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Direito de propriedade e tributação

Capítulo III A modelagem dos efeitos da decisão de inconstituciona-

4. A intercorrência da manipulação dos efeitos da decisão nas rela-

4.1. Direito de propriedade e tributação

No catálogo dos direitos fundamentais embutido está o direito de propriedade, tido na Constituição Federal não só como um dos cinco pilares dos direitos e garantias individuais (CF, art. 5.°, caput), como em várias passagens outras contemplado na Carta Política (CF, arts. 5.°, incs, XXII a XXX, 170, II e III, 176, 182, 183 a 186, 191 e 222). Para uma compreensão maior do direito de propriedade, todavia, adiantam-se as prescrições contidas nos incisos XXII e XXIII do artigo 5.° da Lei Fundamental.

Propriedade aí é vista como um direito subjetivo que visa a assegurar a uma pessoa o monopólio da exploração de um bem e de fazer valer esta faculdade contra todos que eventualmente queiram a ela se opor.

O sentido e o alcance do substantivo propriedade, por seu turno, hodiemamente resta afastado daquele que está no território do Direito Civil (haver, usar, gozar e dispor de uma coisa), de modo apertado, na medida em que deita fora desse âmbito todos os outros direitos patrimoniais. A referência a

propriedade, como admitido sem dissenso na atualidade, tem a ver com direito

de conteúdo econômico, tendo, então, a nota da patrimonialidade; direitos patrimoniais, por conseguinte, entendidos aí todos os bens materiais e imateriais.270

E direito de propriedade - calha também vincar, inda que assim de rota batida, como estamos fazendo -, bem entendido, não no sentido greco-

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romano de direito sagrado , mas sim com sua função fundamentalmente social

269 ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito

constitucional, p. 133. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988, 2.° v., p. 117.

270 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, p. 300. FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de direito constitucional, pp. 107 e 110. PASTORELLO, Dirceu Antônio. “Direitos fundamentais dos contribuintes”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos fundamentais dos contribuintes, p. 564 (566).

271 Que assim acabou sendo, em atenção a uma das duas preocupações máximas da burguesia - sendo a segunda a da estrita legalidade na criação e cobrança de tributos (COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, pp. 145-45) -, incluída na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Art. 17. Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente verificada, o exigir de modo evidente, e sob a condição de uma justa e prévia indenização”.

(CF, art. 5.°, inc. XXIII); a observância da função social da propriedade, de tal arte, acaba aparecendo como fundamento para o próprio reconhecimento e garantia do direito de propriedade em sua plenitude.272

Nessa linha é que nos parece induvidoso que a inviolabilidade do direito individual de propriedade acaba cedendo passo, constitucionalmente legitimado e delimitado, à tributação, que o acaba agredindo. Por isso se diz, corretamente, que a ação de tributar excepciona a proteção constitucional à propriedade privada. Em outras palavras, o tributo, de algum modo, esgarça o direito de propriedade.273

Deveras, incidindo o poder tributário do Estado, como incide, sobre o

dinheiro das pessoas - que patrimônio é, sempre obsequiando seja-nos tolerada

mais esta afirmação acaciana -, a propriedade é que fornece o substrato por excelência da tributação274, possuindo, é bem verdade, um limite máximo, para além do qual acaba aniquilando o direito de propriedade, passando o tributo a ter efeito confiscatório (CF, art. 150, inc. IV).

A constatação, então, é a de que o tributo configura vera agressão ao patrimônio do particular, cuja propriedade é erigida ao patamar de garantia individual da pessoa, ao tempo em que a proteção constitucional ao direito de propriedade exclui a possibilidade de que a tributação tenha efeito confiscatório. Portanto, como o tributo é admitido constitucionalmente, somente se pode

272 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional, p. 459.

273 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário, pp. 350-51. 274 TORRES, Ricardo Lobo. “Direitos fundamentais do contribuinte”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos fundamentais do contribuinte, p. 167 (169).

concebê-lo como uma ofensa ao direito de propriedade, uma exceção mesmo a esse direito, sob pressupostos que o afastem do confisco.275

Com esta visão, fica claro que as chamadas limitações constitucionais ao poder de tributar (CF, Título VI, Capítulo I, Seção II) bem por isso acabam atuando, indiretamente embora, como forma de garantir (também) o direito de propriedade. Afinal, com o exercício de suas competências tributárias, os entes tributantes não podem fazer nulas as garantias constitucionais277, notadamente, no que aqui importa imediatamente, a do direito de propriedade, com o que, nesta agressão, acabariam agredindo, do mesmo passo, a vedação de utilização de tributo com efeito de confisco (CF, art. 150, inc. IV). Neste sentido, a propósito, o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de declarar a inconstitucionalidade de lei estadual, do Rio de Janeiro, que estabeleceu taxa judiciária sem que tivesse um limite máximo para a sua incidência.278

Esta ordem de considerações põe a descoberto, destarte, que o direito de propriedade é um parâmetro material para a tributação.279 De fato, como o tributo, conforme já visto, configura uma agressão ao direito de propriedade, não pode ele (o tributo), notadamente no que concerne a seu montante, ir ao ponto de desfigurar esse direito individual, que restará aniquilado.

275 OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. “Direitos fundamentais da pessoa e do contribuinte”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Direitos fundamentais do contribuinte, p. 226 (228).

276 VILLEGAS, Héctor B. Curso de direito tributário, p. 84. ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional, p. 393.

277 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributária, 2 ° v., p. 126.

278 BRASIL. Supremo Tribunal Federal: Tribunal Pleno. Rp 1.077-RJ. Procurador-Geral da República versus Assembléia Legislativa e Governador do Estado do Rio de Janeiro. Relator: ministro Moreira Alves. Acórdão de 28/3/1984. Unânime. RTJ112/34 (58-59).

279 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos, p. 565; Direito fiscal, p. 161.

Seria como admitir, não fosse assim, que um dado tributo recebesse oneração tal que acabasse - atropelando as limitações constitucionais ao poder de tributar - por levar o contribuinte, no limite, a entregar seu patrimônio ao Estado. Aquelas limitações, por conseguinte, atuam visando a fornecer ao contribuinte a

segurança de que a tributação encontrará nelas o anteparo bastante para que o

direito de propriedade não seja violentado, para além daquelas balizas.

Volta a ter cabimento aqui a ponderação que fizemos antes: a retirada estatal compulsória de dinheiro do cidadão, a título de tributo, exige que essa agressão seja desenvolvida estritamente por sobre os trilhos que a Constituição Federal finca, pena de ofensa (também) ao direito de propriedade.