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5 DIREITOS IGUAIS PARA TODOS OU É MEU GÊNERO QUE VAI DIZER?

5.2 A DINÂMICA DOS BARRACOS — VISITAS EXTERNAS E NOVOS ARRANJOS FAMILIARES

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Além das visitas internas abordadas no item anterior, todos os presos da unidade prisional em que se realizou a pesquisa recebem ainda as visitas externas. Assim como em outras unidades prisionais, as visitas são divididas em duas categorias: As visitas íntimas, que acontecem aos sábados e as visitas dos familiares (que também podem ser íntimas) acontecem aos domingos.

Nas sextas-feiras a prisão já começa a ficar agitada, tudo fica diferente. Durante a manhã todos os moradores do pavilhão (“homens” e “bichas”) se unem para fazer a faxina de suas celas e barracos. No horário da tarde, o pátio do pavilhão X se transforma em um salão de beleza repleto de pessoas por todos os lados, aparando a barba, cortando os cabelos e até mesmo arrumando as unhas dos pés e das mãos. Dá pra perceber a ansiedade de cada um/a somente ao observar esse ritual de preparação e através das falas expressadas por Leandro, morador da Casa das Madrinhas:

Toda vez que eu sinto que ela vem no outro dia eu não consigo dormir. Fico olhando pro dia. Fico, meu irmão vai clarear logo! Fico rezando pra chegar logo de noite, de amanhecer logo o dia, porque no outro dia eu fico sabendo que vai ter visita. Fico olhando pras janelas, fico olhando pra grade, fico pensando que o dia já tá claro, dá pra tomar banho esperano. É, é muita alegria, né véi? quando o cara fica sabendo que ela vem. (Leandro)

Para os moradores da Casa das Madrinhas o dia da visita é um dia especial porque além de rever uma pessoa próxima da família, normalmente mulher (mães, avós, irmãs, etc), eles ainda são reabastecidos de mantimentos (alimentos, produtos de higiene pessoal, acessórios etc), além de ganharem dinheiro para comprar suprimentos dentro da prisão e pagar as dívidas de drogas feitas durante a semana. Segundo Paola, “é um dia sagrado” e por essa razão, a visita externa é vista como uma “entidade” digna de respeito.

Na Casa das Madrinhas, durante os dias que eu estive acompanhando essa rotina, não vi ninguém receber visita de figuras masculinas (companheiros, irmãos, pais, tios, avós etc), com exceção de Yayá que recebe a visita de seu companheiro.

Nesse contexto é possível, perceber que as questões de gênero se relacionam diretamente ao perfil de quem visita as pessoas que estão na prisão, especialmente no caso das pessoas LGBTs, cujo rompimento das relações familiares muitas vezes se dá antes dos processos de encarceramento (TOLEDO; TEIXEIRA FILHO, 2013).

Todos os moradores da Casa das Madrinhas recebem visitas de familiares aos domingos, alguns de 15 em 15 dias, outros todas semanas, mas só Yayá recebe visita aos sábados. Antes de ingressar na prisão ela mantinha um relacionamento estável e toda semana seu companheiro vai visita-la. Porém, ela se queixa que o horário da sua visita é diferente do horário da visita dos demais reeducandos da unidade (que é das 07:00 às 16:10), seu marido só pode entrar às nove horas da manhã e é obrigado a sair uma hora antes do horário em que as sirenes da cadeia avisam que está na hora de todas as visitantes deixarem a prisão.

Outra coisa erradíssima aqui eu acho, minha visita tem que sair de três horas porque é homem. Já a do heterossexual pode sair até quato e dez, por quê? Minha visita só pode entrar de nove horas, já a do hetérosexual começa a entrar de sete, por quê? Qual é a diferença da minha opção sexual pra dele? Só com LGBT. Se aceitam a nossa opção sexual, por que as nossas visitas são excluída? Nossos maridos, só podem entrar de nove e sair de três? Eles não podem entrar de sete, no horário normal e sair às quato e dez, que é às dezesseis e dez. Por que não? (Yayá)

A crítica feita por Yayá denuncia a dificuldade que a população LGBT enfrenta para receber visitas íntimas masculinas. Nesta unidade, em particular, ainda que tenha sido reconhecido o direito à visita íntima para as pessoas LGBTs, percebe-se que há uma distinção entre as visitas “dos presos heterossexuais” e dos “presos homossexuais”.

Apesar de ter o direito constitucionalmente garantido, as pessoas LGBTs ainda enfrentam dificuldades para receber seus companheiros dentro das prisões. Isso acontece em razão de ainda haver uma forte discriminação social a respeito do casamento homoafetivo (COSTA; NARDI, 2015).

Na ala Casa das Madrinhas, Yayá recebe o companheiro dentro do seu barraco. As demais madrinhas e padrinhos que não recebem visitas íntimas emprestam ou alugam os seus barracos para outros presos “tirar suas visitas”. A mesma coisa acontece dentro da “casa dos homens” e enquanto os que recebem visitas estão dentro dos barracos tendo as suas relações sexuais, os que não recebem visitantes ficam reunidos em uma “pracinha” em frente à igreja do pavilhão (ver fig 1). Durante esse período, ninguém pode ficar próximo às celas e barracos aonde estão acontecendo as relações:

a gente não pode nem ficar perto da grade a gente não pode. Se ficar, o caba, algum presidiário vê que a gente tá, é que eles pensam que a gente tá brechando. Aí diz ó, tá brechando, aí as turma pega, as turma pega e bate. Quando as turma disser pega, ouxe! (Amaro)

Para Leandro é muito difícil essa situação, pois ele acredita que quem não recebe visita deveria ter um lugar para poder ao menos dormir durante o dia, mas como ele não tem um barraco, mora junto com outra madrinha, ele não tem muita escolha. Paulo, outro morador da casa que divide barraco com Leandro, reclama da obrigação de ter que se retirar do seu lugar para que outros possam manter relações sexuais ali:

eu saio do meu lugar, eu tiro meu travesseiro, tá entendendo? Eu não tenho minha privacidade. (Paulo)

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Todavia é muito difícil se falar em privacidade dentro de um ambiente em que se propõe a vigiar e esquadrinhar os indivíduos (FOUCAULT, 2014). As relações sexuais acabam por acontecer por trás dos lençóis dos barracos, sem garantia nenhuma de dignidade e de privacidade, tanto para quem recebe as visitas, quanto para quem precisa se retirar do seu lugar para ceder espaço para que os outros realizem as suas práticas sexuais.

Aos domingos, como se trata de um dia em que não só as companheiras dos detentos vão visitar, mas também as mães, irmãs, filhas e até pessoas desconhecidas dos grupos religiosos e pastorais carcerárias que visitam os presos que não possuem nenhum tipo de visita (porque estão presos longe das famílias, porque ao serem presos foram abandonados, porque cometeram crimes contra a própria família, dentre outros motivos), as moradoras e moradores da Casa das Madrinhas se reúnem com suas visitas e fazem uma espécie de piquenique na quadra poliesportiva do pavilhão.

Elas forram lençóis no chão e compartilham entre si os alimentos trazidos por suas visitas. Todos os moradores da ala participam desse ritual, até os que não recebem visitas semanalmente e como dito por Yayá, “almoça todo mundo em família como se fosse uma família”. Leandro conta que no dia em que não recebe visitas da sua vó ele não fica triste, pois para ele “as visitas se constroem na mesa” e explica:

Nós come tudo junto, as visita fica tudo junto. Se num vim a minha, vem a do outro pessoal que mora lá. Quando vem a visita dos outro pessoal nós fica igual como se fosse visita de nós também, de boa. Elas dá comida a nós, de boa, também como fosse visita de nós também. Um ajuda o outro, né? Quando vem as minha, dou craque, dou baseado eu divido. Minha vó gosta deles tudinho, conversa com eles (...) quando minha vó vem, minha vó pergunta logo por eles também. Pergunta que

eles tão bem, eu digo que tá. Minha vó gosta de todos eles e as mãe deles gosta de todos nós e assim vai. Família, nós trata eles como se fosse uma família. (Leandro)

Os arranjos familiares dentro desse espaço acabam se formando a partir de sentimentos diversificados como o de pertença e amizade, além da busca por reconhecimento dentro da comunidade (MESQUITA, 2013). Uma vez que os moradores e moradoras da Casa das Madrinhas incorporam outras figuras da prisão ou do “fora” como familiares, esses novos membros passam a ser a “família escolhida” por eles (WESTON, 1992), levando em consideração as interações socio afetivas que tem como base o amor e amizade, a partir da escolha individual de cada um.

Acompanhei todos esses rituais de perto, desde o ritual de preparação ao ritual do piquenique familiar, inclusive no segundo domingo de agosto no qual se comemora no país inteiro o Dia dos pais. Em datas comemorativas a entrada de outros membros da família, além dos que possuem a carteira de visitação, é flexibilizada.

Ainda assim, a presença de indivíduos do sexo masculino como visitantes na cadeia como um todo, é praticamente inexistente. Paulo chegou a comentar que seu pai “não tem interesse” em visita-lo. Já Leandro informou que seu pai também está preso em outra unidade e sua avó acabou se casando com um dos reeducandos do pavilhão X, que se tornou um “avô” para ele, alguém que cuida dele dentro da prisão, passando a fazer parte da família dele e da “família das madrinhas e padrinhos” também.

E dessa forma, por meio de “adoções” vão se construindo as outros novos arranjos familiares nesse espaço, como uma forma de fugir do sentimento de solidão que recai sobre os indivíduos que estão aprisionados pelos corpos, pelas performances, pelos desejos. Aprisionados pelo preconceito, pelas diferenças e pela norma. Restando-lhes apenas apoiarem- se uns nos outros numa espécie de “estrutura familiar” como uma estratégia para resistir e sobreviver dentro desse ambiente tão hostil que é a prisão.

5.3 RESPEITO ATÉ A SEGUNDA PÁGINA — A RELAÇÃO COM OS AGENTES