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A importância da emancipação da mulher no ordenamento jurídico e sua incorporação no sistema de políticas públicas

ASPECTOS METODOLÓGICOS 2.1 A Escolha da Comunidade

1. SANTA RITA-PB: as entrelinhas do espaço urbano e da cidade nas narrativas dos sujeitos e das sujeitas

3.4 A importância da emancipação da mulher no ordenamento jurídico e sua incorporação no sistema de políticas públicas

No sistema brasileiro, a busca pela adequação das normas que conferissem tratamento igualitário a homens e mulheres ganhou ênfase a partir da Constituição Federal de 1988, quando mudanças significativas foram estabelecidas no ordenamento jurídico, resgatando a base principiológica do estado democrático, especialmente, no que tange à mulher, através do princípio fundamental de vedação de discriminação em relação ao sexo, que se espargiu em todo o sistema.222 Na percepção de Menelick de Carvalho Netto

(2006, p. 22) “a virtude de uma Constituição democrática é que ela não permite

mecanismos que instituem uma paz de cemitério. Ela precisamente remete à discussão pública os problemas para que possamos, de maneira constante e reflexiva, rever antigos usos e tradições.” No entanto, para além da mudança no sistema jurídico, o que já é um

221 A autora utiliza o texto de EZQUIAGA, José María. “Cambio de estilo o cambio de paradigma?

Reflexiones sobre la crisis del planeamiento urbano.” In: Urban, 1997, p. 1-33.

222 Por exemplo, no âmbito do direito do trabalho e das relações trabalhistas, o Ministério do Trabalho e

Emprego no Brasil vigente até 2018, antes de sua extinção pelo governo federal de Jair Bolsonaro (2019), que destinou a pasta do trabalho e emprego para os Ministérios da Economia, da Cidadania e do Ministério da Justiça e Segurança Pública foi responsável por articular nacionalmente iniciativas e políticas voltadas à implementação de uma agenda de trabalho decente, segundo o qual: “o Trabalho Decente é uma condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável. Em inúmeras publicações, o Trabalho Decente é definido como o trabalho produtivo adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna.” Disponível em: <https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-

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grande avanço, é importante considerar também a efetividade e consolidação das normativas institucionalizadas, assim como coloca Cardoso de Oliveira:

diferentemente das reivindicações tradicionais da cidadania, normalmente satisfeitas no plano da promulgação de leis e do respeito a direitos, as demandas por reconhecimento supõem a internalização de um valor que signifique a aceitação do mérito cultural (ou da forma de vida) do grupo que apresenta a demanda. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2011, p. 118).

Esse processo não se deu sem a intervenção de movimentos de mulheres e feministas, inclusive com a atuação do CNDM, que representou desde sua criação, o esforço de conselheiras e mulheres no sentido de contribuírem com a formulação dos direitos que seriam amparados pela Constituição de 1988, como constatou Maiara Auck Peres de Lima em sua pesquisa:223

O órgão é um exemplo paradigmático do papel que a efetiva institucionalização, consolidada na ampliação de cidadania das mulheres, representa na história de nosso país. Desde a sua criação, às vésperas da convocação da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) – efetuada em novembro de 1985 com previsão para início dos trabalhos em fevereiro de 1987 –, a agenda que há tempos vinha sendo requerida pelas mulheres brasileiras obteve um status de legitimidade inexistente até então. A partir daí as conselheiras e os movimentos de mulheres ligados ao CNDM se articularam com foco prioritário na Constituição que começava a ser amplamente debatida pela sociedade. (DE LIMA, 2018, p. 62).

E esse trabalho reverberou no texto constitucional, positivando as demandas construídas com a participação de vários segmentos de mulheres e feministas que haviam participado do Encontro Nacional Mulher e Constituinte (1986),224 de onde se elaborou a

Carta das Mulheres aos Constituintes, entregue simbolicamente ao então deputado Ulisses Guimarães, assim como nas assembleias legislativas dos Estados federados e, que, posteriormente, passou a representar as atividades e discussões em favor dos direitos das mulheres, sendo denominado “lobby do batom”, porque era composto pelas parlamentares mulheres na Assembleia Nacional Constituinte, que alcançava apenas cerca de 4,9% de representatividade no parlamento, conclamando, inclusive, em manifesto, um reforço às emendas propostas ao longo do trabalho constituinte.225

223 Maiara Auck Peres de Lima realizou excelente pesquisa pela UNB sobre o direito à moradia para as

mulheres, desenvolvendo a trajetória das políticas públicas desde a Constituição de 1988, que consubstanciou sua dissertação.

224 O Encontro Nacional Mulher e Constituinte ocorreu em agosto de 1986, com a participação de mais de

duas mil mulheres de várias regiões do país, que foram divididas em 12 grupos (GTs) por temas, para sistematizar, discutir e encaminhar suas demandas à Assembleia Constituinte. (SILVA, 2011, p. 152). 225 O referido manifesto foi apresentado ao presidente da Assembleia Constituinte para reforçar as

demandas elaboradas por ocasião das emendas apresentadas em favor dos direitos das mulheres, já expressando dentre tantos temas, a preocupação com a questão da moradia para a mulher: “Assim como a

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Mas, a despeito de todo esse esforço político e social em se estabelecer uma normativa mais adequada à promoção da mulher, ainda persistem aspectos construídos ao longo da história, que criam barreiras quase intransponíveis em muitos campos, como por exemplo, na inserção feminina na vida laboral, e principalmente, em atividades em que predominam a força de trabalho masculina, como o setor da construção. Ressalte-se que, inicialmente, a própria Organização Internacional do Trabalho, assim como o sistema jurídico brasileiro instituíram uma estrutura jurídica pautada na proteção da mulher no mercado de trabalho, que foi um processo que, notoriamente, provocou a sua discriminação, embora a promoção da mulher através de políticas públicas venha se intensificando na medida em que o tema vem sendo debatido vastamente, sendo, inclusive, incorporado ao II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, que tem como um dos seus pilares a inserção produtiva e igualitária da mulher nos diversos postos de trabalho.226 Habermas esclarece que:

Inicialmente, a política liberal tencionou desacoplar conquista de status e identidade de gênero, bem como garantir às mulheres uma igualdade de chances na concorrência por postos de trabalho, prestígio social, nível de educação formal, poder político etc. A igualdade formal parcialmente alcançada, no entanto, só fez evidenciar a desigualdade de tratamento factual a que as mulheres estavam submetidas. A política socioestatal, sobretudo no âmbito do direito social, trabalhista e de família, reagiu a isso com

questão agrária, a urbana merece ser tratada com seriedade. Não se pode falar em democracia, sem garantir a prevalência do uso social da propriedade sobre os interesses individuais. Cabe-nos ressaltar aqui que tanto em relação à terra, rural ou urbana, o título de propriedade deverá ser garantido também às mulheres, independentemente de seu estado civil, possibilitando assim a igualdade de direitos, desvinculando a posse de terrenos ou moradia de uma relação paternalista e dependente;” Disponível em:<

http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/111995>. Acesso em: 18 jul 2019.

226 No ordenamento jurídico-trabalhista brasileiro, por exemplo, pode-se trazer à baila as normas previstas

nos artigos 387 e 379 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O primeiro, já revogado, proibia o trabalho da mulher em subterrâneos, mineração, subsolo, construção civil e atividades perigosas e insalubres. O artigo 379 da CLT, também revogado pela Lei nº 7.855/89, impunha a regra geral de vedação do trabalho noturno para a mulher, estabelecendo inúmeras exceções à sua concessão. Indicadores comprovam que a mulher ainda sofre a resistência de inserção no mercado de trabalho, inclusive, mesmo em situações em que ela tem um nível de formação mais alto ou igual ao do homem, havendo, portanto, uma contínua discriminação na sua vida laboral. É válido acentuar que, ao longo da construção do direito trabalhista brasileiro, inúmeras normas foram dispostas de forma a conferir à mulher, tratamento discriminatório, sob argumentos pautados na proteção de sua condição moral ou física, que se traduziam como regras notadamente androcêntricas, a exemplo dos dados do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia que indicaram que em 2003, a população ocupada feminina na construção era de 5,7%, ao passo que os homens era de 94,3%, já em 2011, o percentual de ocupação feminina no setor passou para 6,1%, prevalecendo, ainda, a ocupação masculina com o percentual de 93,9%, sendo que, o crescimento da escolaridade feminina tem se consolidado nos últimos anos e se manifestado nos diversos setores da atividade econômica. Na construção, esses percentuais alcançam os percentuais de 55,4% de mulheres e

15,8% de homens. Disponível em:

<https://www.ibge.gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_nova/Mulher_Mercado _Trabalho_Perg_Resp_2012.pdf>. Acesso em: 08 mar. 2017.

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regulamentações especiais relativas à gravidez ou maternidade, ou então a encargos sociais em casos de divórcio. (HABERMAS, 2002, p. 236). A reflexão sobre como pensar a mulher como colaboradora do espaço não apenas privado, mas, sobretudo, como sujeito social que merece ser respeitado e tratado com dignidade nas formulações de políticas públicas, sob todos os prismas, deve levar em consideração que a mulher precisa ter autonomia profissional e financeira. No âmbito do Direito do trabalho brasileiro, por exemplo, desde o princípio, os sistemas normativos trabalhistas propugnaram por uma estrutura de desigualdade de tratamento em relação à mulher, que só foi sendo evidenciado, a partir da constatação, através de estudos e relatórios realizados em nível internacional, do contexto de discriminação de gênero no mercado de trabalho, e, mesmo assim, quando os movimentos de mulheres e feministas passaram a reivindicar tratamento igualitário, principalmente, a partir da década de 1960. Essa construção do sistema jurídico fez prevalecer um tratamento diferenciado à mulher através de dispositivos legais que restringiam seus direitos, reforçando uma discriminação, somente depois divulgada por organismos internacionais.227

Essa análise é muito pertinente, no que diz respeito às alterações experimentadas pela legislação civilista, penalista e trabalhista em relação à mulher no Brasil, por efeito, inclusive, do complexo normativo que não encontra guarida apenas no poder estatal e que sofre influência dos documentos implementados pelos organismos internacionais, principalmente atendendo à reivindicação dos diversos movimentos na sociedade. (MEYLAN, 2018)

Entretanto, é importante observar que as perspectivas de se estabelecer agendas políticas plurais, “as quais têm-se constituído em uma das principais reivindicações políticas na atualidade” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2011, p. 90) se alinham muito bem com aquilo que se almeja nas democracias constitucionais, entretanto, quando as demandas de grupos e minorias não recebem a atenção e respeito necessários por parte da esfera pública, podem implicar em “exclusão discursiva” como apontou Cardoso de Oliveira, evidenciando um problema de legitimidade.228 Exemplo clássico dessas

227 O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres apresenta dados que comprovam que o cenário evidencia

que o número de mulheres pobres é superior ao de homens; a carga horária de trabalho das mulheres é maior; as mulheres não têm tantas oportunidades de obtenção de renda quanto o homem e, ainda, que pelo menos metade do seu tempo é gasto em atividades não remuneradas, o que reduz o acesso aos bens sociais, inclusive aos serviços de saúde. (BRASIL, 2013, p. 14). Disponível em: <http://www.spm.gov.br/assuntos/pnpm/publicacoes/pnpm-2013-2015-em-22ago13.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2017.

228 No Brasil, o Código de 1916, revogado em 2002, enunciava originalmente nos termos do seu art. 6º, o

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contradições pode ser evidenciado no art. 390, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), ainda em vigor, que veda ao empregador a contratação de mulher em serviço que demande o emprego de força muscular superior a 20 (vinte) quilos, para o trabalho contínuo, ou 25 (vinte e cinco) quilos, para o trabalho ocasional, que é comumente apontado pela doutrina, como uma situação justa de diferença entre homens e mulheres, mas que impõe uma pertinente reflexão, porque o limite de esforço físico que cada pessoa pode suportar é variável. Nesse sentido, Habermas (2002, p. 236) coloca que “o paternalismo socioestatal assume um sentido literal, já que o poder legislativo e a jurisdição se orientam conforme modelos tradicionais de interpretação, o que só corrobora estereótipos sobre a identidade de gênero ora vigentes.”

Confirmando, assim, a ideia de que a consolidação do direito voltado para acentuar a proteção às mulheres, pode, ao mesmo tempo, voltar-se para a produção de efeitos opostos, senão observe-se como esclarece, Menelick de Carvalho Netto ao trazer uma abordagem sob o viés da hermenêutica constitucional, enfatizando os desafios evidenciados em relação aos direitos fundamentais, sobretudo naquilo que se apresenta como dicotomia entre inclusão versus exclusão:

O primeiro e grande desafio, a meu ver, é sabermos que se, por um lado, os direitos fundamentais promovem a inclusão social, por outro e a um só tempo, produzem exclusões fundamentais. A qualquer afirmação de direitos corresponde uma delimitação, ou seja, corresponde ao fechamento do corpo daqueles titulados a esses direitos, à demarcação do campo inicialmente invisível dos excluídos de tais direitos. A nossa história constitucional não somente comprova isso, como possibilita que repostulemos a questão da identidade constitucional como um processo permanente em que se verifica uma constante tensão extremamente rica e complexa entre a inclusão e a exclusão e que, ao dar visibilidade à exclusão, permite a organização e a luta pela conquista de concepções cada vez mais complexas e articuladas da afirmação constitucional da igualdade e da liberdade de todos. Este é um desafio à compreensão dos direitos fundamentais; tomá-los como algo permanentemente aberto, ver a própria Constituição formal como um processo permanente, e portanto, mutável, de afirmação da cidadania. (CARVALHO NETTO, 2003, p. 145).

Essa diretiva vem sendo tratada pelos diversos diplomas legais, evidentemente, em uma perspectiva de se tutelar os direitos, estes devem visar às pessoas, de forma

o direito de determinar o lugar de residência da esposa e dos filhos, administrar o patrimônio e autorizar sua esposa a exercer uma atividade profissional fora de casa. Situação que só veio a ser modificada quando foi aprovado em 1962, a Lei n. 4.121, de 27 de agosto de 1962, conhecida como o Estatuto da Mulher Casada, mas somente depois de muitos movimentos de mulheres e feministas que reivindicavam direitos, por exemplo, como o reconhecimento de se tornar economicamente ativa, sem a necessidade de anuência do marido. Mais tarde, em 1977, a Lei de Divórcio, também, foi outro instrumento normativo considerado um avanço no ordenamento brasileiro, nessa linha de se contornar as relações desiguais entre homens e mulheres.

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global, e esse processo de adequação das regras trabalhistas às novas disposições constitucionais buscou realçar fundamentos de equidade entre homens e mulheres, inclusive, com a proibição de discriminação em relação ao sexo, prevista no art. 3º, IV, e 5º, I da CF/88, e com a edição das Leis 7.855/89 e 10.244/01 que alteraram alguns dispositivos trabalhistas, que dissimulavam a proteção à mulher.

Alinhando-se a iniciativas sob esse prisma, a Organização das Nações Unidas (ONU), na tentativa de reverter o contexto de desigualdade de gênero vigente em escala mundial, criou, em julho de 2010, a ONU Mulheres. Evidentemente, esta entidade visa fomentar a desconstrução de paradigmas históricos que colaboraram para a concepção de um contexto social e humano excludente na questão do gênero, e tem como bases principiológicas a igualdade de gêneros e o empoderamento das mulheres. Ressalte-se a necessidade de se desenvolver ações políticas voltadas para as mulheres, em vista de se fomentar o reconhecimento do direito que lhes assiste de se tornarem protagonistas, e, por consequência, a oferta de recursos que lhes confiram o alcance de suas capacidades, repulsando a cristalização de processos sociais imbuídos de conceitos dualísticos que marcam sua existência, impossibilitando sua projeção social e política.

Ora, segundo Relatório Sobre a Situação da População Mundial de 2016,229

realizar “a meta de oferecer trabalho decente e assegurar o crescimento econômico será impossível sem a capacitação das pessoas e das instituições, e que as desigualdades de gênero têm um papel muito importante nesse processo”, porque as disparidades nessa área implicam em consequências de exclusão em outras, e por isso, não ampliar a potencialidade de jovens meninas diminui os frutos que podem ser colhidos com o crescimento econômico, na saúde ou na produtividade.

Constata-se que temáticas envolvendo maternidade precoce, violência doméstica, assunção isolada das responsabilidades com os filhos, dificuldades de inserção no mercado de trabalho, falta de acesso ao sistema jurídico, de saúde, de educação e social são realidades bastante presentes no grupo de mulheres do projeto habitacional Novo Bairro, portanto, o papel do projeto social é de grande relevância para a formação daquela comunidade, porque envolve os critérios de reconhecimento das necessidades de cada família, identificando os segmentos de mais vulnerabilidade e, nesse sentido, também, a necessidade de promover a mulher, através de sua inserção no mercado trabalho.

229 O relatório sobre a situação da população mundial/2016 trata, principalmente, da condição de meninas

a partir de 10 anos de idade e da importância de políticas públicas inclusivas, p. 27. Disponível em: <http://unfpa.org.br/novo/index.php/situacao-da-populacao-mundial>. Acesso em: 19 mar. 2017.

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