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Num avanço do Direito Contemporâneo, que busca a coincidência de tratamento das pessoas com deficiências a nível nacional e internacional, em Convenção das Nações Unidas de 2018 surgiu o regime do maior acompanhado, com o intuito de substituir os anteriores institutos da “interdição” e da “inabilitação”. Assim, com a Lei nº 49/2018 de 14 de Agosto, foram feitas várias alterações ao CC, CPC, CPP e C.R.Predial para uniformização com o novo diploma internacional.

Este novo avanço legislativo não poderá passar despercebido no estudo que aqui nos propomos, particularmente porque denota a teleologia que o novo Direito Contemporâneo tem por base, sobretudo no que toca ao tratamento das pessoas deficientes. Desde logo, não poderemos deixar de notar que as crianças que poderão litigar pela procedência de uma ação de “vida indevida” são crianças física ou psicologicamente incapacitadas, com particulares deficiências que, ao perfazer 18 anos, poderão mesmo precisar de ser tuteladas por esta nova figura do “acompanhamento”58. Como tal, as seguintes considerações serão relevantes para melhor se entender a posição do Demandante de uma ação de “vida indevida” ao longo do tempo, sendo que algumas ideologias da Lei serão relevantes para sustentar a necessidade de indemnização.

Primeiramente, a base desta alteração encontra-se logo na Proposta de Lei nº 110/XIII: “não pode haver dúvidas em considerar a pessoa com deficiência como

pessoa igual, sem prejuízo das necessidades especiais a que a lei deve dar resposta”.

Assim sendo, a preocupação do novo regime é mesmo acabar com qualquer estigma que os anteriores institutos traziam às pessoas com deficiências, uma vez que eram regimes rígidos e inflexíveis que não se adaptavam a cada pessoa singular.

Com estas novas conceções, há uma mudança de paradigma: o foco passa do “interesse do incapaz” para um maior foco para a autodeterminação e vontade desse. De facto, os deficientes deixam de ser vistos como “incapazes” para serem pessoas “capazes” mas que precisam de alguma tutela por outrem.

58 Com base no novo art.º 138º CC, o acompanhamento será aplicável a esses casos uma vez que a figura se aplica igualmente ao “maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência (…) de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos”.

As alterações da Lei começaram por acabar com o regime dualista das incapacidades - que se regiam por remissão para o instituto da menoridade - para passar para um modelo unitário, reconduzível unicamente ao acompanhamento de um maior, que é visto como uma pessoa capaz. Por isso, desde logo, a primeira iniciativa da Lei é aumentar a autonomia do maior, tentando limitar o menos possível a vontade e capacidade deste. Nesse sentido, visa-se também um maior controlo jurisdicional de qualquer constrangimento que haja para os atos do maior; e haverá ainda a necessidade de adaptar e flexibilizar casuisticamente as medidas a aplicar a cada pessoa, com base na deficiência e suas consequências na situação patrimonial e, sobretudo pessoal do maior (num foco óbvio da nova Lei na pessoalidade do acompanhamento).

Alguns destaques terão de ser feitos quanto ao regime desta figura inovadora no nosso país, demonstrando qual a tendência para que o Direito caminha no âmbito do tratamento das pessoas com deficiências. Poderá logo começar-se com a supletividade do art.º 140º: esse, para além de considerar que o objetivo do acompanhamento será o “bem-estar, a recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres [do maior]”, consagra que o acompanhamento só deverá ser decretado como ultima ratio, quando não baste a consagração dos deveres gerais de cooperação e assistência, no caso concreto. Assim sendo, evitar-se-á limitar a capacidade do maior sempre que a proteção de que ele necessita possa ser conseguida por uma medida menos intrusiva de cooperação e assistência, num claro respeito pela individualidade, vontade e autodeterminação do maior.

A vontade do maior, tal como a sua autodeterminação encontra-se logo presente também no artigo seguinte, em que se valoriza, para além da possibilidade de o próprio requerer a medida, a necessidade de autorização do mesmo para o pedido de acompanhamento.

Com base ainda nesses princípios, o art.º 143º estabelece que o acompanhante deverá ser escolhido primordialmente pelo próprio acompanhado, sendo que só subsidiariamente e de forma exemplificativa, o nº2 estabelece uma série de pessoas que poderão ser designadas para tal cargo59.

59 Claramente, os progenitores encontram-se nas pessoas exemplificadas no artigo sendo, em regra, os acompanhantes a decretar a uma criança que quer indemnização por “vida indevida”, quando ela complete 18 anos, se se vir efetivamente necessitada de acompanhamento.

Não se poderá esquecer, também, o art.º 145º, quanto ao conteúdo do acompanhamento: esse denota claramente a necessidade de manutenção da capacidade e individualidade do acompanhado, uma vez que o acompanhamento se deverá limitar ao necessário, sendo que, no nº2, exemplificativamente, enumeram-se algumas das funções que o tribunal poderá atribuir ao acompanhante, em função do caso concreto. A primeira função possível prevista é o exercício das responsabilidades parentais, o que levaria, mais uma vez, a que, a decretar-se essa medida, a pessoa deficiente que alega uma “vida indevida” voltasse a estar impedida de receber indemnização, caso se considerassem procedentes as objeções quanto à legitimidade de representação pelos progenitores nas wrongful life actions.

Pegando precisamente na questão do exercício das responsabilidades parentais para com o acompanhado – e supondo que o acompanhamento, nos casos de “vida indevida”, fosse decretado a favor dos pais – o regime do acompanhamento, da mesma forma que o art.º 1881º/1 CC, cria uma limitação para a atuação do acompanhante no que toca aos direitos pessoais do deficiente. Nesses atos, a atuação pelo acompanhado será livre. Mas, já ao contrário do art.º 1881º/1, o art.º 147º/2 apresenta uma série de direitos que, a título de exemplo, serão considerados pessoais. Nessa enumeração, o legislador não mencionou qualquer direito que impossibilitasse o acompanhante de pedir uma indemnização pelo deficiente por condição de “vida indevida”. Claro está que a questão é demasiado recente e problemática para já estar contida neste diplomas mas será certo que nunca faria sentido incluir esse direito na enumeração enquanto pessoal até porque, como se verá adiante, a questão é meramente patrimonial.

Também à semelhança do regime da menoridade, o novo regime encontra uma disposição no art.º 150º quanto aos possíveis conflitos de interesses entre o maior e o acompanhante: de facto, o acompanhante não deverá praticar atos conflituosos com os interesses do acompanhado, correndo o risco de se aplicarem as consequências do art.º 261º.

Das alterações verificadas, algumas ideias têm claramente de ficar assentes: há uma prevalência da vontade e da autodeterminação do maior, o que se traduz numa limitação mais reduzida e mais casuística dos seus deveres; para mais, há uma valorização maior da sua autonomia e da sua individualidade, preservando-se sempre a igualdade da pessoa e sobretudo ambicionando-se o seu bem-estar. Por isso mesmo, não

se poderá considerar que a “vontade do Direito” não seja indemnizar um deficiente, sobretudo uma criança, em condições iguais às de qualquer outra pessoa, por erro médico que o lesou quando: 1) os pais poderão ser indemnizados por esse mesmo facto (o que corresponderia precisamente a criar um tratamento discriminatório da criança) e 2) a indemnização aos pais não poderá ser argumento contra uma segunda indemnização, agora em nome do filho, quando esse, enquanto deficiente, deverá ser autonomizado, individualizado e até lhe deverão ser proporcionados os recursos necessários para que consiga ser o mais independente possível. Aliás, como se poderá alegar que o Direito quer limitar o acompanhamento mas depois tornar a criança ou o maior ainda mais dependente dos pais, ao só a esses providenciar uma indemnização por ato que lesou para a vida a própria criança ou o já acompanhado? Como defender uma ideia de autodeterminação e autonomização dos deficientes se não se lhes possibilita recursos (que seriam justamente seus) para um maior bem-estar e uma vida com dignidade? Mais, como não considerar essa decisão plenamente discriminatória e inconciliável com a ideia Base do Projeto de Lei que busca a igualdade das pessoas com deficiências?

Reflitamos, a longo prazo, sobre a situação da criança que nasce com a deficiência: se aceitarmos que as responsabilidades parentais não possibilitam o pedido de indemnização pela criança e que ela só a poderá pedir com a maioridade, eis que a criança se verá limitada no seu direito de acesso à justiça durante 18 anos; Passados esses 18 anos, a criança, pela deficiência que tem, tem de ser acompanhada com base no regime presentemente estudado. E aí volta a ser acompanhada pelos pais, num exercício muito semelhante, se não igual, ao das responsabilidades parentais. Ou seja, nem aí a criança poderia ser indemnizada, encontrando-se para sempre discriminada e limitada, sem acesso à justiça60 o que, mais uma vez, seria uma discriminação atentatória do princípio da igualdade que, em primeira instância, logo irá, mais uma vez, como visto

supra, contra a Convenção das Nações Unidas sobre as Pessoas Deficientes.

Portanto, e agora com base numa Reforma extremamente recente, encontramos uma resposta tendencial do Direito a ter de aceitar a procedência das ações de “vida indevida”. De facto, se o Direito busca a igualdade, não discriminação, autonomia, autodeterminação, prevalência da vontade e independência do deficiente tanto quanto

possível, não será aceitável que ele próprio discrime uma criança no seu acesso à justiça, numa contradição de toda a teleologia base da Reforma.