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D. Rodrigo da Cunha relata sobre o seu antecessor Gonçalo de Morais (1602‑ ‑1617), que ele, como César Augusto em relação a Roma, se poderia vangloriar de ter achado a Sé em taipa e a ter deixado em mármore2. Gonçalo de Morais foi beneditino, estudou em Coimbra e foi monge no mosteiro em Refojos de Basto. Posteriormente, foi prior do desaparecido mosteiro de Santarém, também

1 Manuel Pereira de Novais – Anacrisis Historial. II parte. Vol. IV. Porto: Biblioteca Pública Municipal do

Porto, 1918, p. 118.

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beneditino, sendo eleito abade geral da Congregação no 7.º Capítulo Geral de Tibães, em 1590. Quando foi a presentado por Filipe II para Bispo do Porto, era prior do mosteiro beneditino de Lisboa. Entre as obras empreendidas por ele na Sé sobressai a construção da nova capela‑mor, entre 1606 e 1610. Os oficiais da câmara protestariam pois, segundo eles, o prelado não podia efetuar a obra, já que a capela‑mor, como todas as outras das Sés portuguesas, era proprie‑ dade real, mas sem encontrarem eco. Ela foi a última grande realização de um século XVI que, propositadamente, se alargou até ao início do seguinte, pois fecha exemplarmente um ciclo iniciado por D. Diogo de Sousa, em 1499, com a trasladação da relíquia de São Pantaleão de Miragaia para a Sé.

A capela‑mor de Gonçalo de Morais é o resultado direto da definição, ali‑ nhada com os postulados tridentinos, da nova política religiosa e cultural do país na época de D. João III. A sua inspiração estará na capela‑mor de Santa Maria de Belém em Lisboa (1571‑1572), ordenada pela viúva de D. João III, D. Catarina de Áustria. Ela, por sua vez, teria sido influenciada por Miguel de Arruda (c. 1500‑1563), arquiteto militar a que se atribuem projetos para as três sés joaninas de Miranda do Douro (1552) Leiria (1551?) e Portalegre (1556), em que surgem pela primeira vez as capelas‑mores profundas e apaineladas. O projetista da capela dos Jerónimos, Jerónimo de Ruão, foi discípulo de Arruda, o que justificaria essa ascendência. Contudo, a capela‑mor de Belém inspira‑se, no seu exterior, em desenhos do italiano Francesco di Giorgio e a sobreposição de ordens interior, se é difundida na tratadística de Serlio, poderá ter outra ori‑ gem. Esta poderá estar relacionada com o portuense Gonçalo Baião, que esteve em Roma, trabalhou para D. João III e, possivelmente, o seu irmão, o cardeal D. Afonso e, executaria para o primeiro uma maqueta do Coliseu romano.

O padre Rebelo da Costa afirma, referindo‑se à capela‑mor da Sé do Porto (1606‑1610): “Um discípulo de Miguel Ângelo, chamado Valentim, foi o autor desta admiravel Fabrica”3. A origem dessa atribuição deve estar na Espanha

Sagrada, de Frei Henrique Florez, em que se afirma sobre o bispo Morais e a sua capela‑mor: “De Italia trajo a Valentim, discipulo de Michael Angelo, que labro el altar mayor por un deseño de su mesmo maestro”4. O “discípulo” de Miguel Ângelo, portanto, seria apenas responsável pela execução do retábulo‑mor, não da arquitetura. Contudo, o que se sabe sobre esse retábulo não aponta para o nome de Valentim. O artista que o pintou foi Simão Rodrigues (c.1569‑1629); um dos seus painéis, o “Cristo Ressuscitado”, encontra‑se atualmente na capela de São Vicente, enquanto a execução do retábulo deve ter estado a cargo de

3 Agostinho Rebelo da Costa – Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Pôrto. Pôrto: Na Officina

de Antonio Alvarez Ribeiro, 1789, p. 58.

4 Frei Henrique Florez – España Sagrada. Theatro (…) criticas. Tomo XXI. Madrid: Antonio Marin, 1766,

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Salvador Mendes ou, como sugere Pinho Brandão, do imaginário António Coe‑ lho5. A ornamentação da capela‑mor original que, segundo o padre Novais, tinha “marmores, iaspes Porfidos y otras piedras de Diferentes Colores”6 foi alterada pela intervenção levada a cabo durante a Sede Vacante setecentista: rasgaram‑se grandes frestas, abriram‑se portas, colocaram‑se as pilastras nas paredes laterais e novos mármores. Esse tipo de ornamentação tinha poucos pontos de contacto com os modelos flamenguistas então vigentes na arquitetura do Porto, de que o mestre pedreiro Valentim de Carvalho (act. 1610‑1642), a quem usualmente se associa a atribuição de Rebelo da Costa, foi praticante. Porém, se Valentim de Carvalho surge documentado no Porto precisamente no ano de 1610, é em relação a uma obra menor, a pavimentação da Misericórdia, sendo pouco pro‑ vável que, após um trabalho com a importância da capela‑mor, se dedicasse à colocação de um lajeamento.

Existe, contudo, um outro mestre que poderia ter feito a ponte entre o tipo de ornamentação da capela‑mor, mais erudito e próximo aos meios cortesãos de Lisboa, e o Norte: Jerónimo Luís (act. 1576‑1600), que foi, possivelmente, irmão ou parente próximo de Manuel Luís, o mais importante mestre pedreiro ativo no Noroeste na segunda metade do século XVI. Entre 1576 e 1583, Jerónimo Luís trabalhou no claustro do mosteiro da Serra do Pilar; seria o grande responsável pela execução, embora o projeto inicial, em que introduziu várias modifica‑ ções, datasse da década de trinta. Em 1580, foi contratado pelo conde da Feira D. Diogo Forjaz para construir a capela‑mor da igreja do convento Lóio do Espírito Santo em Santa Maria da Feira. Essa obra terá pontos de contacto sob o ponto de vista ornamental, não só com a capela‑mor dos Jerónimos, mas, igual‑ mente, com a posterior ousia da Sé do Porto. Na verdade, esse Jerónimo Luís, que deve também ter desempenhado um importante papel na remodelação do convento Lóio do Porto na década de oitenta, poderá ser o mesmo que se refere, em 1587, como aparelhador da obra da capela do Espírito Santo, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Lisboa. A capela é atribuída a Jerónimo de Ruão e estaria concluída antes de 1590; com efeito, no Verão de 1589 Jerónimo Luís está de novo no Porto, dirigindo a reparação das escadas da muralha nos Guin‑ dais e de uma estância do muro entre Santa Clara e Cimo de Vila, indicando‑se ainda que tinha um filho, seu obreiro. Ainda no Porto, em 1595 foi processado pela Câmara por ter abandonado a obra da calçada do Caminho Novo, entre o Postigo da Esperança e a Porta Nobre.

A última obra documentalmente relacionada com Jerónimo Luís é a do mosteiro de Pombeiro, de que em 1600 é mestre. Nesse ano, visitou a obra da

5 Domingos de Pinho Brandão – Obra de talha dourada, ensamblagem e pintura na cidade e na diocese

do Porto. Documentação. Diocese do Porto. Subsídios para o seu estudo. Porto: [s.n.], 1984, vol. I, p. 203.

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Misericórdia de Guimarães, acompanhando Manuel Luís, então mestre de obras do arcebispado de Braga; Pombeiro era um mosteiro beneditino e, por isso, Gonçalo de Morais poderá tê‑lo conhecido aí. Quando, em 1618, foi reatada por Francisco de Carvalho a obra de igreja do Espírito Santo em Vila da Feira, interrompida desde 1595, a capela‑mor estava já concluída. Em 1625, a igreja seria prosseguida por Valentim de Carvalho; poderia ter‑se dado o caso que este tivesse adotado a capela‑mor de Jerónimo Luís à que tinha executado na Sé do Porto. É essa a opinião de Carlos Ruão7; como dissemos, porém, tudo indica que Valentim de Carvalho não foi o projetista da capela‑mor da Sé, inclusive porque o corpo da igreja do Espírito Santo não apresenta o mesmo tipo de ornamen‑ tação da sua capela‑mor, estando muito mais próximo da tradição portuense.

Restam, portanto, sérias dúvidas quanto à autoria da capela‑mor da Sé, que Frei Gonçalo afirmava ter sido da responsabilidade dos melhores mestres do reino. O facto de ter sido alterada durante a sede vacante setecentista não contribui para um melhor esclarecimento da questão, já que, do original, apenas terá restado inalterada a abóbada de caixotões e a zona superior do arco cruzeiro, com o entablamento, o nicho central e as armas do bispo encomendador. Será, contudo, sempre oportuno reiterar as suas semelhanças com as capelas‑mores de Vila da Feira e de Belém, em que Jerónimo Luís poderá ter igualmente trabalhado com Jerónimo de Ruão, e não apenas no ambiente ornamental: como em Belém, os seus elementos exteriores de articulação são mais um artifício do desenho do que uma clara afirmação estrutural. Essa aparente facilidade oculta, todavia, o enorme esforço de sustentação da cobertura por muros maciços que, simultaneamente, calam a riqueza dos materiais da decoração interior. É, pois, com naturalidade que a morfologia exterior e abstrata da torre medieval se transforma interior‑ mente no tesouro da riqueza ornamental e, também, do renovado ritual litúrgico pós‑tridentino. Fechando um ciclo, a relíquia de S. Pantaleão, definitivamente entronizado como padroeiro da cidade, terá nela um destacado lugar de honra.

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Luís Alexandre Rodrigues

Na materialização da relação sensitiva dos fiéis com as imagens sagradas valorizamos os retábulos maiores das sés de Portalegre e de Miranda do Douro por terem concedido à figuração em relevo um novo peso. Muito relevantes são o retábulo-mor da Sé do Porto e o cadeiral montados (c. 1610) após a conclusão da obra da capela-mor. Com o estilo nacional as imagens sofreram a concorrência dos programas decorativos. Semelhante desígnio vê-se na série de painéis em relevo do cadeiral do coro alto de S. Bento da Vitória. Na nave de Santa- Clara-a-Nova ou na cabeceira do santuário de Bouças, deu-se expressão ao trabalho em relevo, também representado no retábulo de Nossa Senhora da Purificação, na igreja de S. Lourenço, e na máquina dos Mártires de Marrocos, em S. Francisco. Sublinhe-se o prolongamento deste processo narrativo nos topos do transepto na igreja de S. Bento da Vitória.

ALTARPIECES AND IMAGINARIES IN THE DIOCESES OF PORTO:

STYLISTIC EVOLUTION AND PERSISTENCY OF TASTE FOR THE EMBOSSING FRAME ALONG THE MODERN PERIOD

In the materialization of the sensitive relationship between believers and sacred images we prize the altarpieces from the cathedrals of Portalegre and Miranda do Douro since they gave a new weight to the embossing figuration. Highly relevant are the main altarpiece and the chairs from the cathedral of Porto mounted (c.1610) after the conclusion of the construction of the main chapel. With the national style the images beard the concurrence of the decorative programs. A similar goal is seen in the series of embossing panels in the choir chairs of S. Bento da Vitória. In the nave of Santa-Clara-a-Nova or in the head of the Bouças sanctuary, expression was given to the embossment work, also represented in the altarpiece of Nossa Senhora da Purificação, in the church of S. Lourenço and in the Mártires de Marrocos machine, in S. Francisco. We should underline the extension of this narrative process in the top of the transept of the S. Bento da Vitória church.

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DO GOSTO PELO QUADRO EM RELEVO