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Utilização do corpo como objeto de prova Possibilidade

A aplicação do nemo tenetur se detegere harmoniza-se com o modelo processual acusatório que impõe à acusação o ônus probatório “Logo, não pode o acusado ser compelido a prestar colaboração à formação do material probatório, até mesmo porque, há muito foi superada a postura de considerá-lo como simples objeto de prova. É ele verdadeiro sujeito processual.”167

O réu não pode ser, em nenhuma hipótese, considerado objeto de prova? Imaginemos a seguinte situação: uma jovem é estuprada saindo de seu trabalho. Ela não pôde ver com clareza o rosto do agressor, mas conseguiu descrever para a polícia as suas características, como altura, cor da pele, tipo de cabelo, as roupas que ele estava usando, bem como pôde observar uma determinada tatuagem localizada na sua virilha. A autoridade policial efetua a prisão de um indivíduo com as características relatadas pela vítima e solicita a ele que retire as suas roupas para constatar a presença ou não da tatuagem. Pode o indivíduo se recusar, sob o argumento que tal prova fere o seu direito à não autoincriminação?

Em 2009, como visto, foi publicada a Lei n. 12.037, que dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado, regulando o artigo 5º, inciso LVIII, da Constituição Federal168. A nova lei, publicada em substituição à Lei n. 10.054/2000,

que vinha recebendo inúmeras críticas, em virtude de alguns de seus dispositivos, teve a finalidade de adequar os critérios da identificação criminal ao texto constitucional, que assegura ao civilmente identificado a desnecessidade de ser submetido a um constrangimento adicional, que é a identificação criminal nas modalidades de identificação fotográfica e datiloscópica. Imaginemos agora que haja dúvidas acerca da identidade de determinado indivíduo. Além disso, foram encontradas impressões digitais na cena do crime. Pode a autoridade policial determinar que seja realizado o exame datiloscópico? E se o investigado se recusar,

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STJ − g . 1.205.216 . Min. Maria Thereza de Assis Moura. 168

“Artigo 5º - A identificação criminal incluirá o processo datiloscópico e o fotográfico, que serão juntados aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação.”

pode ser compelido a realizá-lo? Cumpre ressaltar que o artigo 4º da referida Lei nada dispõe acerca da compulsoriedade, mas apenas afirma que “quando houver necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado”.

O mesmo ocorre no que concerne às fotografias. Pode o réu cobrir o rosto com as mãos e impedir que sejam tiradas as suas fotos?

Voltemos ainda ao exemplo referente ao auto de reconhecimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, que determina que quando houver necessidade de se fazer o reconhecimento de pessoa, ela será colocada, se possível, ao lado de outras que com ele tiverem qualquer semelhança. Pode o investigado se recuar a participar de tal diligência, sob o pretexto da proibição de autoincriminação?

Todas essas hipóteses têm algo em comum: o corpo do indivíduo está sendo utilizado como objeto de prova.

Assim, a afirmação de que não pode o acusado ser compelido a prestar colaboração à formação do material probatório deve ser vista com cautela, pois o réu – o seu corpo − é obrigado a suportar diversas providências levadas a efeito pelas autoridades policiais para a elucidação do crime, como, por exemplo, cessão de impressões digitais, fotografias, inspeções corporais etc. Se essa afirmação for levada ao extremo, isto é, se não se puder compeli-lo a colaborar passivamente com a investigação, sequer a obtenção de suas fotos seria permitida.169

169 Nesse sentido, vale a pena transcrever excerto do voto vencido proferido pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, no julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566/DF: “ evada ao extremo, a garantia de não produzir prova contra si poderia ser oposta à própria identificação criminal (inclusive nas hipóteses previstas pela lei), ao ato de reconhecimento de pessoas (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 346), à acareação entre o réu e quem quer que seja, às revistas quando houvesse fundada suspeita (pense-se na suspeita de crime de tráfico internacional de drogas e a tradicional revista empreendida nos aeroportos – TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 3. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 229), e assim por diante, até que a racionalidade do sistema processual penal ou sua própria operacionalidade se vissem totalmente comprometidos. Neste ponto estaria cristalizado um verdadeiro direito a delinquir.”

Tomemos outro exemplo muito corriqueiro nos aeroportos, o do indivíduo que transporta drogas em cápsulas ocultas no interior do seu corpo. Pode o indivíduo recusar-se a realizar o exame de raios X que comprovaria a ingestão da droga?

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus n. 149.146, já se manifestou sobre o tema e decidiu que o direito à não autoincriminação não veda a realização de exame de raios X em indivíduos que assumiram a ingestão de droga.170

Carlos Henrique Borlido Haddad171, com entendimento semelhante, assevera que o direito à não autoincriminação não possui a extensão defendida por Costa Andrade172, segundo o qual o acusado não pode funcionar como instrumento de sua condenação:

O princípio nemo tenetur se detegere não evita a produção de todas as provas que dependam da intervenção do acusado, senão somente aquelas que exigem uma participação ativa voluntária. Caso contrário, a interceptação telefônica, realizada sem conhecimento do réu, a busca e apreensão de documentos confeccionados pelo acusado, efetuadas contra sua vontade, e até os elementos probatórios obtidos em decorrência da prisão temporária deveriam ser alijados do processo penal, uma vez que se utilizou o imputado, direta ou indiretamente, como instrumento de sua condenação. Pressupor que nenhuma condenação possa ter o acusado por instrumento é conferir-lhe plena soberania sobre a produção e a utilização das provas, autorizando-o a excluir aquelas que a ele se relacionem.

Podemos concluir do exposto que o direito à não autoincriminação não impede a utilização do corpo do indivíduo como objeto de prova.

O estudo realizado no direito comparado demonstra que os países, de forma geral, embora contenham disposições legais semelhantes ao nosso, no que diz respeito ao direito à não autoincriminação, permitem que amostras biológicas sejam

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“[...] ademais, é sabido que a ingestão de cápsulas de cocaína causa risco de morte, motivo pelo qual a constatação do transporte da droga no organismo humano, com o posterior procedimento apto a expeli-la, traduz em verdadeira intervenção estatal em favor da integridade física e, mais ainda, da vida, bens jurídicos estes largamente tutelados pelo ordenamento. 4. Mesmo não fossem realizadas as radiografias abdominais, o próprio organismo, se o pior não ocorresse, expeliria naturalmente as cápsulas ingeridas, de forma a permitir a comprovação da ocorrência do crime de tráfico de entorpecentes.” (STJ − HC . 149.146 . . Og ).

171 HADDAD, Carlos Henrique Borlido, Conteúdo e contornos do princípio contra a auto-incriminação, cit., p. 67.

172 ANDRADE, Manoel da Costa. Sobre as proibições da prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992. p. 127.

retiradas dos indivíduos suspeitos ou acusados do cometimento de determinados crimes. Há, inclusive, autorização para que tais amostras sejam recolhidas independentemente a vontade do indivíduo, por meio de procedimentos coativos.

Um requisito mostrou-se fundamental na análise: a presença de uma legislação que discipline o procedimento de forma minuciosa. Margarete Vetis Zaganelli173 assinala que a regulamentação deve observar, ao menos, os seguintes requisitos: proteção no maior grau possível da liberdade do acusado; não deve ser autorizada a medida de intervenção que resultar em perigo à saúde mental ou física do acusado; não deve ser autorizada a medida de intervenção que atentar contra a dignidade do acusado; e, por fim, a medida deve ser necessária para a investigação.

O Acórdão n. 155 do Tribunal Constitucional português, ao analisar a legislação que autorizava a realização coativa de uma intervenção corporal – conjugação dos preceitos constantes dos artigos 6º da Lei n. 45/2004, de 19 de agosto, e 172º do Código de Processo Penal – asseverou que não basta a exigência de lei, mas ela deve ter um grau de densidade normativa tal que possibilite a sua fiel execução.

Do mesmo modo, a Corte Constitucional da Espanha, na STC 207/1996, estabeleceu os requisitos das medidas restritivas de direitos fundamentais, entre eles, o de que estivessem previstas em lei. Além da previsão legal, determinou que a medida fosse adotada mediante decisão judicial especificamente motivada e que fosse idônea, necessária e proporcional, em relação a um fim constitucionalmente legítimo.

A Corte Constitucional italiana, a princípio, com fundamento no artigo 146 do Código de Processo Penal – autorização genérica para a realização das medidas, pois não havia limitações aos poderes instrutórios do juiz − entendia que o juiz em sua atividade jurisdicional poderia determinar a extração coercitiva de amostras sanguíneas, o que ficou consignado na Sentença n. 54, de 1986. Adotou-se o

173 ZAGANELLI, Margareth Vetis. Intervenções corporais, processo penal e direitos fundamentais. In: LIMA, Marcellus Polastri; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna (Coords.). A renovação processual

penal após a constituição de 1988: estudos em homenagem ao professor José Barcelos de Souza.

entendimento de que a decisão que possibilita a realização de exames periciais sem o consentimento do indivíduo teria a natureza de provimento restritivo de liberdade pessoal174. Posteriormente, todavia, a Corte italiana adotou novo entendimento, que foi exarado na Sentença n. 238, de 1996. Nesta restou assente a necessidade de regulamentação legislativa para a realização de medidas de intervenção corporal. Observe-se que não foi vedada a intervenção corporal coercitiva, apenas definiu-se a necessidade de lei específica para a sua efetivação. Em 2008, foi alterado o artigo 224 do Código Processual, que passou a prever a realização de medidas de intervenção corporal coercitivas. O artigo, em resumo, aponta os seguintes requisitos para a concretização da medida: o crime investigado deve ser doloso; a medida deve ser informada ao indivíduo e ao seu advogado ao menos com três dias de antecedência; a medida deve ser imprescindível para a comprovação do fato; o juiz deve fundamentar a decisão; devem ser escolhidas as técnicas menos invasivas; e deve ser respeitada a dignidade do indivíduo, entre outros requisitos.

Não há entre nós legislação que autorize as intervenções corporais. A Lei n. 12.654/2012, que possibilita a identificação criminal por meio da coleta de material biológico, é muito tímida e não abrange todas as situações possíveis, além de não ter sido submetida ao crivo do Supremo Tribunal Federal.

Os Tribunais Superiores pátrios, dado o atual estágio da jurisprudência, já sinalizaram que tal legislação, mesmo que existente, seria considerada inconstitucional, a exemplo do que ocorreu com o exame do etilômetro. Observe-se que as decisões, ao contrário daquelas proferidas pelos Tribunais Constitucionais espanhol, italiano e português, não ponderaram acerca da ausência de lei que possibilitasse a execução da a medida, mas simplesmente entenderam inadmissível, em quaisquer hipóteses, de maneira absoluta, que alguém seja coativamente obrigado a realizar qualquer tipo de exame, mesmo que de forma passiva.

O julgamento do Recurso Especial n. 1.111.566/DF, no qual o Superior Tribunal de Justiça houve por bem firmar a tese de que só o teste do etilômetro ou o exame de sangue para verificação de dosagem alcoólica seriam aptos para a comprovação do crime de embriaguez ao volante, bem demonstra a não aceitação

das medidas de intervenção corporal adotadas na legislação estrangeira. Observe- se que na hipótese havia lei determinando a medida, embora sem menção ao procedimento em caso de recusa.

No referido julgamento, várias teses foram apresentadas sobre o princípio da não autoincriminação, prevalecendo o entendimento que reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com o exame de sangue, em respeito ao princípio do nemo tenetur se detegere.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende protegidas pelo direito à não autoincriminação condutas não verbais do acusado que importem em uma atividade, como, por exemplo, o fornecimento de padrões gráficos, mas ainda não se manifestou quanto às provas relacionadas ao réu de cuja produção não dependa a sua participação ativa, mas somente uma conduta passiva (simples tolerar), como ocorrem nas extrações compulsórias de sangue e DNA.

Embora a nossa corte maior ainda não tenha se manifestado a respeito, como dito, da validade da prova de DNA obtida coercitivamente em uma investigação criminal, em processos cíveis (investigação de paternidade), o entendimento da Corte Constitucional é no sentido de repudiar a realização coativa das intervenções. Nessas hipóteses, entretanto, a negativa pode ser valorada pelo juiz e poderá importar no julgamento em desfavor do indivíduo que se negou a realizar o exame, situação que não tem paralelo no direito penal, em razão da impossibilidade de adoção de tal espécie de presunção.

Infelizmente, o que se observa da leitura da jurisprudência é uma abordagem superficial da questão, o que fatalmente acaba por desembocar na constante repetição da frase de que a medida em análise afronta o direito à não autoincriminação, sem contudo esclarecer, como faz a jurisprudência estrangeira, os limites do mencionado direito. Em que grau o direito é afetado? Há necessidade de lei? A impossibilidade é absoluta? Se o corpo não pode ser objeto de prova, como justificar as demais modalidades de cooperação passiva, como o reconhecimento de pessoas e as buscas e inspeções corporais (que são admitidas)?

Enquanto as respostas não são dadas de maneira satisfatória, vemos a hipertrofia do direito à não autoincriminação levar a um menosprezo dos demais direitos fundamentais a ele contrapostos. É assente que tanto deve ser proibido o excesso de proteção como a sua insuficiência, o que impõe o enfrentamento do tema pelo legislador brasileiro, como ocorreu nos demais sistemas jurídicos analisados.175

175 MARTELETO FILHO, Wagner. O direito à não autoincriminação no processo penal

contemporâneo: investigação genética, interceptações telefônicas e ambientais, agentes infiltrados

6 INTERVENÇÕES CORPORAIS. PONDERAÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS EM CONFLITO

6.1 Proporcionalidade e ponderação dos interesses contrapostos