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Ora, parecendo-me premente que o legislador se debruce na realização de uma lei para os casos em apreço, não poderei deixar de elaborar algumas sugestões.

Primeiramente, não me parece que uma matéria deste género possa ser aditada a qualquer lei já existente: por um lado, ao contrário da Loi Anti-Perruche, não fará qualquer sentido aditar disposições sobre as questões de “vida indevida” na lei relativa aos direitos das pessoas deficientes ou diploma semelhante uma vez que se coloca a questão no âmbito das obrigações da Segurança Social, não lhe dando a autonomia necessária e sobretudo a correta sistematização no instituto da responsabilidade civil; por outro lado, desconheço qualquer lei de responsabilidade civil médica a que a questão bem se adaptasse.

Como tal, parece-me que a solução sempre começaria por ser a promulgação de diploma avulso não só sobre indemnizações de crianças por “vida indevida” mas sim uma lei ampla que tratasse o regime jurídico da responsabilidade civil por danos pré- natais.

Vejo, desde logo, algumas vantagens em formular um diploma com esta amplitude: por um lado, mais do que esclarecer um só tipo de indemnizações, viria consensualizar o tratamento de uma série de reparações por responsabilidade civil, todas referentes a um mesmo dano comum: o dano sofrido por nascituro ainda antes do seu nascimento. Desta forma, em primeiro lugar, logo se acabaria com as discussões sobre a possibilidade de um nascituro ter direitos independentemente da existência contemporânea da sua personalidade e da lesão.

Ainda, seria um diploma mais completo, a acabar com as várias dúvidas que levantam, juridicamente, os avanços da medicina, o tratamento dos nascituros e a responsabilidade sobretudo por deveres de cuidado, mais ou menos agravados, para com uma pessoa em desenvolvimento, mesmo que ainda in útero.

Ora, ampliando o diploma desta forma, sugeriria que o mesmo começasse, para além de indicar o seu objeto, de definir também alguns conceitos a ser utilizados ao

longo do texto, suscetíveis de confusões, nomeadamente os conceitos de “profissional médico”, “nascimento” ou “diagnóstico pré-natal”.

No seguimento ainda do tratamento mais lexical da questão, considero imperativo que, em altura nenhuma, se refiram as expressões “conceção”, “nascimento” ou “vida indevida” pela repulsa que, desde logo, as fórmulas vão despertar183

. A opção passaria ou por arranjar um nome mais adequado e menos repulsivo para as ações – o que confesso que me parece desnecessário e que até poderia mesmo acabar com a coerência da análise da questão, por exemplo, em termos comparados – ou precisamente por as explicar simplesmente e abstratamente, sem qualquer nomeação concreta184.

Ainda, neste sentido, será de evitar tanto quanto possível qualquer menção que possa soar discriminatória ou que possa soar como qualquer juízo de valor sobre a vida da criança deficiente. Como tal, será sempre de evitar qualquer confusão entre o dano- vida (que não poderá nunca ser subscrito185) e o dano decorrente da não preparação dos pais para receber uma criança em condições especiais, falando-se sim dos danos da sua deficiência.

Feitas estas ressalvas mais gramaticais a que deverá atender uma lei com tema tão sensível subjacente, formalmente, considero que ela deverá estar dividida por secções consoante os agentes sujeitos a responsabilidade.

183 Já tive oportunidade de me expressar sobre a irrelevância que atribuo à nomenclatura das ações, considerando que se deverá muito mais atender ao seu conteúdo do que ao nome que, por acasos infelizes, lhes foi atribuído. No entanto, não me passa despercebido que, a haver promulgação de uma lei, a leitura dessa não é feita somente por juristas e pessoas com o conhecimento necessário de Direito para a entender. Tenho completa noção do alarido que despertaria, na comunicação social, a elaboração de lei que usasse tais expressões, prevendo já que se perderia o foco do que mais importa, sendo isso o conteúdo da lei.

Aliás, o problema não decorreria só da análise da lei por pessoas leigas em Direito mas ainda, tendo em conta a “novidade” que o tema ainda é, mas também da análise por muitos juristas que, desinformados, aproveitariam logo tais expressões para criticar o diploma com as tradicionais objeções de discriminação das pessoas com deficiências.

184 Quero com isto dizer que, em vez de elaborar dispositivo que diga:

“O profissional médico que, com dolo ou mera culpa, provocar dano de “nascimento indevido” a progenitores está obrigado a indemnizá-lo pelos danos das lesões”;

Deveria optar-se por expor a situação de “nascimento indevido” sem mencionar tal expressão. Assim, sugeriria algo como:

“O profissional médico que, com dolo ou mera culpa, preterir deveres de informação que obstem ao exercício de consentimento informado para prossecução de gravidez, fica obrigado a indemnizar os pais da criança que venha a nascer deficiente por todos os danos resultantes desse nascimento”.

185 Terei de considerar por tudo o que fica dito em sede do pressuposto do dano destas ações que qualquer menção suscetível de considerar a vida da criança como dano deverá originar inconstitucionalidade material da lei.

Numa primeira parte, considero indispensável legislar sobre a responsabilidade civil decorrente de danos pré-natais, em sentido amplo. Assim sendo, arranjaria um primeiro dispositivo que tratasse da responsabilidade civil geral, ou seja, a responsabilidade de qualquer pessoa, independentemente da sua condição, na eventualidade de provocar danos pré-natais a nascituro, nomeadamente nos casos em que, de comportamento lesivo contra mulher grávida resultam danos para o seu feto. Uma regra geral desse teor viria, em traços muito amplos, responsabilizar qualquer agente por ato ou omissão, com culpa ou negligência, contra mulher grávida não só pelos danos próprios dessa mas ainda pelos danos ocorridos no nascituro que, considero, poderiam mesmo vir a ser, mais tarde, invocados por ele, a título próprio.

Num capítulo mais generalista como seria este primeiro, considero que várias achegas se poderiam fazer, nomeadamente os termos em que se apuraria a culpa ou o ilícito ou ainda questões de legitimidade processual para intentar a ação.

Já numa segunda secção da lei, considero que se deveria especificar a responsabilidade civil médica nos casos de lesões pré-natais, individualizando uma secção somente para esses profissionais. Dessa forma, considero que seria até mais seguro para os médicos conhecer a responsabilidade em que poderiam incorrer. Como tal, um capítulo desse género deveria envolver a responsabilidade do médico por danos diretos que provocasse a nascituro, nomeadamente por receitar medicamentos lesivos do feto durante a gravidez, à progenitora ou mesmo por intervenção cirúrgica da qual resultasse lesão de nascituro.

Para além das lesões em que, efetivamente, se conseguisse provar um nexo causal direto entre a conduta médica e a lesão do feto, considero que se deveria depois entrar na secção que mais interesse aqui tem: as lesões por violação de deveres de acordo com a leges artis, como seriam as violações relacionadas com DPN ou com o consentimento informado. Dessa forma, para além da responsabilidade civil do médico que sempre adviria, nos casos em que houvesse um CPS violado, haverá sempre também responsabilidade civil do médico decorrente da lei, por preterição dos deveres acessórios que lhe diriam respeito.

Portanto, nesta secção incluiríamos, desde logo, um dispositivo relativo às chamadas ações de “conceção indevida” (mais uma vez com a achega de que tal

nomenclatura não deveria ser mencionada). Nesse sentido, iria ser responsável de indemnizar um casal, o profissional médico que lhes receitasse contracetivos ou tratamentos que tivessem como fim evitar uma gravidez mas que, independentemente disso, tivessem levado ao nascimento de uma criança. Para não deixar espaço para interpretações erróneas, seria logo de excluir o direito da própria criança de pedir essa indemnização, uma vez que, regra geral, essa nascerá saudável e sem qualquer dano a indemnizar.

Subsequentemente, parecer-me-ia razoável, finalmente, introduzir as questões de “nascimento” e “vida” indevida. Uma vez que ambas as responsabilidades decorrem de um mesmo comportamento médico, sugeria que se juntassem ambas as responsabilidades num mesmo articulado com o seguinte conteúdo:

Artigo X.º

Responsabilidade por violação de deveres de informação

1. O profissional médico que, com dolo ou mera culpa, preterir deveres de informação que obstam ao exercício de consentimento informado para a prossecução de gravidez, fica

obrigado a indemnizar os pais de criança que venha a nascer deficiente.

2. A criança que, na sequência do comportamento do nº1 nascer deficiente, também tem o direito a indemnização do profissional médico, a título próprio, pelos danos da sua

condição.

3. A responsabilidade mencionada nos números anteriores é extensível a todos os casos em que, por dolo ou mera culpa, o profissional preteriu realização de DPN ou, realizando-

o, o interpretou e/ou informou erradamente.

4. As ações previstas nos números 1 e 2 poderão ser propostas cumulativamente.

Desta forma, ficaria finalmente prevista a hipótese de indemnização quer da criança como dos pais por um mesmo comportamento médico como seja a preterição de direitos de informação que não permitiram um consentimento informado para

prossecução de gravidez da qual resultou criança deficiente que, pela sua condição, acarreta danos patrimoniais e morais.

No entanto, a simples responsabilização do comportamento não seria suficiente no que toca a legislar sobre “vidas indevidas”. Parece-me que deveriam ser promovidos igualmente dispositivos sobre quem teria legitimidade para interpor essas ações, sobretudo em nome da criança. Nesse sentido, como tivemos oportunidade de nos expressar anteriormente, acho que deveria ser atribuída a legitimidade ativa à criança, que poderia ser representada em juízo pelos seus pais ou curadores, aplicando-se na íntegra as regras dos art.ºs 16º a 18º CPC, enquanto fosse menor. Quando já não o fosse, a regra do art.º 19º do CPC quanto à representação em juízo do maior acompanhado seria também totalmente aplicável.

Não poderá também deixar de haver um artigo que mencione quer os danos patrimoniais como os morais a atender em cada ação. Assim sendo, quanto aos danos morais, como adiantei, será de permitir a valorização de ambos, quer dos pais como do filho, uma vez que a lesão é passível de originar qualquer um deles. No entanto, já quanto aos danos patrimoniais, precisamente pela possibilidade de duplicação da indemnização para as mesmas despesas, sugeriria que se exemplificassem as despesas patrimoniais que o profissional médico deveria compensar, deixando a ressalva de que o julgador, a considerar cumulativamente procedentes ações de “nascimento” e “vida indevida” deveria apenas calcular as despesas patrimoniais uma vez, distribuindo-a pelos demandantes como considerasse casuisticamente correto.

Considero que haverá todo o interesse ainda em individualizar um capítulo para uns outros agentes em especial, a serem passíveis de responsabilidade: os progenitores, nomeadamente a progenitora feminina da criança. Também já me foi possível pronunciar quanto à possibilidade de os pais, sobretudo a mãe, ser demandada pelo filho por lesões pré-natais quando ela lhas tenha provocado. Apesar de ter tentado clarificar o quanto a responsabilidade do médico nada tem a ver com a da mãe, a verdade é que não se poderá aceitar totalmente uma teoria de imunidade parental, como se os pais pudessem mesmo provocar, egoistamente, danos ao seu futuro filho sem poderem sofrer qualquer consequência. Tal não faria sequer sentido com base nas evoluções de Direito Contemporâneo que observámos e, acima de tudo, seria totalmente avesso a responder à quantidade de casos de maus tratos de menores pelos pais que atualmente se verificam.

Confesso que nem me deixa particularmente chocada pensar em legislar no sentido de responsabilizar os pais por lesões aos filhos uma vez que nem é uma solução particularmente inovadora. Como já referi, no Congenital Disabilities Act 1976 inglês, na Section 2, está mesmo prevista a responsabilidade civil da mãe de nascituro quando esse nasça com lesões resultantes de falta de dever de cuidado dela ao conduzir veículos motorizados.

Assim sendo, considero que, para clarificar a questão e mesmo para a afastar da responsabilidade civil médica – e o efeito bola de neve parar de ser uma objeção às ações de “vida indevida” – deverá haver uma secção destinada a responsabilizar os progenitores por comportamentos ou omissões que violem o dever de cuidado especial que deverão ter para com os seus filhos (incluindo nascituros) e dos quais resultem lesões precisamente para o filho.

Finalmente, enquanto disposições finais, não poderá deixar de se referir a subsidiariedade do CC e CPC em todas as questões não mencionadas diretamente no diploma, quanto à responsabilidade civil. E ainda, considero que deverá sempre ser feita a ressalva de que as indemnizações por responsabilidade civil previstas no diploma não obstam ao auxílio da Segurança Social a crianças deficientes, em condições igualitárias e não discriminatórias para todas.