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5 DIREITOS IGUAIS PARA TODOS OU É MEU GÊNERO QUE VAI DIZER?

5.1 TEM DIA MARCADO PRA SENTIR PRAZER? — VISITAS INTERNAS E RELAÇÕES AFETIVO SEXUAIS CONJUGAIS

Nesse tópico, caracterizamos os símbolos, regras e rituais que irão realizar o controle sobre os corpos das pessoas LGBTs na prisão e gerenciar as práticas sexuais dessa população dentro do pavilhão masculino em que a ala se encontra inserida.

O modelo das relações afetivo-sexuais-conjugais e eróticas das visitas internas recebidas pelos membros da Casa das Madrinhas se assenta no simbolismo das figuras dos “clientes”, “paqueras”. São essas categorias que irão acionar os dispositivos de sexualidade organizando as práticas sexuais desta população, utilizando o tempo como um instrumento de controle e gestão dessas práticas.

Ao analisar o material coletado durante a minha experiência etnográfica nesta ala LGBT, uma questão me chamou bastante atenção. Em praticamente todas as entrevistas que fiz as pessoas falaram a respeito de uma regra que envolvia as relações sexuais mantidas entre a população da ala e os homens do pavilhão X.

Segundo os relatos das moradoras e moradores da ala, existem dias específicos em que é permitido se relacionar sexualmente dentro do espaço do pavilhão, mais precisamente na ala Casa das Madrinhas, onde as cenas sexuais envolvendo essa população pode acontecer, pois como já foi dito anteriormente, as “bichas” travestis e as transexuais são proibidas de circular na “casa dos homens”.

De acordo com essa regra, quem for pego cometendo “pederastia62fora dos dias estabelecidos (“bichas” e “homens”) pode sofrer graves consequências que vão desde agressões verbais e/ou físicas à expulsão dos “homens”, neste caso os que não moram na ala, do convívio do pavilhão masculino. Uma vez expulsos, os “homens do pavilhão” passam a morar na Casa das Madrinhas e ambos (que foram pegos em flagrante) são obrigados a se casar. De acordo com Yayá:

Segunda-feira não pode, nem sexta. Sexta em respeito à visita do sábado, porque tem homem viçoso que quer viçar com a gente e pra evitar DST, IST. Segunda não pode pra respeitar a visita, porque ele teve visita sábado e domingo, então na segunda ele tá de boa. Ele pode fazer sexo terça, quarta e quinta. Na sexta ele não pode fazer nada porque no sábado ele tem visita (...) os homens que disse que era assim, a própria população, no caso os homens, não foi as gays. Se pegar um

62 Palavra cujo significado está atrelado ao relacionamento erótico entre um homem mais velho e um rapaz/menino mais novo. No contexto nativo, refere-se à prática sexual entre dois homens, independentemente da idade.

homem transano dia de segunda ou dia de sexta, é cacete que eles dão no homem e ainda bota o homem pra morar com a gente a pulso. A gente é obrigado a casar. (Yayá)

Nos dias em que se é permitido transar no X, a Casa das Madrinha costuma ficar muito movimentada e passa a ser frequentada por dois tipos de visitantes internos: “os clientes” e “os paqueras”.

Os “paqueras” são os “homens do pavilhão” ou “bofes63” que vão para a Casa das Madrinhas para “curtir sem compromisso”. Eles costumam passar o dia inteiro na casa, almoçam e chegam até a pernoitar algumas vezes. Tanto “os homens da Casa das Madrinhas” quanto “as bichas” tinham cada qual “seus paqueras”:

(...) cada um tem o seu, cada um arruma o seu. Só não pode assim a merma... o mermo prato, né? Tem que ser prato diferente. Porque se ela comeu de um prato e você for comer, ela já fica com a cara feia. Não você tem que levar outro bofe diferente. É, é.é. (...) assim porque, pronto, tu é minha amiga, mora lá comigo, aí tu já levasse um bofe só que ele não é nada seu, só levou pra curtir, aí se eu for experimentar desse mermo prato, aí a minha amiga já vai ficar com raiva, apesar que ele não tem nada com ela, entendeu? (Borboleta)

Essas relações eram marcadas por uma característica afetivo-sexual, ao ponto que além das práticas sexuais, havia uma troca de afeto e de carinho. Os paqueras também podiam ser “agregados”, mas nem todo “agregado” era “paquera”- o que diferenciava essas duas relações eram as práticas sexuais, pois agregados tinha uma relação mais no âmbito da amizade e “supostamente”, não havia envolvimento sexual. Caso a relação envolvesse sexo, o agregado passava a ser paquera.

Os clientes eram os “homens do pavilhão” que procuravam as madrinhas (prostitutas) com o objetivo explícito e único de transar. Em troca do sexo, elas recebiam algum dinheiro ou drogas como pagamento pelos “serviços sexuais” (programa). As “bichas”, principalmente as travestis e transexuais eram as que mais recebiam visitas de clientes.

Cada um tem seus cliente, aí dez, cinco, quinze, cada um tem seus macho diferente por dia. Aí só não pode pegar o mermo das amiga, porque senão minha fia é babado, confusão e tudo. (Borboleta)

Além de sexual essas relações também se anunciam no campo do erótico pois se relacionam com a desobediência da ordem (PARKER,1991). Elas aconteciam muitas vezes às escondidas dos companheiros/maridos das travestis, dentro do banheiro da ala, enquanto esses estavam realizando algum trabalho em outro espaço da unidade prisional. Eram relações que subvertiam às regras firmadas dentro da relação conjugal (respeito, fidelidade, exclusividade).

Os “homens do pavilhão” que frequentavam a casa (clientes ou paqueras) eram considerados pelas moradoras e moradores da Casa das Madrinhas, e pelos demais “homens do pavilhão” que não frequentavam a casa, como “homens entre aspas”.

Os homens entre aspas eram assim generificados, pois eles realizavam práticas sexuais com os gays, as trans e as travestis da ala. Entretanto, eles também mantinham relações sexuais com mulheres cisgêneras de fora da cadeia, afim de negar qualquer associação com a orientação homossexual.

Dessa forma, eles passavam a ser entendidos dentro do espaço prisional como homens bissexuais, ou seja, como os sujeitos que “curtem” homens e mulheres, embora eles próprios se definissem enquanto homens heterossexuais, ainda que mantivessem práticas sexuais homoeróticas com as moradoras e moradores da ala. Segundo Yayá, “eles são homens entre aspas, porque geralmente são bissexual”.

As relações sexuais, por sua vez, aconteciam dentro dos barracos de cada uma, nesse caso, o barraco ficava reservado exclusivamente para a madrinha ou padrinho e “seu paquera” ou “cliente” durante um determinado horário, em um acordo pré estabelecido entre todos os que dividiam o espaço. Se o barraco já estivesse ocupado por outra pessoa no momento, elas e eles iam para dentro do banheiro na tentativa de manter uma certa privacidade, mas obviamente, todos ao redor sabiam que quando um “homem do pavilhão” e uma pessoa da ala se trancava entre quatro paredes (ou entre os lençóis do barraco) era pra “fazer putaria”, afinal entre quatro paredes “tudo pode acontecer” (PARKER,1991).

Ao perguntar a Paola, moradora da ala que figura a “bicha gay que dá pinta” como começavam as paqueras dentro do pavilhão ela me respondeu sorridente:

rola no dia a dia, na conversa, estendendo roupa aí sai uma cantada, uma piada, aí acontece de marcar um esquema, marcar tal hora, é isso aí acontece o clima, né? a química bater. (Paola)

dá para perceber pelo olhar, pela postura corporal, através da carência do outro que se aproxima, por meio de conversas indiretas que deixam subentendido o interesse e o desejo. (Paulo)

Já os clientes normalmente se direcionavam às travestis e às transexuais da casa oferecendo crack, pois era uma droga utilizada por todas e elas dificilmente recusavam. Outras vezes, elas mesmas ofereciam uma chupadinha64 em troca de uma pedra ou um cigarro de maconha.

Karol, travesti que se configura na categoria “bicha”, era conhecida dentro do pavilhão X como “boca de veludo”, pois era a pessoa mais procurada para realizar sexo oral. Já Borboleta, “bicha” transexual, que não esconde de ninguém que “ama ser puta” era a mais procurada pelos “homens do pavilhão”, pois de todas da casa, apenas ela e Kelly possuíam uma estética corporal “feminina” (tem aplicação de silicone nos seios, nas pernas e na bunda). Algumas vezes, a paquera acabava virando casamento e os “homens do pavilhão” se mudavam para dentro da Casa das Madrinhas, tornando-se um padrinho e passando a fazer parte da “família”. Caso a madrinha fosse transferida de unidade prisional ou recebesse a liberdade por alvará de soltura, o padrinho poderia escolher entre voltar para a “a casa dos homens” – o que muitas vezes tornava-se complicado, visto que ele teria passado pelo processo de generificação e deixado de ser considerado “macho” pelos demais “homens do pavilhão”- ou, se unir à outra madrinha da casa para permanecer morando nesse lugar.

Na constituição da população da Casa das Madrinhas, na época em que estive na prisão, existia um caso desses em que uma dinda foi transferida de unidade e seu companheiro passou a se relacionar com outra moradora da ala, Adriana, a única da ala que mora com o marido. Paola também tem um marido, mas prefere não o levar para morar dentro da Casa das Madrinhas para evitar confusões pois segundo ela:

isso causa desacerto, o tempo vai passando vai causando desacerto. Tanto do homossexual com ciúme, quanto dele. É muito bicudo no pé da costela65, eu não quero perder o restinho da minha saúde apanhano dento de presídio, aí eu prefiro assim. (Paola)

Ela também contou que já foi convidada para morar com ele dentro do pavilhão X, mas negou por ser homossexual. Para ela, “homossexual tem que ficar separado dos homem, não pode tá junto não, de jeito nenhum”. Quando questionei por que não podia ela me respondeu

64 Sexo oral.

que “rola muita contenda66” e explicou que para ela, “pavilhão de madrinha é pavilhão de madrinha, pavilhão de homem é pavilhão de homem”. Dessa forma ela prefere deixar do jeito que está, cada um em seu pavilhão em uma relação que “fecha companheirismo”, 67ela lava a roupa dele e ele a agrada trazendo um cigarro e alguns trocados.

Já Adriana, resolveu dividir o barraco com seu companheiro por considerar a relação entre eles “maravilhosa”, para ela, eles “são um casal”. A madrinha só se queixa a respeito da falta de privacidade na hora de se relacionar sexualmente:

é horrível, de dia não tem como, só durante a noite. Porque fica uma zuada68, um chama, a pessoa não se concentra muito no que quer fazer, mas é péssimo mesmo ter relação dentro de um barraco, o que tá lhe cobrindo é só um pedaço de pano, você se sente que todo mundo tá lhe veno, e péssimo. (Adriana)

Entretanto, apesar de definir sua relação como maravilhosa, Adriana e seu companheiro protagonizaram uma cena de violência dentro da Casa das Madrinhas que virou assunto entre as moradoras e moradores da ala e do pavilhão. Paola me contou que:

Na hora do almoço, só que bem antes da hora do almoço ela tem um cliente que compra uma coisinha pra dar a ela, dá um trocado a ela, aí o cliente quis algo a mais. No dia a dia, vem comprando muita coisa pra ela, aí ela perguntou a mim se pudia ir com ele pra o banheiro, aí eu digo, não tô veno nada. Eu nunca vejo nada dento do presídio que eu sei como é, aí a outra que é responsável pela gente foi contar ao boy dela. Ele num teve dúvida, foi lá e deu um chute na costela, na frente do, na frente do cliente dela, que tava com ela dento do banheiro escondido horas antes. Foi, ele num teve dúvida, quando ele ficou sabeno aí ele já saiu de cara feia. Foi só um chute na costela da outra, tuff (imitando o som do chute), foi um chute babadeiro. (Paola)

Paola contou ainda que evita trair o seu companheiro pois sente-se intimidada por ele que já ameaçou bater na cara dela se pegar ela “vacilando69”.

Em todas essas relações produzidas dentro da ala LGBT pude presenciar ou escutei relatos de abusos e violências de gênero (ameaças, violências físicas, verbais, etc) praticadas

66 Expressão nativa que significa discórdia ou discussão.

67 Expressão nativa que pode significar firmar parceria ou reciprocidade em um relacionamento. 68 Zoada, barulho

69Palavra derivada da expressão “vacilar” que, nesse contexto, significa cometer um erro, deslize ou desvio de conduta.

pelos “homens do pavilhão” (clientes, paqueras, maridos) contra a população da Casa das Madrinhas. No entanto, quanto maior o grau de comprometimento da relação, mais violenta ela vai ser.

Nas histórias de Adriana e Paola com seus respectivos maridos, fica explícito o caráter abusivo das relações afetivo-sexuais-conjugais, a partir das atualizações simbólicas das hierarquias de gênero, existentes na sociedade e que são reiteradas e incorporadas nessas relações conjugais (BAPTISTA-SILVA, HAMANN & PIZZINATO, 2017; PELÚCIO, 2006) que se circunscrevem dentro do ambiente prisional. Nas relações entre clientes e paqueras as violências eram mais sutis (xingamentos depreciativos, não pagamento dos programas sexuais etc.), mas não deixavam de existir.

Ora pois, os modelos padronizados dessas relações, pautadas pelas práticas sexuais dentro do cárcere seguem o fundamento da atividade x passividade já enraizada na vida da sociedade brasileira (PARKER,1991), conferindo ao indivíduo que representa o papel masculino, nesse caso aos “homens do pavilhão” – clientes, paqueras e maridos, o lugar de atividade enquanto que a quem representa o papel feminino, “as bichas” ou “os homens da Casa das Madrinhas”, é atribuído o lugar de passividade.

Nesse sentido, foi possível perceber ainda que sob todos esses dispositivos sexuais paira uma mecânica de subordinação na qual os “homens do pavilhão” normatizam quando, onde e de qual forma as práticas sexuais desses indivíduos devem acontecer. Dessa maneira as madrinhas e os padrinhos são obrigados a obedecer a essa determinação sob o risco da punição pela agressão, humilhação e pelo rechaçamento.

Para os “homens entre aspas” essa normatização não é diferente, visto que ao se envolverem sexualmente com alguma pessoa da Casa das Madrinhas eles são levados a assumir uma nova categoria identitária que os aproxima das identidades dessa população. Logo, eles passam a “sofrer”, ao mesmo tempo que também praticam, alguns processos de discriminação. Em outras palavras, eles violentam para não serem violentados.

E através dessas configurações vão se construindo os modelos das relações que fazem parte da rotina diária dos coabitantes da Casa das Madrinhas. Antes de finalizar esse item, faz- se necessário dizer que embora conflituosas, são essas relações que vão garantindo de alguma forma a sobrevivência dessa população dentro do cárcere, ainda que seja difícil.

5.2 A DINÂMICA DOS BARRACOS — VISITAS EXTERNAS E NOVOS ARRANJOS