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A Frei Baltasar Limpo sucederia D. Rodrigo Pinheiro (1552‑1572), então já com 70 anos de idade. Natural de Barcelos, o papa Paulo III confirmou‑o como Bispo de Angra, capital da ilha Terceira nos Açores, por bula de 24 de setembro de 1540. Não chegou, todavia, a abandonar Lisboa e a ocupar a sede episcopal, porque o rei o nomeou entretanto Governador da Casa do Cível e ministro da Mesa da Consciência e Ordens. A sua ação pastoral, de administração eclesiás‑ tica ou de disciplina do clero diocesano foi quase nula, mantendo um modo de vida de aristocrata e centrando‑se sobretudo no combate à heresia: foi ele o principal apoiante da instalação, em 1560, dos Jesuítas na cidade e esteve entre os prelados convocados, em 1566, por D. Frei Bartolomeu dos Mártires para o Sínodo Provincial de Braga. Possuía formação clássica e os seus contemporâneos salientam o seu gosto pelas letras, mas manteve sempre uma distância entre a sua atividade literária e a prática episcopal.

Uma das primeiras obras ordenadas por D. Rodrigo Pinheiro será a subs‑ tituição da cúpula levantada no cruzeiro da Sé pelo seu antecessor. Entre 1556 e 1557, ela será derrubada e substituída pela abóbada de nervuras atual, cons‑ truída por António Dias. Esse novo “coruchéu” é, com algumas alterações, o mesmo que ainda hoje cobre o cruzeiro da Sé. Dele desapareceram as armas douradas e pintadas de D. Rodrigo Pinheiro e as janelas termais resultaram das obras levadas a cabo na sede vacante do século XVIII; os originais, em número de quatro, eram de menor dimensão e tinham vidraças, propositadamente enco‑ mendadas em Lisboa. As vidraças foram progressivamente, ao longo do século, substituindo as mais antigas adufas, que tradicionalmente eram utilizadas nas exíguas aberturas da Sé. Ainda na abóboda do coruchéu abria‑se a “casa do lampadário”, onde se guardavam o cabo e a maquinaria que permitia subir e descer o grande lampadário. No exterior, o remate do coruchéu era marcado pelo “galo da grimpa”, que se firmava num vaso de azulejo e fora executado pelo ferreiro João Malhar. A construção do novo coruchéu em pedra pode ter tido consequências, já que, em 1562, o provedor da Fábrica da Sé, o cónego Simão Vaz alerta para que a capela‑mor estava em risco de ruina: “capella do altar moor que estava para cair”.

D. Rodrigo implementaria outras obras na sua Sé. Se, em 1544, João Lopes‑o‑ ‑Velho tinha feito uns balaústres que ajudavam à reserva do espaço sobrelevado da capela‑mor e alguns anos depois, em 1549, foi aí colocado um gradeamento, traçado por João Sobrinho. Em1558 D. Rodrigo mandou fazer um tabernáculo de madeira para ela. A sua dimensão devia ser razoável, dando trabalho a três

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oficiais e, no seguimento de uma tendência que vinha do episcopado anterior, os dois arcos de entrada do deambulatório seriam fechados por grades de madeira em 1577. Em 1574, o púlpito que estivera no terreiro da pregação frente à Sé, deslocou‑se para o seu interior, tendo sido chumbado numa das colunas da nave. Era em madeira, assente numa base ou “tabuleiro” de pedra, sendo o conjunto rematado por um “sombreiro” pintado e dourado.

Contudo, a mais importante obra empreendida por D. Rodrigo foi a conclu‑ são da capela de Nossa Senhora de Agosto, ou dos Alfaiates. Como se referiu, a capela situou‑se no adro poente da Sé, frente à porta principal, no gaveto da rua das Tendas que fazia face ao Auditório Eclesiástico. Magalhães Basto refere que a imagem de Nossa Senhora, ou Santa Maria de Agosto, se venerava em 1513 no sobrado do celeiro do Cabido, e que este se situava frente ao pórtico da Sé. É, porém, possível que o celeiro capitular se não se situasse já, à época, nesse local, mas sim no claustro. De qualquer forma, em 1541, sendo bispo Baltasar Limpo, a “ermida de Sancta Maria d’Agosto” já se encontrava no gaveto entre as ruas das Tendas e da Porta Principal da Sé, pelo que a sua construção se deve ter incluído no programa de renovação da envolvente da Sé empreendido pelo bispo carmelita. Ela insere‑se na preocupação reformista de recuperar e reorien‑ tar práticas religiosas tradicionais e, simultaneamente, insistir na divulgação do culto mariano. Seria Baltasar Limpo, aliás, a solenizar a festa da Assunção de Nossa Senhora, ou Nossa Senhora de Agosto. Decorridos alguns anos, em 1554, a capela teria sido cedida à confraria dos Alfaiates, estando quase concluída no ano seguinte. Então, era já bispo do Porto D. Rodrigo Pinheiro.

A superfície da capela inicial expandiu‑se para norte, na direção da torre da Câmara e para poente, ao longo da rua das Tendas. Em 1558, o cónego João Álvares Bainharia refere no seu testamento que a capela não estava ainda con‑ cluída; na verdade, só em 1565 seria contratada a sua conclusão, por encomenda de D. Rodrigo, com a construção da abóbada de cobertura, da exígua capela‑mor e do pórtico, pelo mestre de pedraria Manuel Luís, com a aprovação de João de Ruão, que esteve presente na assinatura do documento.

A relação da capela com o plano urbano era bem diversa da que fora pra‑ ticada pelas igrejas medievais. A sua implantação deixou de estar embebida no sagrado para ser condicionada pelo lugar; por essa razão, não obedecia já à orientação canónica nascente‑poente. O resultado será o que podemos chamar de igreja‑casa que, nas suas proporções e na ausência de frontões é semelhante a construções manuelinas do início do século, como, por exemplo, a capela, ou ermida, de São Jerónimo em Belém (1514). Na capela de Nossa Senhora de Agosto, porém, desapareceram os elementos expressivos próprios da morfologia medieval, como os contrafortes de ângulo, ou o escalonamento volumétrico que em São Jerónimo denunciava a existência de uma capela‑mor: a capela dos Alfaiates era uma abstração geométrica. O facto de ser um monovolume, aliado

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aos vagos elementos estruturantes existentes nas duas fachadas, contribuiria para uma aparente rarefação semântica, apenas atenuada pelos dois pórticos, abertos respetivamente para o adro e para a rua das Tendas, denunciados em plantas antigas do edifício, embora no contrato com Manuel Luís só se faça referência a um.

Todo o quarteirão das Tendas, frente à Sé, foi demolido na década de trinta do século XX e a capela foi apeada em 1936, vindo a ser reconstruída em 1953 na sua localização atual, à entrada da rua do Sol, alterando profundamente a sua forma de apreensão visual. A forma como a superfície objetiva das fachadas da capela de Nossa Senhora de Agosto era apreendida ainda se relacionava com o carácter táctil do adro medieval e, de um modo geral, da cidade de contacto exis‑ tente frente à Sé. Entre esta e a capela existiu uma fluidez espacial marcada pelo ritual; assim, todos os sábados, os cónegos do Cabido deveriam dirigir‑se, em procissão e cantando, da Sé a Nossa Senhora de Agosto. A construção da capela poderá, desse modo, associar‑se igualmente à contemporânea reforma do espaço interior da Sé e a uma nova liturgia disciplinadora das devoções. Uma vez mais, o nome de Baltasar Limpo se pode referir relativamente a essas transformações já que, em 1541 ele criaria a dignidade de arcediago, com a função precisa de organizar o culto catedralício.

A morfologia da capela, contudo, dificilmente se enquadraria na época do Carmelita. A utilização do branco acentua a clareza geométrica da parede/pan‑ talha em que os elementos estruturantes, em granito aparente mais escuro: as pilastras dos cunhais, rematadas por tríglifos curvos com gutae, uma “invenção” de Serlio, a cornija e o embasamento são minimalistas, visto que a sua função é emoldurar uma organização visual e não expressar uma estrutura construtiva. Em granito é também o único pórtico sobrevivente; nele, paradoxalmente, surge o sistema trilítico estruturante, integrando as colunas coríntias e a arquitrave sobre ele que está ausente da fachada.

A aparentemente fraca capacidade semântica da capela da Senhora de Agosto associa‑se a uma tradição pré‑icónica da arquitetura portuguesa, definidora de relações estruturais de articulação que se destinavam a permanecer ocultas. A ela serão apostos signos – os pórticos – de uma cultura posterior. Não se trata, pois, de uma atitude ignorante relativamente aos modelos clássicos; como enco‑ menda episcopal de um prelado tocado pela reforma tridentina, deve‑se inserir no ambiente ideológico que se vivia no país após os meados do século, mais particularmente em correntes de pensamento, como o ascetismo, resultantes de mutações do erasmismo humanista e que procuraram alternativas formais a essas fontes. D. Rodrigo Pinheiro seria um caso exemplar dessa mutação e o experimentalismo é patente no diálogo travado, no interior da capela, entre dois sistemas aparentemente antagónicos: o “ao moderno” e o “ao romano”. Ao pri‑ meiro pode‑se associar a abóbada de combados, com cinco chaves e terceletes,

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extremamente elevada e muito abatida, da nave; a tradicional estrutura gótica, porém, passou por um processo de estilização, que lhe deu nervuras de secção quadrangular com arestas vivas e ornamentação, nos fechos, constituída por flo‑ rões rollwerk, elementos que sugerem tabulae ansate e capitéis jónicos estriados; mais do que uma estrutura arquitetónica, sugere uma pintura ilusionista. Por essas razões, não deve ser conotada com uma retrógrada prática anterior, mas com a pesquisa, em alternativa ao modo renascentista italiano, conducente a uma linguagem espacial e ornamental renovada; o mesmo tema, mas a uma outra escala, seria praticado nas três sés joaninas – Miranda, Portalegre e Lei‑ ria – que se construíram pela mesma época. Sendo assim, pode‑se considerar a minúscula abóbada de caixotões da capela‑mor, que abre por um arco sus‑ tentado pelos capitéis jónicos de pilastras rebaixadas ao centro, modelo muito divulgado nas microarquitecturas coimbrãs de João de Ruão, como um tema mais tradicional. A abóboda, contudo, traz alguma novidade em relação a João de Ruão: as consolas que a suportam, de diferentes dimensões e com elementos sobrepostos – mísulas, fragmentos de entablamento e capitéis jónicos – parecem inspirar‑se nas que Cremona empregou no hexágono da capela‑mor da Foz. Por sua vez, a utilização dos enrolamentos flamengos na abóbada e no remate do arco cruzeiro remete para as gravuras importadas de Antuérpia popularizadas a partir de Coimbra e da obra de João de Ruão.

A sensibilidade aos materiais, a sua capacidade de construir atmosferas, mais do que a prática vitruviana, marcam, desse modo, o interior da capela. No exte‑ rior, o controle tonal repete‑se, bem como a disciplina do desenho, esta patente no nicho que abriga a imagem da padroeira e mostra, na sua meia laranja, deco‑ ração de pequenos ovados e diamantes, cuja filiação nas séries de Vredeman de Vries é evidente. Eles surgem, por exemplo, no Ersten Boech publicado em 1565, mas também nos livros de perspetiva e nos Small Wells; todos poderiam ser encontrados na coleção da livraria de Santa Cruz de Coimbra. Outros elementos do pórtico como as consolas jónicas de remate às pilastrinhas que ladeiam o nicho, inspiraram‑se igualmente nas gravuras do Ersten ou do Anderes Buch de 1565, nas das Variae Architectura ou das Intarsia Prints. Para o remate do nicho convergem ainda duas molduras curvilíneas, utilizadas como aletas laterais e concluídas em enrolamentos, que repetem o desenho de segmentos de nervuras da abóbada interior.