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4.2 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas passivas do indivíduo

4.2.1 Direito ao silêncio

A jurisprudência brasileira reconheceu o direito ao silêncio em diversos julgados:

A Constituição Federal assegura aos presos o direito ao silêncio (inciso LXIII do art. 5º). Nessa mesma linha de orientação, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Pacto de São José da Costa Rica) u z í “ ã -auto- çã ” (nemo tenetur se

detegere). Esse direito subjetivo de não se auto-incriminar constitui uma das

mais eminentes formas de densificação da garantia do devido processo penal e do direito à presunção de não-culpabilidade (inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal).103

Como visto, o direito ao silêncio desenvolveu-se e ganhou corpo no sistema anglo-saxão. Podemos identificar várias formas de interpretação do referido direito, algumas mais amplas, outras não tão abrangentes. Vamos a algumas delas. A primeira é a que pode ser extraída diretamente do texto e diz respeito ao direito que tem o réu ou investigado de permanecer em silêncio, a não ser que opte por falar, sendo que desse silêncio nenhuma consequência pode ser inferida, ou seja, o mero

103ST − HC . 101.909/MG, rel. Min. Ayres Brito, j. 28.02.2012. No mesmo sentido: ST − HC n. 114.095/MS; ST − HC n. 109.978/DF, entre outros.

fato de permanecer calado não poderá, em nenhuma hipótese, prejudicá-lo, pois a prova dos fatos delituosos cabe à acusação.

O direito ao silêncio protege o indivíduo da exposição de fatos de sua esfera privada, fatos íntimos de sua vida que ele pode não ter interesse em revelar. Ao permanecer em silêncio, garante-se a ele o direto de não ser compelido a expor a sua própria culpa. Em outras palavras, o silêncio não implica em assunção de culpa ou reconhecimento dos fatos a ele imputados, mas constitui mero exercício de direito previsto constitucionalmente.

Como decorrência do direito ao silêncio, não pode ser o indivíduo coagido pela polícia a fazer declarações involuntárias para se autoincriminar. Somente declarações realizadas de forma voluntária podem ser utilizadas no processo penal, sob pena de infração à cláusula do devido processo legal. Não basta, todavia, que as declarações sejam feitas de forma voluntária, mas é necessário que elas tenham sido realizadas após o indivíduo ter sido informado, expressamente, acerca de seu direito de permanecer em silêncio.

Também tem o indivíduo o direito de não testemunhar em processo penal contra si instaurado. Vale dizer, não tem a obrigação de colaborar com a acusação para a elucidação dos fatos, uma vez que tal ônus recai, exclusivamente, à parte que os aduz, elemento essencial do sistema adversarial. Mas o direito de não testemunhar não emerge somente nos processos penais instaurados contra si, mas em quaisquer outros, desde que desse testemunho possa ocorrer a sua autoincriminação.

As declarações firmadas pelos indivíduos sem a observância de tais requisitos, obtidas sob tortura ou qualquer outra forma de coação, sujeitam os responsáveis às penalidades penais e cíveis previstas na legislação. Além disto, tais declarações, e todas as outras que dela foram decorrentes (frutos da árvore envenenada), devem ser excluídas do processo penal, ou seja, não podem tais provas servir como fundamento para a eventual edição de decreto condenatório.

No direito norte-americano, o direito ao silêncio ainda previne o indivíduo de sujeitar-se a um cruel dilema. As testemunhas têm o dever de dizer a verdade em juízo e, ao contrário do réu, não podem silenciar, sob pena do cometimento de uma infração denominada contempt of court. Se o réu fosse obrigado a testemunhar em processo penal contra si instaurado, se veria na seguinte dúvida: dizer a verdade e com isso autoincriminar-se, mentir e cometer o crime de perjúrio ou silenciar e cometer o contempt of court.

Cabe à acusação envidar todos os esforços possíveis para a apuração dos fatos, não se exigindo do réu qualquer atitude ativa. Se a acusação não se desincumbir de seu ônus, a consequência será a absolvição, facultando-se ao réu uma atividade meramente passiva no decorrer de todo o curso do processo penal.

O direito ao silêncio, entretanto, da forma que foi construído e idealizado no direito anglo-saxão, jamais teve o intuito de permitir que o réu mentisse em seu interrogatório. Essa era uma hipótese que não estava albergada no rol de interpretações possíveis do instituto. Tanto isso é verdade que no direito norte- americano, berço do instituto, o réu, conquanto não seja obrigado a depor, se o fizer deverá dizer a verdade, sob pena de cometer o crime de perjúrio.

É certo que os institutos, quando transpostos do direito de um país para outro, podem adquirir contornos diferentes, ou mesmo sofrer adaptações com o passar dos tempos, entretanto uma interpretação histórica do direito ao silêncio não autoriza afirmar que ele assegura ao réu o direito de mentir sem quaisquer consequências, sem que tal mentira possa ser de alguma forma penalizada.

Não há dúvida que várias atrocidades foram cometidas contra os réus pelo Estado investigador, atrocidades que já eram noticiadas nas jurisdições eclesiásticas e continuam sendo cometidas na atualidade pelos responsáveis pelas investigações criminais.

Cesare Beccaria 104 era francamente contrário ao juramento do réu,

ponderando que uma contradição entre as leis e os sentimentos naturais do homem nasce dos juramentos que se exigem do réu, para que seja um homem veraz, quando seu maior interesse é mentir.

A objeção de Cesare Beccaria era, de fato, pertinente, mormente em virtude de os sistemas processuais penais então vigentes exigirem o depoimento do réu e, ainda, que ele se desse sob a promessa de dizer a verdade. Também nos sistemas em que, mesmo sem o compromisso de dizer a verdade, o acusado é obrigado a depor, ou ainda naqueles em que, não obstante a não obrigatoriedade, o seu silêncio é tomado em seu desfavor105, a objeção continua procedente.

Nessas hipóteses o acusado não possuía alternativa, a não ser mentir.

A situação atual, todavia, é um pouco diferente. O depoimento do acusado não mais se mostra necessário, constituindo uma faculdade que lhe outorgou o moderno processo penal. O réu apenas prestará o seu depoimento se assim o desejar. A lei ainda é expressa ao consignar que nenhuma ilação poderá ser inferida desse silêncio, pois cabe à acusação a comprovação de todos os fatos descritos na inicial acusatória. Dessa forma, dado o panorama atual, podemos sustentar haver um direito à mentira?106