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3. A ESTREITA COOPERAÇÃO DENTRO DA REDE EUROPEIA DE

3.3 A REC, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades

3.3.2 Direito à Protecção à Vida e à Propriedade

O procedimento administrativo de combate as violações à concorrência é considerado de natureza criminal em decorrência de seu objectivo final, em regra, de impor sanção.290 Aos procedimentos criminais é inerente o princípio da presunção de inocência, e em matéria de concorrência, o Tribunal de Justiça ratificou esta lógica no caso Hüls AG v. Commission:291

Importa igualmente admitir que, atenta a natureza das infracções em causa, bem como a natureza e grau de severidade das sanções aplicáveis, o princípio da presunção de inocência aplica-se aos processos atinentes a violações das regras de concorrência aplicáveis às empresas susceptíveis de conduzir à aplicação de multas ou de sanções pecuniárias compulsórias (v., neste sentido, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, acórdãos Öztürk de 21 de Fevereiro de 1984, Série A, n.° 73, e Lutz de 25 de Agosto de 1987, Série A, n.° 123-A).

Os acusados de práticas anti-concorrenciais, portanto, são considerados inocentes até que a Comissão ou uma autoridade da concorrência de um Estado-Membro prove o contrário.292 Até a decisão de imposição de sanção, as companhias e pessoas singulares devem ser consideradas entes em pleno gozo de direitos, dentre os quais o direito à protecção à vida e à propriedade nos termos do artigo 8.° e do artigo 1.° do Protocolo n.° 1 da Convenção dos Direitos do Homem:

Artigo 8° – Direito ao respeito pela vida privada e familiar. 1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem - estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.

Artigo 1° – Protecção da propriedade. Qualquer pessoa singular ou colectiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por

290 KORAH, Valentine, cit. 2, p. 270.

291 Hüls AG v. Commission of the European Communities, Tribunal de Justiça, de 8 de Julho de 1999, processo

C-199/92 P, Colectânea da Jurisprudência 1999 página I-04287.

292 Aplica-se o mandamento disposto no n.° 2 do artigo 6.° da Convenção dos Direitos do Homem ao

processamento administrativo sobre infração à concorrência: “Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.

utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional. As condições precedentes entendem - se sem prejuízo do direito que os Estados possuem de pôr em vigor as leis que julguem necessárias para a regulamentação do uso dos bens, de acordo com o interesse geral, ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras contribuições ou de multas.

A relação da REC com o respeito aos direitos de protecção à vida e à propriedade consiste na técnica de colecta conjunta de provas entre os Estados-Membros que ela instaurou. A Rede é o meio de junção dos recursos dos Membros para serem aplicados em caso de atentado à concorrência em todos os pontos do Mercado Comum, estando o atentado presente em apenas um ou em vários pontos. Essa dinâmica configura, ao mesmo tempo, importante impulso na capacidade probatória das autoridades administrativas e ameaça à segurança jurídica dos acusados.

Desse modo, a utilização de dados recolhidos pelas autoridades da concorrência, isolada ou em cooperação com o demais Membros da Rede,293 sofre restrições para atender às determinações dos dispositivos da Convenção já expostos e os seus equivalentes na Carta dos Direitos Fundamentais:

Artigo 7.° Respeito pela vida privada e familiar. Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações.

Artigo 17.° Direito de propriedade. 1. Todas as pessoas têm o direito de fruir da propriedade dos seus bens legalmente adquiridos, de os utilizar, de dispor deles e de os transmitir em vida ou por morte. Ninguém pode ser privado da sua propriedade, excepto por razões de utilidade pública, nos casos e condições previstos por lei e mediante justa indemnização pela respectiva perda, em tempo útil. A utilização dos bens pode ser regulamentada por lei na medida do necessário ao interesse geral. 2. É protegida a propriedade intelectual.

Em um procedimento como o administrativo da concorrência que visa penalizar infractores, há que ser respeitada a presunção de inocência dos investigados, primordialmente, o direito pleno à vida e à propriedade inerentes a todos indivíduos ainda não condenados por sentença com trânsito em julgado – sejam eles pessoas jurídicas, naturais ou naturais integrantes de jurídicas (que carregam a responsabilidade sobre a conduta de uma companhia). O termo “vida privada” abrange tanto a esfera pessoal quanto a profissional, segundo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Para o Tribunal, o termo não permite definição exaustiva e inclui, definitivamente, as actividades de natureza profissional e de natureza comercial.294 As actividades profissionais (profissionais liberais) e a

293 Lembrando que os indícios recolhidos autonomamente pelas autoridades também são disponibilizados para

uso dos demais membros da Rede; ver tópico 3.1.2, acima.

294 Ver acórdãos do referido tribunal: P.G. and J.H. v. The United Kingdom, of 24 September 2001, application

447877/98, paragraph 56; e Harold v. United Kingdom, of 25 June 1997, published in reports 1997-III, paragraph 44. Importante destacar que o Tribunal Europeu dos Direitos dos Homens nem sempre se posicionou no sentido do reconhecimento da privacidade das actividades profissionais e comerciais estritamente ligadas às

actividades comerciais que desempenham na vida pessoal de um investigado uma função de difícil separação entre as esfera pessoal e a profissional, são amparadas pelo Tribunal dos Direitos dos Homens como invioláveis, naturalmente, também em matéria de concorrência. Não cabe às autoridades da concorrência dos Estados-Membros violar a vida íntima e a propriedade em busca de indícios comprobatórios de violações à concorrência, incluídas as actividades e instalações de natureza profissional ou empresarial intimamente ligadas à vida privada, em consonância com o artigo 8.° da Convenção que protege o indivíduo contra a eventuais interferências arbitrárias das autoridades públicas.295