, frente à política urbana e habitacional, sendo relevante, assim, reconhecer, também, que o processo de conscientização, ainda incipiente, das próprias interlocutoras, pode demonstrar o grau de fortalecimento do grupo que se forma a partir das insurgências em que se veem investidas, principalmente, ante a necessidade de enfrentamento e de luta pelo seu direito àquela moradia.

47 CAPÍTULO I

A Vila Santa Rita nasceu pequenina como todas as cidades ribeirinhas, às margens do Paraíba do Norte, cujas águas se prateavam de raios de luar, noite adentro, encantando os viajantes, que fascinados, pernoitavam às suas margens e amarravam as mulas carregadas de mercadorias nas moitas de juncos e bambuais, As tendas armadas se multiplicavam rapidamente, viravam barracas de comércios e moradias. As águas do Paraíba cativavam mais viajantes que por ali paravam. Logo armavam barracas. Casas de pau a pique foram ganhando formas; engenhos, usinas e olarias foram erguidos no solo. A matriz subiu o morro cercado de matas, ao lado da gruta esculpida de pedras trazidas do cemitério pelos pagadores de promessas. As casas de farinhas torravam as raspas de mandiocas, os vém-vém chamavam mais viajantes e o sabiá sabia tudo. As matas escondiam as pacas, as cutias, as guaribas, as preguiças, os pássaros e os répteis (SANTANA, 1999, p. 29).

1. SANTA RITA-PB: as entrelinhas do espaço urbano e da cidade nas narrativas

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