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Nos finais do século XV, a paisagem urbana do Porto apresentava sinais evi‑ dentes de fragmentação: à emergência de unidades como a Ribeira/Barredo, o Olival e a Sé, correspondentes, aliás, às futuras freguesias instituídas por Marcos de Lisboa em 1582, associava‑se uma conflitualidade latente entre a população e o seu bispo e a necessidade urgente de uma política de reforma. Um primeiro esforço no sentido de unificação desse espaço, de sarar as feridas sociais que a longa luta entre o bispo e os habitantes ao longo do século XIV deixara abertas, de empreender a reforma eclesiástica e, portanto, de devolver à Sé uma centrali‑ dade que vinha perdendo, sobretudo em favor dos conventos mendicantes, seria prosseguida pelo bispo D. Diogo de Sousa (1499‑1505).

D. Diogo foi das mais precoces e importantes personalidades do humanismo português, tendo, à época que foi nomeado bispo do Porto, visitado Roma; antes disso, em 1493, tinha tomado parte muito ativa na embaixada enviada por D. João II ao Papa Alexandre VI. Na Cidade Eterna, para além de ter estabelecido contactos com humanistas como Henrique Caiado e Cataldo Áquila Sículo, pode ter‑se familiarizado com o programa humanista de refundação urbana iniciado

* Investigador da área foco “Património Conservação e Restauro do CITAR da Universidade Católica Portuguesa e membro colaborador do CEAU da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto”.

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por Nicolau V e prosseguido pelos seus sucessores. Este papa via na promo‑ ção da arquitetura pelos dignatários eclesiásticos, fosse ela sagrada ou profana, uma forma de melhor cumprir os seus deveres para com Deus. Seguindo esse princípio, que o levou a empreender um vasto programa construtivo, transferiu a mudança de local de residência papal, de São João de Latrão para São Pedro do Vaticano, afirmando assim a sua proeminência na paisagem urbana romana. D. Diogo de Sousa, humanista e reformador, foi um seguidor desse modelo, empreendendo um conjunto de ações que visaram restituir à Sé o seu papel de primazia, não só entre as igrejas portuenses, mas igualmente na paisagem urbana da cidade.

Desse modo, em 12 de dezembro de 1499 trasladou a relíquia de São Panta‑ leão da igreja de Miragaia, onde se encontrava depositada desde, supostamente, 1453, para a Sé. A sua igreja, em que não abundavam as relíquias, ficaria assim enriquecida pelos valiosos despojos do santo taumaturgo. As relíquias eram instrumentos de poder, capazes de o transmitir para as instituições que as pos‑ suíam e faziam venerar e, igualmente, para o conjunto da sociedade. Assim, não surpreenderá o interesse da Coroa pelas ossadas de São Pantaleão: D. João II ordenou a execução de uma arca de prata para elas e o seu sucessor D. Manuel I, quando, em 1502, passou pela cidade a caminho de Compostela, ordenou a con‑ clusão da arca, mas introduzindo alterações à sua iconografia, acrescentando‑lhe as suas armas.

As capacidades agregadoras e identitárias das relíquias, não apenas do tecido social mas igualmente do espaço urbano, são bem conhecidas: o depósito da arca na Sé apenas poderia contribuir para a proeminência desta. O espiritual, porém, deveria ser complementado pela ação material e institucional. Nesse sentido, D. Diogo dignificou a sua igreja, reconstruindo a galilé ou alpendre de São João. Com origem medieval, já que devia a sua designação ao altar de S. João Baptista no topo norte do transepto, substituído, no século XIV pelo da confraria de Nossa Senhora do Presépio, abria‑se no flanco norte da Sé, frente ao largo do mesmo nome e mantinha, desde a sua fundação uma importante funcionalidade institucional. Foi no alpendre que, em 1328, o corregedor real se sentou para julgar os diferendos que opunham a Coroa ao recém‑eleito D. Vasco Martins (1328‑1342); aí deveriam ser lidas e publicadas, como era costume no reino, as respostas régias aos capítulos de cortes. Também os diversos conflitos que opuseram, no século XV, a Sé aos mendicantes, entre os quais se destaca a questão da confraria de Jesus, instituída no convento de São Domingos, tiveram nele importantes episódios: foi no alpendre que, a 25 de agosto de 1450, um tabelião leu a carta do legado apostólico, dirigida ao Cabido, em que nomeava frei Gomes, prior de Santa Cruz de Coimbra, para resolver a disputa. Aí, ou nas proximidades, se devem ter também efetuado reuniões concelhias quando os participantes eram numerosos. A longa tradição institucional prosseguiria no

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século XVI, sendo aí arrematadas as rendas da Mitra. Devido a essa funciona‑ lidade, o pórtico construído por D. Diogo de Sousa, coroado por ameias e com arcaria gótica que sustentava uma cobertura de madeira, possuía uma série de bancos e assentos e exibia as armas do prelado.

No interior da igreja, D. Diogo mandou erguer um novo retábulo‑mor. Não nos chegaram quaisquer descrições dele, mas podemos imaginá‑lo semelhante aos monumentais retábulos de gosto flamengo e de estilo gótico flamejante, dis‑ postos em vários níveis, que, pela mesma época, serão colocados na Sé de Coim‑ bra ou na do Funchal e, um pouco depois, o mesmo D. Diogo encomendará para a nova capela‑mor da Sé de Braga. Ainda uma outra fundação importante se terá ficado a dever a D. Diogo de Sousa: a Misericórdia, instituída no designado “claustro velho”, provavelmente em 1503, data exibida numa pedra, com as suas armas, que aí foi encontrada durante as obras de restauro empreendidas pela Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais na década de trinta do século passado. O conjunto ocupava uma boa parte da extremidade NE do claus‑ tro e tinha porta aberta, com alpendre, voltada ao designado Adro Detrás da Sé, que circundava a antiga charola românica, atual beco dos Redemoinhos. A casa do Despacho localizou‑se onde se encontra hoje a casa museu Guerra Junqueiro, comunicando com a capela no interior do claustro, mais tarde designada de Santiago, através de uma escada em caracol, aberta na espessura do muro, ainda existente.