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No Brasil, após a proclamação da independência, em virtude do

Decreto de 20 de outubro de 1823, da Assembleia Geral Constituinte, a legislação

portuguesa manteve vigência quanto ao que não fosse contrário à soberania

nacional. O Processo Civil passou por pequena reforma, em 1832, decorrente da

“Disposição provisória acerca da administração da Justiça civil” e foi posteriormente

alterado pela Lei de 3 de dezembro de 1841 e pelo Decreto n.

0

143, de 15 de março

de 1842.

Após a promulgação do Código Comercial de 1850 entrou em vigor

o Regulamento nº 737, que tratou do regramento atinente ao processo em matéria

comercial. As causas não comerciais, contudo, continuaram a ser reguladas pelas

ordenações e outras normas, posteriormente compiladas na “Consolidação das leis

do Processo Civil”, aprovada pela Resolução Imperial de 28 de dezembro de 1876.

Com a proclamação da República, o governo provisório determinou,

por intermédio do Decreto 763/1890, que às causas cíveis também fosse aplicado o

Regulamento 737, mantendo-se a vigência das ordenações a processos especiais e

de jurisdição voluntária. A partir da Constituição de 1891 foi estabelecida a forma

federativa, autorizando-se cada estado a legislar em matéria processual e a

organizar sua Justiça.

A Constituição de 1934 reestabeleceu o sistema processual

unificado, centralizando na União a competência para elaboração de leis

131 O Código previa, em seu art. 264: “2) As partes têm, porém, o dever de, conscientemente, não

formular pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade nem requerer diligências meramente dilatórias .”

processuais. Em 1939 foi promulgado o Código de Processo Civil, revogado pelo

diploma de 1973.

No que toca às regras de moralidade processual, antes mesmo do

Código de Processo Civil de 1939 já existiam normas proibitivas do abuso e da

malícia

132

.

Contudo, a forte influência da doutrina privatística do processo

impedia maiores intervenções em relação à atividade das partes e quanto à

aplicação de sanções à míngua de expressa previsão

133

. Aliás, mais uma vez é

identificável a grande influência da declaração de direitos do homem e do cidadão,

que já permeava o ordenamento brasileiro desde a Constituição de 1924

134

.

Ao tempo em que o juramento de calúnia entrava em desuso,

mantinha-se a preocupação de se evitar a má-fé dos litigantes. O Código de

Processo Civil de 1939 abrigou expressa previsão do dever de veracidade. Em seu

art. 3º tratou do abuso do direito de demandar

135

e, no art. 63, previa a imposição de

132

Disposição Provisória acerca da Administração da Justiça Civil, de 29 de novembro de 1832, e Regulamento nº 737 ( arts. 87, 94, 337 ) e Decreto 3.084, de 1898 ( arts. 127, 187, § 2º, 281, 435, 524, 764 e 765 ).

133 Paula Baptista, discorrendo sobre o juramento de calúnia, assevera que “o juramento de calumnia,

que a princípio foi decretado para muitos actos, e depois passou para o Cód. de Justiniano in initio litis ( L, 1, C. de jure, propt. Calumn. Nov. 49.c.4 e ult. ) era considerado como forte garantia de boa-fé e sincera convicção dos litigantes(...)Mas hoje(...)o juramento de calumnia se acha abolido (...)”. PAULA BAPTISTA, 1ª edição do Compêndio de Theoria e Practica do Processo Civil , Recife, 1855.

134 Calha consignar que a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão dispôs que a “liberdade

consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei” (art. 4º); a “Lei não proíbe senão as acções prejudiciais à sociedade. Tudo aquilo que não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene” (art. 5º); a “Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada” (art. 8º).

135 “Art. 3º - Responderá por perdas e danos a parte que intentar demanda por espírito de emulação,

mero capricho, ou erro grosseiro.

Parágrafo único - O abuso de direito verificar-se-á, por igual, no exercício dos meios de defesa, quando o réu opuser, maliciosamente, resistência injustificada ao andamento do processo”.

sanção pecuniária à parte vencida que houvesse alterado intencionalmente a

verdade ou procedido com dolo, fraude, violência ou simulação

136

.

Com o advento da Lei 4.632/65, tornou-se obrigatória a condenação

do vencido ao pagamento dos honorários advocatícios do vencedor, erigindo a mera

sucumbência a pressuposto único para condenação em honorários.

O Código de Processo Civil de 1973 explicitou, de forma coesa,

porém vulnerável

137

, quem poderia ser considerado litigante de má-fé e as punições

que lhe seriam correspondentes (arts. 16, 17 e 18), seguindo os modelos de

Portugal (art. 356, nº 2) e Colômbia (art. 74).

136 “Art. 63. Sem prejuízo do disposto no art. 3º, a parte vencida que tiver alterado, intencionalmente, a

verdade, ou se houver conduzido de modo temerário no curso da lide, provocando incidentes manifestamente infundados, será condenada a reembolsar à vencedora as custas do processo e os honorários do advogado.

§ 1º - Quando , não obstante vencedora, a parte se tiver conduzido de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo, o juiz deverá condená-la a pagar à parte contrária as despesas a que houver dado causa.

§ 2º - Quando a parte, vencedora ou vencida, tiver procedido com dolo, fraude, violência ou simulação, será condenada a pagar o décuplo das custas.

§ 3º - Se a temeridade ou malícia for imputável ao procurador, o juiz levará o caso ao conhecimento do Conselho local da Ordem dos Advogados do Brasil, sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior”.

137

Alcides de Mendonça Lima critica a vulnerabilidade do sistema, pela necessidade de apreciação subjetiva, consignando que “basta atentar para a redação dos vários incisos do art. 17, para compreender-se a dificuldade de enquadrar-se qualquer dos litigantes - autor, réu e interveniente - na situação de estar agindo com má-fé. A “falta de fundamento” tem de ser desconhecida “razoavelmente”; a alteração dos fatos tem de ser “intencional”, e não acidental ou por ignorância; a omissão dos fatos essenciais também tem de ser “intencional” e, não, atribuída a mero erro ou lapso na exposição; ou o uso ilegal do processo. Essa última hipótese é de mais fácil caracterização, como, v.g., segundo o exemplo corrente, a propositura da ação de anulação de casamento, conluiados os cônjuges com as testemunhas para a prova dos fatos (embora, com a lei de divórcio, dita ação tenha perdido o interesse, mas, antes, era necessária, para possibilitar novo casamento, a ser atingido em sua validade apenas até dois anos do ato). Os demais casos, praticamente, não poderão ser provados, pois dependerão de fatores quanto às partes (grau de cultura; formação; interesse, etc. ) e quanto aos juízes que atuem, nos vários graus ( mentalidade; temperamento liberal ou rigoroso; orientação filosófica, etc. ).Tudo está, portanto, na apreciação subjetiva do comportamento das partes, analisado em cada processo, e no modo, também, subjetivo, como o juiz aferirá os fatos ”. LIMA, Alcides. Abuso do direito de demandar. Revista de Processo, n. 19, Ed. Revista dos Tribunais, jul/set 1980, p.61. Celso Agrícola Barbi, por outro lado defende que a análise do elemento subjetivo é necessária para a condenação por litigância de má- fé, fazendo-se necessária a ocorrência, ao menos, de culpa grave, tal qual ocorre no Direito português, resguardando-se a presunção de inocência e oportunizando-se que a parte se defenda. BARBI, Celso Agrícola. Responsabilidade do litigante temerário pelo dano processual. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, dezembro de 1977, p. 358.

Com a promulgação do novo Código de Processo Civil, em 2015,

houve importantes modificações no regime da litigância de má-fé, que serão

abordadas em capítulos específicos deste trabalho.

3.2 A boa-fé processual

Não se olvida de que a pacificação é um dos objetivos da jurisdição

e de que a boa-fé entre os litigantes deve nortear todo o sistema processual

138

.

Gualberto Lucas Sosa, ao abordar o abuso dos direitos processuais,

o conceitua como “la conducta que importa una desviación del derecho en cuanto a

su función, contrariando los fines de la norma o las reglas de la moral, la buena fe o

las buenas costumbres

139

”.

Duras críticas vêm sendo registradas ao excesso de garantismo que

caracteriza os ordenamentos europeus, atribuído à tradição anglo saxônica de

jurisdicionalização e à culpa alemã decorrente do período nazista, ressaltando-se

que se busca a proteção das pessoas contra as medidas tomadas pelo Estado,

inclusive em sua função judiciária, concedendo-se amplos direitos aos demandados

em contraponto a uma incredulidade quanto à posição do autor da demanda,

antagonismo que estimula a “astúcia das partes e a timidez do Tribunal”

140

.

Nos moldes do que foi consignado nas linhas preliminares deste

estudo, uma maior palidez dos tribunais parece ter origem no ideal libertário da

Revolução Francesa, que colocou todo o aparato estatal – inclusive o responsável

pela função judicante

– em posição de desconfiança, externando-se, em certa

medida, uma presunção de que a Justiça tenderia ao cometimento de abusos.

De outro giro, em contraponto às críticas ao garantismo, afirma-se

que é preferível elevar ao máximo as garantias constitucionais, ainda que resultem

138 Na lição de Osvaldo Alfredo Gozaíni: “Los sistemas auxiliares de la jurisdicción, o

complementarios (también llamados equivalentes), trabajan sobre una fórmula diferente a la que lleva a cabo el litigio. Mientras en éste se busca la victoria, en los medios alternativos la idea es pacificar. Los errores del sistema tradicional afincan en la persecución absoluta de la razón a toda costa, y en la utilización de cuanta herramienta se encuentre para alcanzar ese fim, que no es otro que derrotar al adversario. En un modelo que trabaja sobre la lucha, es evidente la necesidad de reglas, y, esencialmente, la consagración de un principio incanjeable para aplicar el sistema: la buena fe entre litigantes”. GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. Temeridad y malicia en el proceso. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2010, p.15.

139

SOSA, Guarlberto Lucas. Abuso de derechos procesales in MOREIRA, José Carlos Barbosa. Abuso dos direitos processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 50.

140

CORDEIRO, António Menezes. Litigância de má-fé, abuso do direito de acção e culpa in agendo. Coimbra: Almedina, 2006.