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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Márcio Rached Millani

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Márcio Rached Millani

Direito à não autoincriminação.

Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial

MESTRADO EM DIREITO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Márcio Rached Millani

Direito à não autoincriminação.

Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Thiago Lopes Matsushita.

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BANCA EXAMINADORA

__________________________________________ Prof. Dr. André Ramos Tavares PUC-SP

__________________________________________ Prof. Dr. Marco Aurélio Florêncio Filho Universidade Prebisteriana Mackenzie

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RESUMO

MILLANI, Márcio Rached. Direito à não autoincriminação. Limites, conteúdo e aplicação. Uma visão jurisprudencial. 2015. 185 p. Dissertação (Mestrado em Direito)  Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

Vários países adotam em suas Constituições ou em suas leis infraconstitucionais o direito à não autoincriminação. Tal direito é também garantido por vários tratados internacionais que se incorporaram às legislações internas dos vários países, entre eles o Brasil. Pode-se observar que as redações adotadas pelos países são similares e abrangem, de modo geral, o direito de o investigado ou o réu permanecerem em silêncio, vale dizer, o direito de não deporem contra si mesmos em investigação ou processo penal instaurados para a apuração de determinado delito. Em suma, não são os investigados ou réus compelidos a auxiliar na produção da prova em processos contra eles instaurados. Conquanto as redações dos dispositivos legais que consagram o direito à não autoincriminação sejam similares e em alguns casos quase idênticas, observa-se que a nossa jurisprudência conferiu ao referido direito uma abrangência muito maior do que a observada no direito comparado, sendo que em algumas hipóteses tal ampliação acabou por tornar sem efeito dispositivos legais em vigor, como ocorreu com a recente vedação da utilização de determinados testes de alcoolemia para comprovação da embriaguez. Várias hipóteses podem ser levantadas para tentar explicar a razão de o direito à não autoincriminação ter se tornado um direito quase absoluto, entre elas: uma errônea interpretação de seu conteúdo; a não ponderação dos valores em conflito no caso concreto; a noção de que o corpo do indivíduo não pode, em hipótese nenhuma, ser utilizado como objeto de prova; a exagerada importância conferida aos direitos individuais; e a confusão entre autoridade e autoritarismo que ocorreu na nossa sociedade após o término do regime ditatorial.

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ABSTRACT

MILLANI, Márcio Rached. Right to not self-incrimination. Limits, content and application. A jurisprudential vision. 2015. 185 p. Dissertation (Master Degree in Law)

 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

Several countries adopted in their Constitutions or in their infra-laws the right to not self-incrimination. This right is also guaranteed by several international treaties which were incorporated to the internal laws of several countries, including Brazil. It can be observed that the texts adopted by the countries are similar and include, in general, the right of the investigation or the accused remain silent, that is, the right not to testify against themselves in criminal investigation or proceeding instituted for the determination of a particular offense. In short, investigated or defendants are not compelled to assist in the production of evidence in cases filed against them. While texts of legal provisions that enshrine the right to self-incrimination are similar and in some cases almost identical, it is observed that our jurisprudence conferred much greater extension to the right than that observed in comparative law coverage, and in some cases this expansion eventually become ineffective legal provisions in force, as happened with the recent sealing of the use of certain alcohol tests for evidence of intoxication. Several arguments can be raised to try to explain why the right to not self-incrimination have become an almost absolute right, among them: an erroneous interpretation of its contents; not weighting of conflicting values in the case concert; the notion that the individual’s body cannot, under any circumstances, be used as a test object; the exaggerated importance given to individual rights; and the confusion between authority and authoritarianism that took place in our society after the end of the dictatorial regime.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 9

2 DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. ORIGENS E EVOLUÇÃO ... 11

2.1 Notas históricas ... 11

2.2 Incorporação do direito à não autoincriminação aos tratados internacionais de direitos humanos ... 21

2.3 Direito à não autoincriminação. Elementos caracterizadores ... 27

2.4 O direito à não autoincriminação na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ... 29

2.5 Natureza jurídica ... 31

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELACIONADOS AO DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO ... 37

3.1 O direito à não autoincriminação e presunção de inocência ... 37

3.2 O direito à não autoincriminação e o devido processo legal ... 39

3.3 O direito à não autoincriminação e a ampla defesa ... 41

3.4 O direito à não autoincriminação e o contraditório ... 43

3.5 O direito à não autoincriminação e a dignidade da pessoa humana ... 44

3.6 O direito à não autoincriminação e o direito à intimidade, integridade física e liberdade ... 46

4 INTERPRETAÇÃO DOS TRIBUNAIS SOBRE O DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO ... 48

4.1 Necessidade do consentimento do réu para a realização da prova ... 51

4.2 O direito à não autoincriminação aplicado a posturas passivas do indivíduo ... 55

4.2.1 Direito ao silêncio ... 55

4.2.2 Direito à mentira ... 58

4.2.3 Direito de não participar na reconstituição do crime ... 69

4.2.4 Direito de não fornecer padrôes gráficos e de voz ... 69

4.2.5 Necessidade de comparecimento à audiência ... 71

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4.3.1 Direito à não autoincriminação como justificativa para o cometimento de

delitos. Fraudes praticadas durante o processo ... 73

4.3.2 Imputação falsa de crime a outrem ... 75

4.3.3 Fuga do infrator do local do delito ... 77

5 CORPO COMO OBJETO DE PROVA ... 85

5.1 Intervencões corporais. Definição ... 85

5.2 Intervenções corporais no direito estrangeiro ... 87

5.3 Intervenções corporais no direito brasileiro ... 97

5.4 Utilização do corpo como objeto de prova. Possibilidade... 99

6 INTERVENÇÕES CORPORAIS. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CONFLITO ... 106

6.1 Proporcionalidade e ponderação dos interesses contrapostos ... 106

6.2 Direito à não autoincriminação. Critérios para a ponderação ... 108

6.3 Ponderação entre o direito à intimidade e as intervenções corporais ... 113

6.4 Ponderação entre o direito à integridade física e as intervenções corporais... 117

6.5 Ponderação entre o direito à liberdade e as intervenções corporais ... 120

6.6 Ponderação entre o direito à dignidade e as intervenções corporais ... 122

6.7 Ponderação entre o direito à não autoincriminação e as interveções corporais 125 6.8 Testes de alcoolemia ... 135

7 DESEQUILÍBRIO NA BALANÇA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ... 146

7.1 Autoridade e autoritarismo ... 146

7.2 Absolutização de direitos fundamentais ... 149

7.3 Individualismo exagerado ... 159

CONCLUSÕES ... 172

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1 INTRODUÇÃO

O direito à não autoincriminação, conquanto amplamente abordado pela doutrina e pela jurisprudência, ainda não tem os seus contornos totalmente delimitados. As incertezas vão desde a nomenclatura até as hipóteses de aplicação, sendo ora equiparado ao direito ao silêncio, ora interpretado de maneira mais ampla, abrangendo situações que não guardam qualquer relação com o texto legal que o estabelece.

O direito à não autoincriminação tem previsão em várias Constituições e legislações infraconstitucionais, além de também estar consagrado nos principais tratados internacionais, como, por exemplo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

O referido direito é considerado um direito fundamental e costuma estar associado a outros direitos fundamentais, como os direitos à intimidade, à integridade corporal, à dignidade e à liberdade, entre outros.

São dois os principais objetivos do presente estudo. O primeiro consiste em verificar qual o tratamento dado ao direito à não autoincriminação pela jurisprudência pátria, especialmente a exarada pelo Supremo Tribunal Federal.

Embora não seja o objeto central uma análise mais aprofundada da doutrina, evidentemente várias posições doutrinárias serão trazidas, mesmo porque muitas vezes elas são utilizadas para fundamentar os julgados.

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2 DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO. ORIGENS E EVOLUÇÃO

2.1 Notas históricas

O direito ao silêncio já era noticiado em algumas passagens do Talmude1. A tradição judaica dizia que as confissões feitas pelo réu nunca deveriam ser admitidas, mesmo que tivessem sido dadas voluntariamente. Assim, a proibição voltava-se não contra a coerção, mas contra a autoincriminação, veto que teria origens na Bíblia, que exigia duas testemunhas para o fato, desqualificando o próprio réu como testemunha. É possível vislumbrar, em vários casos relatados no Talmude, o esboço do direito à não autoincriminação, como descrito por Simcha Mandelbaum, citado por Alan Dershowitz2: uma pessoa foi acusada de colocar fogo

em uma propriedade de seu vizinho. O fato teria ocorrido no sábado, dia sagrado para os judeus. A vítima solicitou ressarcimento por danos materiais e a punição por infração às regras que regulam os deveres atinentes ao sábado. O réu ofereceu a sua confissão como evidência. Foi decidido que o seu testemunho somente deveria ser admitido como prova no processo cível e não para fins criminais. Solução similar foi oferecida por uma corte judaica em outro caso, no qual a mulher buscava a permissão da Corte para casar-se novamente. Ela alegou que seu ex-marido, que desaparecera de casa, estava morto. Para confirmar a morte do marido ela chamou uma testemunha que confessou tê-lo matado. A corte deferiu o pedido, sob o argumento de que, conquanto o testemunho fosse autoincriminatório, ele poderia ser aceito na parte que estabelecia a morte do marido, mas que não poderia ser aceito para a condenação do autor por homicídio.

A fonte da cláusula do direito à não autoincriminação foi a máxima nemo tenetur se ipsum accusare3. A máxima é apenas um aspecto de dois sistemas diferentes de aplicação da lei que vigoravam no sistema inglês, o acusatório, que

1 O Talmude é o livro sagrado dos judeus, um registro das discussões que pertencem à lei, ética,

costumes e história do judaísmo.

2 DERSHOWITZ, Alan M. Is there a right to remain silent?: coercive interrogation and the Fifth Amendment after 9/11. Kindle Edition. Oxford; New York: Oxford University Press, 2008. pos. 669 de 2.222.

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antecedeu o reinado de Henrique II, e o inquisitório, que se desenvolveu nos tribunais eclesiásticos.

No início da história da Igreja Católica, a confissão dos pecados tornou-se uma obrigação de fé. Assim, nenhum privilégio existia para pessoas acusadas de um crime na Idade Média e os tribunais inquisitoriais na Europa continental e a Star Chamber na Inglaterra, em meados do século XVII, exigiam amplas confissões dos acusados.

O julgamento de John Lilburn4, ocorrido no ano de 1653, retrata o procedimento adotado no período. Lilburn argumentou que o Estado não poderia obrigá-lo a responder a questões incriminadoras, pois isso violaria a lei de Deus, uma vez que ela traz a determinação de que nenhum homem pode se acusar.

Leonard W. Levy5 afirma que a raiz histórica do direito à não autoincriminação

encontra-se, de fato, nas disputas religiosas e políticas dos dissidentes ingleses. Entende que o direito nasceu da reação a perseguições sofridas por esses dissidentes e particularmente relacionadas ao chamado juramento ex officio,

ferramenta importante no sistema inquisitorial. Os dissidentes juravam dizer a verdade, mesmo antes de saberem as acusações contra eles formuladas. Tratava-se de um juramento aberto que permitia aos interrogadores a elaboração de questionamentos genéricos, inclusive versando sobre os mais íntimos pensamentos dos interrogados. Leonard W. Levy afirma que a origem do direito remonta ao século XIII e foi primeiramente utilizado em 1246, quando o bispo Robert Grosseteste conduziu inquisições sobre desvios de conduta e atos imorais de membros de sua diocese. Para descobrir todos os culpados, instituiu o oath de veritate dicenda, uma

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“Em 1653, Lilburn publicou A justa defesa, na qual escreveu: 'Outro direito fundamental que eu defendo é o de que nenhuma consciência do homem deve ser abalada por juramentos impostos para responder a perguntas a respeito de si mesmo em matéria penal’.”. No original: “In 1653, Lilburn published The Just Defence in which he wrote: 'Another fundamental right I then contended for was that no mans conscience ought to be racked by oaths imposed, to answer to questions concerning himself in matters criminal, or pretended to be so'.” (Disponível em: <http://www.law.cornell.edu/supct/search/display.html?terms=constitutional%20or%20unconstitution al&url=/supct/html/historics/USSC_CR_0350_0422_ZD.html>. Acesso em: 10 ago. 2013. Nossa tradução).

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inovação nunca antes utilizada, que lhe permitia a realização de todas as perguntas necessárias para atingir o seu objetivo.

Os juramentos ex officio continuaram a ser utilizados6 não somente por cortes

eclesiásticas, mas também por cortes seculares, como a Star Chamber. O procedimento possibilitava as mais variadas perseguições religiosas e se utilizava da técnica conhecida como open-ended fishing-expedition, um procedimento no qual o investigador não pergunta sobre um fato específico, mas procura descobrir eventuais ilegalidades praticadas pelo interrogado. Muitas vezes o único crime imputado era uma divergência teológica entre o investigado e a Coroa.

Insurgindo-se contra o juramento, a arma principal utilizada era o silêncio, que buscava fundamento em uma antiga máxima do direito canônico, nemo tenetur se ipsum prodere (nenhum homem é obrigado a se acusar). O rei Henry III acabou por emitir mandados de proibição contra o procedimento adotado por Robert Grosseteste em 1246 e 1252, determinando que leigos não poderiam ser inquiridos sob o referido juramento nas cortes eclesiásticas, à exceção de causas que envolvessem matrimônio e testamentos. Leonard W. Levy, ao contrário de outros historiadores, não credita à Magna Carta de 1215 a paternidade do direito à não autoincriminação, embora reconheça que o espírito do documento estimulou a sua invocação como parte das garantias por ele asseguradas.7

Em suma, de acordo com Leonard W. Levy, o direito à não autoincriminação não pode ser totalmente compreendido se não for considerada a situação religiosa e política da época. A reivindicação ao direito, assevera o autor, nasceu das inquirições inicialmente conduzidas pela Igreja e posteriormente pelo Estado, tendo exercido papel relevante o contexto das lutas políticas que buscavam limitar

6 AMAR, Akhil Reed; LERNER, Ren . -incrimination clause. Michigan Law Review, v. 93, n. 857, p. 896, 1995. Também disponível em: <http://www.law.yale.edu/documents/pdf/1995Fifth.pdf>. p. 20. Acesso em: 03 nov. 2014.

7 A Magna Carta

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prerrogativas arbitrárias e assegurar liberdades individuais e um governo mais representativo. O direito também emergiu no contexto de procedimentos criminais que procuravam assegurar um julgamento justo para o acusado, harmonizando-se com os princípios de que ele era inocente até que fosse provada a sua culpa, de que o ônus da prova cabia à acusação e com o sentimento de que a tortura ou qualquer outro método cruel para obrigar alguém a revelar a sua culpa era injusto e ilegal. Acima de tudo, afirma que o direito estava intimamente relacionado com a liberdade de religião e expressão. Leonard W. Levy conclui então, à vista da análise histórica realizada, que, à época do surgimento do Bill of Rights, o direito à não autoincriminação já havia se estabelecido. Assegura que, conquanto o direito tenha sido estruturado com o objetivo de banir a tortura e proporcionar mais segurança para os acusados em processos criminais, não eram essas as suas únicas funções.

Finaliza o referido autor argumentando que os constituintes entenderam que sem processos justos e regulares para a proteção dos criminalmente acusados, poderia não haver liberdade. Sabiam que, desde tempos imemoriais, o primeiro passo dos tiranos era usar a lei criminal para esmagar os seus opositores. A Quinta Emenda foi concebida justamente para assegurar esses procedimentos, que foram considerados cruciais para a sobrevivência dos mais preciosos direitos. Acima de tudo, ela refletiu esse pensamento, a ideia de que, em uma sociedade livre, baseada no respeito pelo indivíduo, a determinação da culpa ou inocência deve ser feita por procedimentos justos, nos quais o acusado não deve contribuir, contra a sua vontade, para a sua condenação, sendo tal objetivo mais importante do que a simples punição do culpado.

A tese de Leonard W. Levy é refutada por John H. Langbein8. O autor assevera que a verdadeira origem do direito à não autoincriminação não deve ser buscada nas lutas políticas da revolução inglesa, mas no aprimoramento do procedimento criminal adversarial ocorrido no final do século XVIII. O direito, desta feita, foi o resultado do intenso trabalho realizado pelos advogados de defesa. John H. Langbein pesquisou os julgamentos ocorridos no período compreendido entre os

8 LANGBEIN, John H. The privilege and common law criminal procedure: the sixteenth to the

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anos de 1670 a 1780, não tendo encontrado casos em que o réu, alegando o seu direito ao silêncio, tenha se recusado a falar. O autor não encontrou uma menção sequer, em tais julgamentos, ao referido direito, concluindo que ele, na prática, não existia.

Esclarece ele que, de meados do século XVI, época em que as primeiras publicações tornaram possível um melhor conhecimento acerca dos incipientes julgamentos criminais, até o final do século XVIII, a principal garantia para o acusado no procedimento criminal não era o direito de permanecer em silêncio, mas sim a possibilidade de falar. O propósito essencial do julgamento criminal era fornecer ao acusado a oportunidade de refutar pessoalmente as acusações a ele imputadas. Uma das características mais marcantes desse procedimento era a regra que proibia a participação de um advogado de defesa, proibição que apenas começou a ser relaxada em 1696, para os crimes de traição. Entendia-se que se o réu fosse inocente, era desnecessária a presença de um advogado, porque a verdade falaria por si só.

No final do século XVIII, continua John H. Langbein, uma diferença radical passou a ser notada no que diz respeito ao objetivo do procedimento criminal, que começou a ser visto como uma oportunidade para a defesa, agora já amplamente permitida, verificar a consistência do caso levado a julgamento. O sistema então se modificou, passando de um modelo em que o acusado falava, para um modelo em que a defesa procurava testar a consistência da acusação, modelo que foi aperfeiçoado e culminou por desobrigar o testemunho do réu.

A luta travada pelos dissidentes ingleses foi transportada para as colônias americanas. Nessas, assim como ocorria na Inglaterra, as invocações do privilégio contra a autoincriminação invariavelmente coincidiram com o movimento dos administradores para reprimir a dissidência política. Leonard W. Levy9 observa que como as colônias aplicavam o direito comum inglês, este acabou se tornando pouco a pouco a lei americana, tendo havido, por consequência, a incorporação do direito à não autoincriminação.

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Variações sobre o direito à não autoincriminação foram incluídas nas Constituições dos estados revolucionários. Posteriormente o direito alcançou status

constitucional, tendo sido incorporado pela Quinta Emenda.

O direito à não autoincriminação consagrado na Constituição americana, todavia, não tinha o mesmo conteúdo do utilizado pelas cortes inglesas. O direito introduzido pela Quinta Emenda referia-se não apenas aos procedimentos criminais iniciais, como ocorria no sistema inglês, mas persistia durante todo o processo.10

Os revolucionários americanos incorporaram o direito à não autoincriminação na Constituição para preservar os atributos essenciais do processo penal contra a influência corrosiva dos procedimentos inquisitoriais, impedindo eventuais restrições em detrimento da liberdade política e religiosa. O direito foi concebido como uma limitação das técnicas de investigação das autoridades. Sentenças proferidas nos primórdios da revolução americana dispunham que o privilégio contra a autoincriminação deveria garantir a proteção do indivíduo, mesmo que isso pudesse limitar a evidência probatória disponível para as autoridades.

A primeira sentença digna de nota ocorreu no julgamento Marbury v. Madison, decisão que foi proferida apenas dez anos após a ratificação do Bill of Rights. A questão colocada em julgamento era saber se o secretário de Estado, Levi Lincoln, poderia ser obrigado a responder a uma determinada pergunta. O secretário recusou-se a responder à pergunta, sob o fundamento que ele não poderia ser compelido a responder sobre algo que pudesse incriminá-lo, posição ratificada pela Suprema Corte.11

Em 1807, no julgamento de traição de Aaron Burr12 (United States v. Burr), as autoridades procuraram obrigar o depoimento de uma testemunha − Mr. Willie, secretário de Burr − que invocou o privilégio. O Tribunal Federal sediado na Virginia,

10 ALSCHULER, Albert W. A peculiar privilege in historical perspective. In: HELMHOLZ, R. H. et al.

The privilege against self-incrimination: its origins and development. Chicago: University of Chicago Press, 1997. p. 190.

11 LEVY, Leonard Williams. Seasoned judgments: the American Constitution, rights, and history. New Brunswick, NJ: Transaction Publishers, 1997. p. 245.

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presidido pelo chefe da Suprema Corte, Justice Marshall, consignou que a máxima de que nenhum homem é obrigado a se autoincriminar constitui exceção à regra de que todas as pessoas são obrigadas a servir de testemunha em um julgamento.

Em Nova York, os magistrados começaram rotineiramente a advertir os réus acerca do direito contra a autoincriminação, a partir de 1835. O número de arguidos que se recusaram a se submeter a interrogatório aumentou depois disso13. Em 1864, o Estado do Maine tornou-se o primeiro a permitir que os réus oferecessem testemunhos juramentados em casos criminais, experiência posteriormente adotada por outros estados.

O direito à não autoincriminação, todavia, raramente era invocado porque, tão logo foi garantido, tornou-se irrelevante para o acusado, devido ao desenvolvimento da disqualification for interest. A disqualification for interest,que perdurou até o início do século XIX, era uma regra existente em processos cíveis e criminais, e aplicável a todas as partes diretamente interessadas no processo, com a finalidade de prevenir o falso testemunho14. A regra impedia o testemunho do réu no próprio processo

quer o testemunho fosse juramentado ou não – em razão de haver um claro interesse dele na obtenção de um julgamento favorável. Evidentemente, impedindo-se o réu de testemunhar, por conimpedindo-sequência também impedindo-se impedia a autoincriminação. Ocorre que, impedindo-se de maneira absoluta o testemunho dos réus, injustiças poderiam ser cometidas, haja vista que havia fatos que eram conhecidos apenas por eles.

As regras de desqualificação foram lentamente abandonadas nos Estados Unidos, possibilitando que o direito à não autoincriminação se tornasse mais debatido na jurisprudência. Até o final do século XIX, o estado da Georgia era o único estado americano a manter a lei que permitia a desqualificação do réu − apenas em 1962 permitiu-se que réus oferecessem testemunho sob juramento.

13 ALSCHULER, Albert W., A peculiar privilege in historical perspective, in The privilege against

self-incrimination: its origins and development, cit., p. 198.

14 SMITH, Henry E. The modern privilege: its nineteenth-century origins. In: HELMHOLZ, R. H. et al.

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Os estatutos que acabaram com a desqualificação de depoimento de réus eram controversos, sendo a controvérsia centrada em questões constitucionais. Sustentava-se que os réus deveriam ter o mesmo direito que as testemunhas para depor sob juramento e que a desqualificação substituía uma presunção de perjúrio pela presunção de inocência. Os opositores argumentavam, no entanto, que os estatutos ameaçavam o privilégio contra a autoincriminação. Eles argumentavam que os jurados iriam ver a recusa do réu em depor como uma confissão de culpa e iriam considerar esse fato independentemente das instruções que receberiam para não fazê-lo.

Na prática, os réus seriam pressionados a fazer o juramento e, assim, estariam sujeitos à compulsão que as Constituições estadual e federal condenavam. Muitos réus, além disso, responderiam falsamente às perguntas e acabariam cometendo perjúrio.

A partir do ano de 1960, várias questões acerca do direito à não autoincriminação foram levados à Suprema Corte. Em Murphy v. Waterfront Comission of New York Harbor (1964)15, a Corte Suprema decidiu que o direito à

não autoincriminação poderia ser invocado para impedir o governo federal de usar uma informação obtida por procuradores estaduais. A questão principal colocada perante a Corte era saber se um estado, tendo dado imunidade a determinada testemunha, poderia compeli-la a responder a determinadas questões que poderiam incriminá-la perante uma corte federal. Tendo estabelecido que os estados estão vinculados pela cláusula de não autoincriminação da Quinta Emenda, o tribunal dispôs que testemunhos autoincriminatórios dados sob coação de um governo (estadual) não podem ser usados por outro (federal). Dessa forma, procuradores federais estão proibidos de utilizar testemunhos obtidos de modo forçado pelo estado.

15 Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/378/52/case.html>. Acesso em: 03 out.

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Em 1965, no julgamento de Griffin v. California16, a Corte Suprema deixou

assente que considerações do juiz ou do Ministério Público sobre a recusa de um réu em depor violavam a Quinta Emenda. Griffin (réu) foi condenado por assassinato em primeiro grau. Ele não testemunhou em seu julgamento. Durante as alegações finais, a acusação se referiu repetidamente à recusa de Griffin em depor, o que indicaria a sua culpa. O juiz instruiu o júri no sentido de que Griffin tinha o direito constitucional de não testemunhar. No entanto, de acordo com a lei da Califórnia, o juiz instruiu o júri no sentido de que ele poderia inferir como verdadeiro qualquer evidência ou fato que Griffin poderia ter esclarecido e se recusara a fazê-lo. A Suprema Corte entendeu que tal procedimento não era constitucional, proibindo que qualquer prejuízo pudesse advir do silêncio do réu.

Um ano depois de Griffin, o tribunal estendeu o direito de permanecer em silêncio para suspeitos sob custódia que prestassem declarações não juramentadas, no julgamento Miranda v. Arizona. A presença ou a ausência de um juramento era relevante à época, pois uma declaração não juramentada feita em resposta a um interrogatório policial poderia ser utilizada contra o suspeito em um tribunal, sendo equivalente, portanto, ao seu testemunho em juízo. O julgamento Miranda v. Arizona constituiu um marco no direito à não autoincriminação, sendo a decisão do tribunal repetida até hoje nos interrogatórios realizados pela polícia:

Você tem o direito de permanecer em silêncio. Tudo o que disser pode e será usado contra você em um tribunal. Você tem o direito a um advogado. Se você não puder pagar um advogado, um lhe será fornecido. Você entende os direitos que acabei de ler para você? Com esses direitos em mente, você gostaria de falar comigo? 17

No Brasil, o direito à não autoincriminação foi incorporado à Constituição apenas em 1988, muito embora já se pudesse inferi-lo de textos anteriores, uma vez que está evidentemente abrangido pelo direito de defesa. O direito à não autoincriminação consta ainda de importantes tratados incorporados pelo direito brasileiro.

16 Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/380/609/case.html>. Acesso em: 03

out. 2014. 17

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Com efeito, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos os documentos incorporados ao direito brasileiro em 1992, contêm disposição acerca do direito à não autoincriminação. O Brasil ainda ratificou, em 2002, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, diploma que também contém menção expressa ao direito à não autoincriminação.

O Código de Processo Penal, editado em 1941 no governo de Getúlio Vargas, muito embora tivesse assegurado ao réu, em seu artigo 186, o direito de não responder às perguntas que lhe fossem feitas, permitia que o silêncio pudesse ser interpretado em seu desfavor. A redação do dispositivo não se coadunava com o texto constitucional, tendo a contrariedade sido corrigida pela Lei n. 10.792/2003, que lhe conferiu nova redação:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Relembre-se, por fim, que a positivação constitucional do direito à não autoincriminação ocorreu no Brasil após um longo período de exceção, como uma reação ao abuso das inquirições coercitivas. Também em decorrência desse abuso ocorrido no regime militar, foi dada ao direito à não autoincriminação uma interpretação muito extensiva, passando a abranger hipóteses que não encontram paralelo no direito comparado, como bem observado por Marcelo Schirmer Albuquerque:18

A pressa em desenvolver um processo penal com ênfase na proteção da liberdade individual levou a doutrina a ignorar algumas de suas funções e a sugerir, com relação à garantia de não autoincriminação, interpretações que carecem de sentido, porque não embasadas em sua finalidade protetiva, e nem sempre encontram respaldo na lógica e na coerência interna do sistema.

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A função do direito à não autoincriminação, entretanto, conquanto fundamental ao direito de defesa e ao processo penal moderno, não tem a finalidade de impossibilitar a persecução penal ou de consagrar uma imunidade corporal descomprometida de qualquer fundamentação racional coerente.19

2.2 Incorporação do direito à não autoincriminação aos tratados

internacionais de direitos humanos

Muitas pessoas, quando se deparam com questões relativas a julgamentos morais, enfrentam duas espécies de indagação20. Uma refere-se à ideia de que há

ações e comportamentos que são corretos e outros que são errados universalmente − há a intuição de que há respostas corretas para as questões morais. A outra diz respeito ao responsável pelo julgamento das outras culturas: quem somos nós para julgar outras culturas? Quem somos nós para aplicarmos os nossos modelos às outras culturas?

Tais questões remetem ao tema do relativismo cultural. O relativismo cultural consiste na ideia de que os sistemas ético-morais, que são encontrados nas diversas culturas, são todos igualmente válidos. Defendem os relativistas a tese de que nenhuma cultura é efetivamente melhor ou pior do que qualquer outra.

Há duas formas de relativismo: o relativismo moral subjetivo e o relativismo moral cultural. O relativismo subjetivo parte do pressuposto de que não há verdades morais universais e que a verdade dos juízos morais variará conforme as opiniões e preferencias individuais.

O relativismo subjetivo sustenta que as verdades morais são preferências muito semelhantes com os nossos gostos pessoais. Ensina que quando se trata de escolhas ético-morais, ou seja, do que se pode considerar certo ou errado, as pessoas devem fazer aquilo que entendam ser o certo sob a sua ótica pessoal. Fácil perceber que tal modalidade de relativismo não obriga a um determinado modelo de

19 ALBUQUERQUE, Marcelo Schirmer, A garantia de não auto-incriminação: extensão e limites, cit., p. 33.

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conduta para todos os indivíduos em situações semelhantes. Quando confrontadas situações éticas idênticas, uma pessoa poderá escolher um caminho, ao passo que outra poderá escolher o caminho oposto. Em suma, não há regras universais de comportamento que sejam aplicadas a todas as pessoas.

A crítica que pode ser feita contra a ética relativista é que tudo pode ser considerado correto. Gustav Radbruch21 observa que

A filosofia do direito relativista é incapaz de determinar, para o indivíduo, a escolha entre as concepções jurídicas de pressupostos últimos e contrários. Ela se limita a apresentar-lhe, de modo exaustivo, as possibilidades de tomada de posição, mas abandona a própria tomada de posição à sua decisão criada nas profundezas da personalidade — portanto, não do seu arbítrio, mas, antes, da sua consciência.

Os relativistas morais culturais também defendem a ideia de que não há verdades morais absolutas, universais. Todavia, aqui a relatividade não está subordinada à vontade individual. A verdade dos juízos morais diz respeito às crenças compartilhadas pelos integrantes de uma determinada cultura. Destarte, o que se entende por moralmente correto irá depender das crenças estabelecidas no seio de uma determinada sociedade.

Os relativistas morais culturais entendem que não existe um padrão definitivo do bem ou do mal e que cada decisão sobre o que é certo e sobre o que é errado será um produto da sociedade, vale dizer, qualquer opinião sobre a moralidade ou ética está subordinada à perspectiva de cada cultura.

O relativismo cultural é uma corrente muito difundida no mundo moderno e normalmente costuma ser associado a temas como pluralismo e tolerância. A sua adoção possibilita a justificação de quase todas as condutas, uma vez que a verdade é relativa, vale dizer, não existe uma posição ética absoluta.

Não há que se confundir relativismo cultural com mera diversidade cultural. A diversidade cultural aponta a existência de diversas culturas, com diferentes códigos

(23)

de comportamento. O relativismo moral, a seu turno, é a corrente que defende que as ações são certas ou erradas de forma relativa e não absoluta.

Opor-se ao relativismo cultural não implica o reconhecimento de que todos os valores são absolutos, mas apenas o entendimento de que há alguns valores que são dotados dessa característica, ou seja, nem todos os valores são relativos à cultura. O que caracteriza, portanto, o relativista quanto à verdade, é que ele considera que essa verdade é sempre relativa, ao passo que os que defendem tese contrária entendem que isso nem sempre acontece.

Não há como negar, entretanto, não obstante as objeções dos relativistas, que há valores que são compartilhados pelos diversos povos do planeta. Marcel Conche22 demonstrou que a moral é universal − não se baseia nem na religião e tampouco na metafísica −, desde que entendamos por moral a teoria das obrigações incondicionais do homem em relação ao próprio homem, na medida que todos os homens nascem livres e iguais em direito. Para reforçar o seu argumento, pondera que algumas condutas – assassinar, torturar, caluniar − não são permitidas em nenhum lugar do planeta. Vale a pena transcrever a sua preciosa lição:

Se eu fundamentar minha moral em minha religião, vocês contestarão minha religião em nome de uma outra religião ou da irreligião (se forem agnósticos ou ateus), e minha moral não passará de uma moral como as outras, de uma moral entre outras, uma moral particular. Só poderei dizer: esta é minha moral, vocês têm a sua, e eu a minha. Se eu fundamentar minha moral em minha filosofia, vocês contestarão minha filosofia em nome de uma outra filosofia ou da não-filosofia, e minha moral não passará de uma moral entre outras, sem nenhum direito de se impor. Se vocês contestarem a necessidade de fundamentar a moral, porque todos já dispõem de uma, acreditarei decerto que minha moral é a melhor, mas vocês acharão o mesmo da moral de vocês. Todas as morais terão igual direito de julgar o que é bom e o que não é. Então os assassinos de Buchenwald, Dachau, Auschwitz, etc. estarão com a faca e o queijo na mão. Terem sido vencidos por uma força superior, mas da qual não será possível dizer que estava, mais do que qualquer outra, a serviço da verdade moral, terem sido vencidos, repito, será seu único erro.

Caso contrário, deve-se, em primeiro lugar, fundamentar a moral; em seguida, deve-se fundamentá-la não no particular – e uma religião ou uma filosofia sempre são particulares, porque existem outras –, mas no universal. O universal é o que deixa de lado todas as particularidades. Deixar de lado o que nos separa ou nos distingue é o que é feito no diálogo, quando se escuta. Eu falo, você escuta; você fala, eu escuto. Operamos ambos a redução dialógica, colocando de lado nossas crenças, nossas

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opiniões, nossas tradições, nossas particularidades de todos os tipos para estarmos exclusivamente atentos ao verdadeiro e ao falso. Realizamos o universal vivo por nossa operação recíproca. O que acontece então? Cada qual pressupõe que o outro pode apreender a verdade que é a sua verdade, mesmo que para cada um deles esta seja apenas a do outro. Ou: cada qual, simplesmente para poder dirigir-se ao outro, falar-lhe, pressupõe o outro como capaz de verdade. Por esse motivo, cada qual pressupõe o outro como seu igual. A partir do momento em que os desiguais dos regimes baseados em privilégios se dirigissem um ao outro de uma maneira que não fosse para julgar, louvar ou criticar, ou comandar sem réplica, colocariam em perigo, pelo simples fato de serem dois seres humanos falando um com o outro apenas para dizer o verdadeiro e o falso, o próprio sistema que os estabelecia como desiguais. É por esse motivo que privilegiados e não privilegiados não dialogavam e muitas vezes não se falavam. Ora, dessa igualdade de todos os homens, implicada no simples fato de se poder travar uma conversa de fato, extrai-se toda a moral – aquela que, diferentemente das morais coletivas particulares, é a mesma para todos e contém todos os direitos e deveres universais do homem. A moral baseia-se não nesta ou naquela crença, religião ou sistema, mas neste absoluto que é a relação do homem com o homem no diálogo.

Esses ideais compartilhados no diálogo foram traduzidos no reconhecimento dos direitos constantes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pelas Nações Unidas em 194823. Redigida sob o impacto das atrocidades cometidas durante a 2ª Guerra Mundial, foi aprovada por unanimidade, embora com a abstenção de países comunistas, Arábia Saudita e África do Sul, o que comprova a aceitação dos valores consignados no referido documento. De fato, a assinatura da Declaração importa no reconhecimento de diversos valores, entre eles os valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens, como ficou expresso em seu artigo 1.

O relativismo cultural, como visto, é incompatível com a noção de direitos humanos universais. O relativista moral deve ponderar que tais tratados não exprimem princípios éticos universais e que a violação dos direitos neles constantes é possível, desde que assim determine uma cultura específica. Vale dizer, se determinada cultura considera correta a discriminação dos indivíduos com base em critérios referentes ao sexo, o relativista deve aceitar que nessa cultura é acertada tal discriminação, sendo que a Declaração apenas se limita a expressar uma posição diferente.

23 Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001394/139423por.pdf>. Acesso em: 12

(25)

Todavia há que se considerar que, com o processo de globalização e a consequente criação de vínculos e espaços sociais transnacionais, houve a aproximação das diversas culturas e a adoção de padrões universais. A globalização, que foi instrumentalizada por meio da criação de organismos supraestatais e pela assinatura de múltiplos tratados, entre eles os já citados tratados de direitos humanos, teve o efeito de compartilhar os mesmos valores entre todos os povos. A aproximação das culturas que decorreu desse processo trouxe como consequência uma uniformidade do modo de vida e de pensar dos mais variados povos, uniformidade essa que acabou por reduzir a força dos argumentos relativistas, pois não há que se falar em diversidade de conduta relativamente ao mesmo grupo cultural.

Assim, não obstante as objeções dos relativistas, não há como desprezar a universalidade dos valores consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma vez que tais valores foram incorporados pelas mais variadas culturas.

André Ramos Tavares aduz que a tese dos direitos humanos universais poderia denotar a tentativa de imposição dos valores culturais do Ocidente em detrimento de uma concepção oriental, fato que muito dificultou a sua ampla adoção24. Não se trata, todavia, da imposição dos valores culturais de determinados

países, mas de uma aceitação espontânea e fundamentada na racionalidade e soberania, processo que culmina com a elaboração de leis inspiradas nos mencionados direitos.25

Vale a pena relembrar que os tratados de direitos humanos necessitam ser internalizados para que produzam os efeitos previstos em seus textos.

24 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 520.

25 Apontando a diferença conceitual existente, Thiago Matsushita indaga acerca da dignidade da

pessoa humana a ser implementada de forma universal, aquela reconhecida no Ocidente como a garantidora dos direitos humanos, aqueles direitos humanos reconhecidos e aplicados pelos países detentores do capital econômico mundial, ou os direitos humanos reconhecidos e preservados pela ONU (MATSUSHITA, Thiago Lopes. O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto

. 2012. T (D u D ) − P í U v C ó Sã

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Anteriormente ao advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, havia duas correntes no que diz respeito à hierarquia dos tratados internacionais incorporados ao direito nacional. Alguns doutrinadores26 entendiam que os tratados internacionais possuíam hierarquia superior à das leis ordinárias internas. Flávia Piovesan27 defendia tese ainda mais radical, asseverando que os direitos previstos em tratados internacionais, relativos a direitos humanos, ratificados pelo Brasil, tinham hierarquia de norma constitucional e deviam ser aplicados imediatamente, não estando sujeitos, por conseguinte, ao procedimento rotineiro de incorporação dos tratados internacionais.

O Supremo Tribunal Federal28, todavia, entendia que o tratado internacional, quando de sua incorporação, tinha a mesma hierarquia da lei ordinária, podendo, inclusive, ser por ela revogado, se promulgada em momento posterior.

Com o advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, tentou-se sedimentar a disputa entre essas correntes, como preleciona André Ramos Tavares29. E assim o

fez ao dispor que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Embora não tenha a Emenda deixado expressamente consignada a hierarquia constitucional automática dos tratados, mostrou o caminho a ser percorrido para tanto.

Por fim, e na esteira das lições de Amartya Sen30, deve-se ponderar que os direitos humanos não têm apenas a função de servir de base para novas legislações:

26 Hildebrando Accioly e Haroldo Valladão, entre outros.

27 PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 36-37. 28

ST − . 80.004/S . . X v buqu qu .

29 TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 560.

(27)

As vias e maneiras de defender a ética dos direitos humanos não precisam se restringir à elaboração de novas leis (embora muitas vezes a legislação possa se mostrar o caminho correto para se proceder); por exemplo, o monitoramento social e outras formas de apoio ativista oferecidas por organizações como o Human Rights Watch, a Anistia Internacional, a OXFAM, os Médicos sem Fronteiras, Save the Children, a Cruz Vermelha e a Action Aid (citando tipos muito variados de ONGS), podem contribuir para ampliar o alcance dos direitos humanos reconhecidos.

Em determinados contextos, assim, pode não haver nenhum envolvimento da legislação31, mesmo porque não se mostra adequado, em todas as hipóteses, a

incorporação do direito.32

2.3 Direito à não autoincriminação. Elementos caracterizadores

O direito à não autoincriminação, objeto do nosso estudo, é um desses valores compartilhados pelos diversos povos, direito expresso em vários tratados de direitos humanos e em várias Constituições modernas.

A Constituição brasileira, em seu artigo 5º, inciso LXIII, afirma o direito à não incriminação nos seguintes termos: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”

Eugênio Pacelli de Oliveira33 afirma que o direito à não autoincriminação foi o responsável pela destruição de um dos antigos pilares do processo penal antigo, o dogma da verdade real, e permite que o acusado permaneça em silêncio durante todo processo, além de impedir que seja compelido a produzir ou a contribuir com a prova contrária ao seu interesse. Esclarece ainda que a participação do réu somente poderá ocorrer em casos excepcionais, expressamente previstos em lei e desde que não haja risco de afetação dos seus direitos fundamentais.

31 Thiago Matsushita, com pensamento semelhante, anota que que não é necessário que haja a sua

positivação para que eles sejam exercíveis (MATSUSHITA, Thiago Lopes, O jus-humanismo normativo: expressão do princípio absoluto da proporcionalidade, cit., p. 120).

32 Amartya Sen dá o seguinte exemplo: pode ser muito grande a importância ética do direito dos

gagos de não serem ridicularizados ou menosprezados em reuniões públicas, direito esse que exige proteção, mas é improvável que seja um bom objeto para leis punitivas, e assim seria melhor buscar a proteção a esse direito em outras fontes, como por meio da educação, debate público etc. (SEN, Amartya, A ideia de justiça, cit., p. 400).

(28)

O direito à não autoincriminação, esclarece Maria Elizabeth Queijo34, tem a

finalidade de proteger o indivíduo contra os excessos cometidos pelo Estado na persecução penal, incluindo-se o resguardo contra coação e violência física e moral utilizadas para constrangê-lo a cooperar na instrução probatória.

Carlos Henrique Borlido Haddad 35 aduz que o direito contra a autoincriminação “protege a liberdade de decisão e o resultado desse decidir, que se traduz na opção em realizar ou não uma conduta ativa de cunho probatório, sem que a inércia do acusado importe em assunção de culpa”, ou seja, configura um direito de não colaboração do acusado com as autoridades perseguidoras. É possível, assim, “agrupar as ações sob duas perspectivas: o acusado possui liberdade em suas declarações e dele não se pode exigir a colaboração na produção de prova de caráter incriminatório”.

Pode-se ainda encontrar os elementos definidores do direito em diversos tratados internacionais. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 8, 2, “g”, ao regular as garantias judiciais, assevera que toda a pessoa acusada tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos36, de forma similar

prevê, em seu artigo 14, 3, “g”, que toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

34 QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio nemo

tenetur se detegere e suas decorrências no processo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 77. 35 HADDAD, Carlos Henrique Borlido. Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação.

T (D u D ) − u D U v G B

Horizonte, 2003. p. 299-300.

36 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de Julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre

(29)

A Constituição norte-americana, a seu turno, estatui em sua Quinta Emenda37

que ninguém poderá ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem38 não contém disposição

expressa consagrando o direito à não autoincriminação. Todavia, apesar de não expressamente mencionado no seu artigo 6º, há a previsão de um julgamento justo e equitativo, tendo a Corte Europeia de Direitos Humanos incorporado ao conceito de julgamento equitativo o direito de que um indivíduo não deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Do exposto, podemos apontar as principais características do direito à não autoincriminação: 1) permitir que o acusado permaneça em silêncio durante todo o processo; 2) impedir que o indivíduo seja compelido a produzir prova contrária ao seu interesse; 3) resguardar o indivíduo contra coação e violência física ou moral para constrangê-lo a cooperar na instrução probatória; 4) impedir que a sua inação seja de qualquer forma utilizada em seu desfavor; e 5) transferir à acusação o ônus da prova.

2.4 O direito à não autoincriminação na jurisprudência do Supremo

Tribunal Federal

O direito à não autoincriminação é, nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, um direito público subjetivo39, garantido pelo artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal40 e pelo Pacto de São José da Costa Rica41, que pode ser

37

“Emenda V - Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada

para uso público, sem justa indenização.” (Disponível em:

<http://www.braziliantranslated.com/euacon01.html>. Acesso em: 16 set. 2014).

38 Disponível em: <http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em: 12 dez.

2014. 39

ST − HC . 79.812/SP . . C ST − HC . 79.589/D . Min. Octavio Gallotti;

ST − HC . 68.929/SP . . C ST − HC . 73.035/D . . C V lloso. 40

ST − HC . 102.556/DF, rel. . u ST − HC . 79.244/D . Min. Sepúlveda Pertence.

41

(30)

invocado não apenas pelos presos, conforme consta do artigo 5º da Constituição Federal, mas também pelos acusados, investigados, indiciados e suspeitos42 as

testemunhas, inclusive as convocadas para depor em Comissões Parlamentares de Inquérito, podem invocá-lo, desde que as perguntas que lhes forem formuladas tenham possibilidade de incriminá-las, caso contrário prevalece a obrigação legal de colaborar com a Justiça43. Alguns julgados estendem a qualquer pessoa a proteção do direito à não autoincriminação, nos termos, diga-se, do que consta do texto do Pacto de São José da Costa Rica44. É um direito que deve ser invocado pela própria pessoa que sofreu a violação45, geralmente não aproveitando a terceiros, oponível a todos os agentes estatais, independentemente do procedimento adotado (penal ou administrativo)46 e a qualquer momento (fase inquisitorial e processual), não sendo necessário qualquer provimento judicial para tanto.47

O direito à não incriminação é gênero do qual o direito ao silêncio é uma de suas manifestações. Ele não se restringe, assim, à faculdade de o investigado manter-se em silêncio, mas abrange várias outras hipóteses que têm como objetivo transferir às autoridades policiais e judiciárias a responsabilidade de comprovar os fatos delituosos, vale dizer, estes devem ser comprovados independentemente da colaboração do investigado ou réu. Em outros termos, o investigado ou réu têm o direito de permanecer inertes, não apenas no que se refere ao silêncio, mas também no que diz respeito à produção de quaisquer outras espécies de provas; a comprovação de sua culpabilidade deve ser feita sem a sua ativa participação, ou seja, eles não podem ser forçados a produzir provas contra si mesmos.

42

ST − HC . 93.916/PA, rel. Min. Cármen Lúcia; ST − HC . 69.026/DF, rel. Min. Celso de Mello;

ST − HC . 77.135/SP, rel. Min. Ilmar Galvão; ST − HC . 102.019/PB, rel. Min. Ricardo Lewandowski.

43

ST − HC . 73.035/DF, rel. . C V ST − HC . 94.016/SP . . C ST − g . 435.266/SP . . S ú v P tence; ST − HC . 100.200/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa.

44 Pacto de San José da Costa Rica: rtigo 8 - Garantias judiciais [...] 2. [...] Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada ” (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2014); ST − HC n. 94.016/SP, rel. Min. Celso de Mello.

45

ST − HC . 80.949/RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence. 46

ST − HC . 94.016/SP . . C ST − HC . 79.812/SP . Min. Celso de Mello;

ST − HC n. 80.584/PA, rel. Min. Néri da Silveira.

(31)

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal endossou o mencionado entendimento. De fato, decidiu a Corte Suprema que:

O direito constitucional de conservar-se em silêncio é consectário lógico do princípio da não autoincriminação, o qual outorga ao preso e ao acusado em geral o direito de não realizar prova contra si mesmo48 e que as garantias constitucionais contra a autoincriminação têm sua manifestação mais eloquente no direito ao silêncio dos acusados.49

2.5 Natureza jurídica

A Constituição Federal de 1988 regulou os direitos e garantias fundamentais em cinco capítulos diferentes − artigos 5º a 17 − com a finalidade de viabilizar a sua plena inserção no nosso ordenamento jurídico máximo. Os referidos direitos foram organizados em direitos e garantias individuais (Capítulo I), direitos sociais (Capítulo II), direitos de nacionalidade (Capítulo III), direitos políticos (Capítulo IV) e direitos dos partidos políticos (Capítulo V).

Costuma-se diferenciar os direitos das garantias fundamentais. As garantias consistem no direito dos cidadãos de exigirem dos poderes públicos a proteção de seus direitos, é dizer, as garantias fundamentais são estabelecidas na Constituição da República para funcionarem como um eficaz manto protetivo dos direitos fundamentais. Jorge Miranda, acerca dessa diferença, leciona:

Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens, os direitos são principais, as garantias são acessórias e, muitas delas, adjectivas (ainda que possam ser objecto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.50

Dito de outro modo, os direitos fundamentais têm caráter declaratório, enquanto as garantias são instrumentos assecuratórios. De certo modo, podemos afirmar que as garantias são especificações, detalhamentos dos direitos declarados

48

ST − HC . 99.558/ S . Min. Gilmar Mendes. 49

ST − HC . 79.244/D . Min. Sepúlveda Pertence.

(32)

e lhes conferem aspectos práticos de aplicação. Em resumo, os direitos representam por si só certos bens, sendo que as garantias destinam-se a assegurar o gozo de tais bens; os direitos são principais, ao passo que as garantias acessórias.

José Afonso da Silva51 entende que não são nítidas as diferenças entre direitos e garantias. O autor assevera que não é decisivo em face da Constituição “afirmar que os direitos são declaratórios e as garantias assecuratórias, pois as garantias são em certa medida declaradas e, às vezes, se declaram direitos usando forma assecuratória”.

André Ramos Tavares52 nos dá o seguinte exemplo, acerca da ação popular, para corroborar a posição de José Afonso da Silva:

Para tanto, tome-se como paradigma o instituto da ação popular. Como se sabe, tradicionalmente é ele encarado como remédio constitucional, e, nesse sentido, trata-se de uma garantia, de uma posição eminentemente assecuratória. Mas não se pode negar que o exercício da ação popular é, considerado em si mesmo, o exercício de um direito de índole política. Assim, neste último sentido, o Texto Constitucional consagra um direito de participação política, declarando-o exercitável através da ação popular. E, mais ainda, os direitos que a ação popular tutela vêm consagrados no mesmo dispositivo que a prevê como ação assecuratória.

De qualquer sorte, com as ressalvas acima apontadas, entendem alguns autores que o direito à não autoincriminação consistiria em uma garantia fundamental. Nesse sentido, Marcelo Schirmer Albuquerque53 aduz que não há uma valoração positiva nos atos de se omitir e se calar, mas apenas tais ações são asseguradas, pois revelam-se aptas para a proteção a direitos. Prossegue afirmando que “Nascida para resguardar o sujeito contra violações à sua incolumidade física e moral ou às suas liberdade e dignidade, evidente que a garantia de não autoincriminação não existe a não ser para a proteção dos direitos fundamentais, ou seja, em função deles.”

51 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 189.

52 TAVARES, André Ramos, Curso de direito constitucional, cit., p. 898.

(33)

Não obstante os bons argumentos apresentados no sentido de se considerar a cláusula nemo tenetur se detegere como garantia e não como direito fundamental, entendemos que ela não possui um caráter meramente instrumental e pode ser invocada isoladamente, mesmo na ausência de qualquer processo que teria a função de garantir.

Com pensamento semelhante, Carlos Henrique Borlido Haddad54 assevera que ao:

[...] permanecer em silêncio, faz o acusado uso de um direito, que não se confunde com sua garantia. O silêncio é mero mecanismo de manifestação do princípio contra a autoincriminação e, não, a proteção criada para propiciar o respeito ao princípio. O papel de garantia é desempenhado pelo

habeas corpus, como se viu no capítulo anterior, pois o writ é manejável quando aquele que invoca o silêncio fica impedido de exercitá-lo. Servirá o

habeas corpus para assegurar ao réu, perante as autoridades encarregadas da persecução penal, o direito de permanecer calado.

A controvérsia acerca da natureza do referido direito também foi observada recentemente nos Estados Unidos. Após os incidentes ocorridos no dia 11 de setembro, além da diminuição que se verificou em alguns dos direitos dos cidadãos e consequente aumento dos poderes do Estado, houve também uma mudança no foco da investigação criminal. O objetivo do Estado passou a ser impedir o mal antes que ele ocorra. O Estado não mais deve se satisfazer com a punição dos responsáveis pelos crimes, mas deve buscar primordialmente impedi-los, haja vista as irreparáveis perdas advindas de determinados atos criminosos.

Na esteira dessa linha de pensamento, chamou a atenção da comunidade jurídica americana a decisão da Suprema Corte no julgamento Chavez v. Martinez (27.05.2003). Conquanto não se tratasse de um processo criminal, mas cível, a decisão possibilitou um maior entendimento acerca do pensamento dos membros daquela corte a respeito do significado e extensão do direito à não autoincriminação.

Martinez foi submetido a um interrogatório que, se não pode ser considerado como obtido mediante métodos de tortura, permaneceu em seus limites. Os fatos do

(34)

caso são incontroversos, pois os momentos relevantes do interrogatório foram gravados. Martinez foi baleado por um policial após ter entrado em luta corporal com ele e tomado a sua arma. Ao chegar ao hospital, Martinez foi interrogado por outro policial, de nome Chavez. A gravidade das lesões sugeria que Martinez não iria sobreviver. Não foram lidos os denominados Miranda’s rights. Além disso, Chavez deu a entender a Martinez que só permitiria o seu atendimento médico se respondesse às suas perguntas. Diante desse quadro, Martinez acabou respondendo aos questionamentos de Chavez, muito embora tenha repetidamente afirmado que não sabia de nada e que não falaria mais uma palavra, até ser tratado.

Antes de prosseguirmos, uma explicação se faz necessária. Não obstante Martinez tenha admitido em seu interrogatório ter brigado com um policial, tomado a sua arma e a apontado para ele, as suas declarações nunca foram levadas a juízo, ou seja, ele não foi acusado por crime algum. Vale dizer, as suas declarações autoincriminatórias não foram usadas contra ele em um processo criminal.

Martinez acabou processando o policial Chavez, em virtude de o interrogatório ter sido conduzido sem a observância dos ditames legais. Impende ressaltar que a lei garante aos policias uma relativa imunidade, a não ser que suas condutas violem direitos constitucionais.

(35)

Três membros da Suprema Corte55 entenderam que o privilégio teria sido

violado pelo uso da tortura ou método equivalente, muito embora os frutos do interrogatório não tenham sido utilizados contra Martinez.

Alan M. Dershowitz56 observa que nenhum dos membros da Suprema Corte aceitou o ponto de vista de que o mero uso da coação já constituiria, por si só, violação do privilégio contra a autoincriminação.

Entendeu assim a Suprema Corte que o privilégio contra a autoincriminação não protege o indivíduo contra a realização de interrogatórios forçados, mas tão somente impede que suas declarações sejam utilizadas como evidência em um processo criminal contra ele instaurado. Ausente tal utilização em juízo, não haveria a violação do privilégio, não importa o grau de coerção.

O caso foi remetido à instância inferior, para se determinar se o pedido de perdas e danos feito por Martinez, conquanto não fosse uma violação ao privilégio da autoincriminação, poderia constituir ofensa ao princípio do devido processo legal.

Dito de outro modo, ao que parece, a Suprema Corte dos Estados Unidos asseverou que, tendo por fundamento o privilégio à não autoincriminação, não existe efetivamente um direito ao silêncio, há apenas o direito processual de que as declarações obtidas não sejam utilizadas contra o declarante em um processo criminal.

É evidente que os agentes que fizerem uso de métodos de tortura ou abusarem do direito que lhes foi conferido pela legislação devem responder por seus atos. Ocorre que, independentemente dessas punições, entendemos que o próprio direito à não autoincriminação é garantido por nossa Constituição de forma autônoma, e não somente como instrumento para a garantia de outros direitos fundamentais, ou seja, ele é assegurado, mesmo que nenhuma informação seja eventualmente utilizada em futuro processo penal. Em suma, mesmo na ausência de eventual procedimento que em tese seria garantido, o direito existe e pode ser invocado.

55 Justices Stevens, Kennedy e Ginsburg.

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