• Nenhum resultado encontrado

REVISÃO DA LITERATURA

2.3 ARCABOUÇO ANALÍTICO

2.3.3 Dimensões da abordagem nexus: segurança hídrica

Os princípios da Declaração de Dublin estabeleceram as bases para a discussão da gestão de recursos hídricos trazidos à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio 92). Ainda que outras discussões e conferências anteriores tenham abordado o tema de maneira ampla, a criação da Agenda 21 consolidou a aceitação da conexão entre as dimensões do desenvolvimento e a proteção do meio ambiente em escala global (UNITED NATIONS GENERAL ASSEMBLY, 1992). Os princípios que descrevem a finitude dos recursos hídricos, a necessidade de governança participativa e o papel central da mulher na gestão e preservação da água demonstram o caráter multidimensional da segurança hídrica, enquanto a atribuição de valor ao recurso enquanto bem econômico reconhece a competição do uso para diversos setores (SOLANES e GONZALEZ-VILLARREAL, 1999; The Dublin statement on water and sustainable development, 1992). Em análise que quantifica a segurança hídrica em diversos usos da água (necessidades básicas, produção agrícola, meio ambiente, gestão de risco e independência), Lautze e Manthrithilake (2012) relacionam a segurança hídrica para o atendimento às necessidades básicas com o desenvolvimento econômico, mas não necessariamente com a disponibilidade de água em um país onde as demais dimensões foram atendidas e o grau de independência é alto. Evidenciam-se assim a desigualdade na distribuição e a necessidade de gestão conjunta de distintos setores por meio de governança participativa.

As noções de integração, participação e limites na governança e uso dos recursos hídricos proposta pela abordagem Nexus Água-Energia-Alimento é recorrente na literatura sobre a segurança hídrica (NATIONAL RESEARCH COUNCIL; OSTROM, E., 2002; BAKKER e MORINVILLE, 2014; SOLANES e GONZALEZ-VILLARREAL, 1999; VÖRÖSMARTY et al., 2010; COOK e BAKKER, 2012). Bakker e Morinville (2014) identificam aspectos da governança dentro do contexto da segurança hídrica que ilustram estas noções: governança adaptativa, governança policêntrica, aprendizagem social, governança multinível e poder social. Ostrom (2002) reforça que os princípios de instituições auto-governadas robustas devem incluir limites bem definidos e arranjos de escolha coletiva. Estas dimensões evidenciam tanto a conexão da gestão da água com as variações na

qualidade dos serviços ecossistêmicos e consequentes processos de adaptação quanto a influência das dinâmicas e do capital social nas decisões sobre o uso de recursos hídricos.

O conceito de segurança hídrica tem sido abordado por múltiplas disciplinas nas últimas décadas, sobretudo após os anos 2000 (COOK e BAKKER, 2012) e com os crescentes debates sobre os sistemas interligados da biosfera e o fortalecimento da agenda de combate às mudanças climáticas (STEFFEN e ELIOTT, 2004; STEFFEN et al., 2018). A complexidade da governança dos recursos hídricos se reflete na amplitude de aspectos abordados e focos por distintas áreas: acesso, produção agrícola, proteção de perigos, estabilidade de abastecimento com qualidade e quantidade, promoção da saúde e preservação do meio ambiente, entre outros. Ainda que não exista um único conceito que tenha sido apropriado pela literatura por consenso, percebe-se entre as definições mais aceitas uma tendência de abrangência e flexibilidade para abarcar grande parte destes aspectos. A Parceria Mundial pela Água (GWP, do inglês Global Water Partnership) apresentou no segundo Fórum Mundial da Água um dos conceitos mais citados na literatura:

“segurança hídrica, em qualquer nível, desde domiciliar a global, significa que cada pessoa tem acesso a água segura suficiente a custo acessível para que conduza uma vida limpa, saudável e produtiva , ao mesmo tempo garantindo que o ambiente natural seja protegido e aprimorado5

(VAN BEEK e ARRIENS, 2000).

A definição desenvolvida por Grey e Sadoff (2007) também aborda aspectos similares das escalas individual e produtiva e as dimensões ambiental, social e econômica, mas adiciona um caráter qualitativo de aceitabilidade da segurança hídrica em termos de qualidade e quantidade, bem como em relação aos riscos às pessoas, ao meio ambiente e à economia. Os autores estendem o conceito para a discussão de que a segurança hídrica se define pelo grau de tolerância aos riscos para a sociedade, em outros termos, para um grau aceitável de insegurança (GREY e SADOFF, 2007; GREY et al., 2013).

Em ampla revisão de como o termo é abordado na literatura, Cook e Bakker (2012) identificaram cinco dimensões que dão suporte à definição da segurança hídrica e que, ao mesmo tempo, são seu próprio objetivo: quantidade e disponibilidade, riscos relacionados à vulnerabilidade e à água, atendimento às necessidades humanas, sustentabilidade e, de forma menos intensa que as demais áreas, a dimensão da água na segurança militar e ambiental (COOK e BAKKER, 2012). Ainda que o foco de abordagens disciplinares da segurança hídrica parta de definições mais próximas da

área de estudo de onde surgem (por exemplo, segurança hídrica como estabilidade de fornecimento do insumo para a agricultura e a segurança alimentar nas ciências da agricultura ou a prevenção e avaliação de contaminação da água nos estudos relacionados à saúde pública), existe um reconhecimento da multiplicidade de domínios, escalas e dimensões do conceito. Lautze e Manthrithilake (2012), por exemplo, questionam o fato de que a análise da segurança hídrica nestes cinco usos não inclui a segurança nos setores de saúde, nos modos de vida e na indústria.

Em relação à quantidade e disponibilidade, discute-se foco em stress hídrico (perda de água verde e azul6) e escassez (sob a perspectiva de demanda, medida pela retirada per capita ou, pelo princípio contrário da oferta, medida pelo número de pessoas que devem compartilhar cada unidade de água retirada).

A questão das escalas se faz novamente fundamental. O aprofundamento dos estudos sobre os aspectos físicos dos ciclos da água na Terra demonstra que fluxos são globais e que seus limites são planetários (STEFFEN e ELIOTT, 2004). Relações de troca local influenciam padrões de uso que podem ter efeitos colaterais em nível global (GREY et al., 2013). Enquanto estudos que exploram o desenvolvimento estão concentrados na escala nacional, avaliações técnicas comumente se concentram nos processos em nível de bacias. As ciências sociais, por sua vez, tendem a se concentrar na escala das comunidades (COOK e BAKKER, 2012). Riscos relacionados à água doce são comumente percebidos sobretudo como um desafio local, pertinente à escala dos assentamentos humanos. Consequentemente, instituições e políticas se dedicam a questões locais como saneamento, acesso à água e irrigação (GREY et al., 2013), comumente desconsiderando seus impactos em outras escalas. A avaliação da segurança hídrica em múltiplas escalas se faz, portanto, essencial. Em análise de risco em estrutura espacial, Vörösmarty identifica as conexões das atividades humanas e funções da biodiversidade à montante e à jusante, desmitificando a percepção de segurança hídrica ao avaliar que 80% da população mundial se encontra em situação de alto risco (VÖRÖSMARTY et al., 2010). Esse resultado demonstra a incompatibilidade das escalas das instituições que levam a decisões equivocadas sobre a governança dos recursos, corroborando os desafios postos pela governança dos novos comuns (DURAIAPPAH et al., 2014). Essa incompatibilidade se evidencia na disparidade presente em estudos de modelagem de processos hidrológicos de bacias: é comum que o escopo

6 Falkenmark e Rockström (2006) redefinem um novo paradigma da água verde-azul na gestão e planejamento de recursos

hídricos: precipitações pluviais se dividem em recursos de água verde (sob a forma de umidade em zonas não saturadas) e recursos de água azul (rios, lagos, represas, pântanos e brejos). Ambos contribuem para o fluxo do ciclo da água e sua disponibilidade para o consumo humano e funções ecossistêmicas.

geográfico destes estudos se relacione aos limites políticos e não aos naturais (COOK e BAKKER, 2012).

A segurança hídrica e a relação com a disponibilidade de recursos estão no centro da abordagem nexus e influencia a maioria das relações entre os três setores, ainda que o próprio paradigma da abordagem imprima esforços para que as avaliações tenham uma perspectiva balanceada e intersetorial.