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Direitos Fundamentais e o Acesso à Terra

A noção de direitos fundamentais tem lastro na história; na origem dos direitos fundamentais encontramos os ideais de religião, filosofia, teologia, que foram sendo passadas de geração a geração.

Canotilho (2002) afirma que as concepções cristãs de direito natural, ao distinguir entre “lex divina, lex natura e lex positiva”, abriram caminho para a necessidade de submeter o direito positivo às normas jurídicas naturais, fundadas na própria natureza do homem.

Os contratualistas introduziram a ideia de direitos naturais do homem, surgindo as cartas de direitos, cartas de franquias, assinadas por soberanos, mais precisamente, na Inglaterra, onde merece destaque a Carta Magna do Rei João Sem-Terra. A propósito, sobre a Carta, Comparato dirá:

Vislumbra-se que o Rei João da Inglaterra assinou a Magna Carta com o intuito de amenizar os conflitos que estavam surgindo em face do aumento dos impostos fiscais. O povo estava insatisfeito com o abuso da progressividade no tocante a esses aumentos. E com isso, passou a exigir periodicamente, que em troca desses pagamentos exacerbados, fossem reconhecidos formalmente os seus direitos como pessoa e como cidadãos portadores desses direitos (COMPARATO, 1999, p. 59).

Embora esta carta, bem como outras que surgiram, não tivessem alcance universal, passaram a ter importância na evolução dos direitos fundamentais, à medida que apontavam para direitos dos homens reconhecidos formalmente, impondo limitações ao poder. As declarações americanas vão incorporar tais direitos e liberdades reconhecidas, sendo que estes direitos do homem passam a ser recepcionados e positivados como direitos fundamentais constitucionais.

Dentre as declarações de direitos, a mais significativa é a declaração de direitos da Revolução Francesa (1789), que se tornou paradigma para a definição de outras declarações universais. A declaração de 1789, ao menos em termos teóricos, propõe eliminar todas as desigualdades e privilégios entre indivíduos, grupos sociais, nações. A igualdade, liberdade e fraternidade foram os eixos condutores deste movimento histórico.

Frisa-se, tanto a declaração americana, como a francesa, tiveram como característica a inspiração jusnaturalista, reconhecendo aos seres humanos direitos naturais, invioláveis e imprescritíveis, direitos de todos os homens, que se tornaram universalmente em princípios, tais como a igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, legalidade, presunção da inocência, etc.

No início do século 20, outros documentos surgiram, trazendo marcas sociais, tais como a Convenção de Genebra (1864), a Constituição Mexicana (1917), a Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador (1918), a Constituição de Weimar (1919), a Convenção de Genebra sobre a Escravatura (1926).

Entretanto, a Carta das Nações Unidas (1942) tornar-se-á o maior marco na definição dos direitos fundamentais. Sobre ela Sarlet (2002, p. 91) afirma: “A declaração Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Assim, constituiu o pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia [...]". Deste modo, a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) torna-se um dos maiores documentos universais de garantia dos direitos fundamentais.

Para a doutrina, os direitos fundamentais, em sua trajetória histórica e evolutiva, passaram por dimensões (gerações), como as de primeira9, segunda10 e terceira geração11, sendo que para alguns doutrinadores existe uma quarta12 e quinta13 geração de direitos. Para Sarlet (2002), as gerações dos direitos surgiram "como direitos dos indivíduos frente ao Estado, mais especificamente, como direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face do seu poder". Esses direitos se constituíram como direitos do povo e para o povo, com a finalidade de impor limites na esfera de atuação do Estado em relação aos indivíduos.

Não obstante este histórico evolutivo, ainda há certa falta de clareza sobre o que sejam os direitos fundamentais, sendo que eles se configuram sob os mais diferentes nomes, tais como, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos naturais, liberdades fundamentais, etc. Para Sarlet, normalmente, os direitos humanos e direitos fundamentais são utilizados como sinônimo, precisando ser distinguidos:

O termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação com documentos de direito internacional por referir-se aquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser

9 Primeira Geração: são os chamados de direitos civis e políticos, que englobam os direitos à vida, à liberdade, a propriedade, à igualdade formal, as liberdades de expressão coletiva, algumas garantias processuais, etc.

10 Segunda Geração: Essa geração é constituída pelos direitos econômicos, sociais e culturais com a finalidade de obrigar o Estado a satisfazer as necessidades da coletividade, compreendendo o direito ao trabalho, à habitação, à saúde, educação e inclusive o lazer.

11 Terceira Geração: são denominados de direitos de solidariedade ou de fraternidade, compondo os direitos que pertencem a todos os indivíduos, constituindo um interesse difuso e comum, transcendendo a titularidade coletiva ou difusa, ou seja, tendem a proteger os grupos humanos (Ex.: direito à paz, á autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, qualidade de vida, a utilização e conservação do patrimônio histórico e cultural, etc.). 12 Quarta Geração: seriam os direitos ligados à pesquisa genética, surgida da necessidade de se impor uns controles a manipulação do genótipo dos seres, em especial o do ser humano.

humano como tal, independente da sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto aspiram a validade universal para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (SARLET, 2001, p. 31)

Assim, segundo o autor, os direitos humanos estão positivados na esfera do direito internacional, enquanto que os direitos fundamentais estão reconhecidos, outorgados e protegidos pelo direito constitucional de cada Estado soberano.

Na esteira, Canotilho (2002) define os direitos fundamentais como: “[...] direitos do particular perante o Estado, essencialmente direito de autonomia e direitos de defesa". São caracterizados como individuais, porque pertencem exclusivamente a pessoa, e o Estado como titular de direitos, com o dever de proteger o cidadão, deve velar pelo seu cumprimento.

Para a Constituição de 1988 os direitos fundamentais se traduzem por meio do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III). Isto significa que sem dignidade o homem não vive, como não existiriam a maioria dos direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais são disciplinados como bens declaratórios na Constituição, imprimindo existência legal aos direitos reconhecidos, a exemplo do art. 5º, XXII (“é garantido o direito de propriedade”). Eles não se confundem com garantias fundamentais, que são as ferramentas jurídicas e disposições assecuratórias, por meio das quais tais direitos se exercem, limitando os poderes e arbítrio do Estado, a exemplo do artigo 5°, XXXV, XXVII (ações de habeas-corpus e habeas-data são gratuitos e atos necessários ao exercício da cidadania).

Os direitos fundamentais, segundo Bobbio (1992) e doutrina vigente possuem determinadas características, tais como:

-Historicidade, pois derivaram da evolução, de um contexto delimitado. Nascem e extinguem-se. Não são obra da natureza, mas das necessidades humanas. Exemplo: direito de propriedade (art. 5°, XXII, CF/88);

-Universalidade, pois ultrapassam os limites territoriais de um lugar específico para beneficiar todos os indivíduos. Exemplo: princípio da isonomia (art. 5°, caput, CF/88);

-Cumuláveis ou concorrentes, pois podem ser exercidos ao mesmo tempo. Exemplo: direito de informação e liberdade de manifestação do pensamento (art. 5°, IV, CF/88);

-Irrenunciáveis, pois podem deixar de ser exercidos, mas nunca renunciados. Exemplo: não-ajuizamento do mandado de segurança, algo que não o retira da Constituição (art. 5°, LXIX, CF/88);

-Inalienáveis, pois são indisponíveis, ou seja, os seus titulares não podem vendê-los, aliená-los, comercializá-los, pois não têm conteúdo econômico. Exemplo: a função social da

propriedade não pode ser vendida porque não corresponde a um bem disponível (art. 5°, XXIII, CF/88);

-Imprescritíveis, pois não prescrevem, uma vez que não apresentam caráter patrimonial. Exemplo: direito à vida (art. 5°, caput, CF/88);

-Vinculantes, pois a atividade dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário deve obedecer à força vinculante e suprema das normas constitucionais assecuratórias de liberdades públicas;

-Relativos, pois nem todo direito ou garantia fundamental pode ser exercido de modo absoluto e irrestrito, salvo exceções, em que um direito ou garantia fundamental deve ser exercido de maneira irrestrita, como no caso da proibição à tortura, etc.

Em suma, os direitos fundamentais do homem são aqueles que nascem da própria condição humana e que são ou estão previstos no ordenamento constitucional. Eles só ganharam solidez a partir do princípio da dignidade da pessoa humana.

2.1.1 A terra como direito fundamental

O direito de propriedade é um direito fundamental, resultante das conquistas dos direitos humanos civis. Foi concebido como resultado da luta entre burguesia e senhores feudais, momento em que as grandes posses foram fragmentadas, ganhando legitimidade pela produtividade. Originalmente foi compreendido e exercido como direito individual, absoluto, onde o Estado não tinha poder algum de intervenção.

Napoleão Bonaparte fundamentou sua codificação nestes princípios liberais- econômicos, ou seja, em um direito individual e absoluto. Sendo assim, a ideologia liberal da propriedade vinha associada a liberdade individual; por ela o individuo exercia sua liberdade, a iniciativa, o pluralismo econômico. No rastro do Código Napoleônico segue o Código Civil Brasileiro de 1916, bem como o de 2002, que ao disciplinar a propriedade privada traz tais marcas e influências liberais.

Entretanto, a caracterização liberal não é oportuna, pois a propriedade deve cumprir sua função social, ou seja, os institutos jurídicos devem acompanhar as transformações sociais, compreendendo a propriedade a luz da Constituição Cidadã. Assim, a partir da Constituição de 1988, não basta ser proprietário, há que se dar função ao que se tem; há um ônus social ao proprietário. Só é protegida a propriedade que cumpre a função social, tal como afirma o art. 184, da Constituição Federal de 1988:

Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

Portanto, a redemocratização e o advento da Constituição faz com vejamos o instituto da propriedade como resultado dos clamores dos camponeses sem terra e carentes de justiça agrária.

Esta nova concepção de propriedade relativiza o conceito de propriedade como mero direito individual de caráter privado. E a função social é dentro da finalidade fática e adequada a que se destina, pois se é propriedade rural, é para produzir alimentos; se é propriedade urbana, é para moradia. E sendo propriedade rural, para produzir alimentos, ela ganha novos contornos: a produção é em regime familiar, sem ser terras de negócio. Portanto, aqui entra uma questão ética: a terra é para produzir, para quem nela trabalha, para viver decentemente. Fora disso é terra sem legitimidade.

O principio da função social deve ser interpretado em sintonia com o artigo 1º a 4º da Constituição Federal, ou seja, a função social é exercida com fundamento na cidadania, na dignidade da pessoa humana, com base nos valores sociais de trabalho. Sendo assim, o proprietário estará contribuindo com a construção da sociedade querida pela Constituição: uma sociedade livre, justa e solidária, com desenvolvimento nacional, sem pobreza e marginalização, reduzindo desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem-estar de todos, conforme o art. 170, da Constituição Federal. Em outras palavras, passa pela utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, preservação do meio ambiente, com justas relações de trabalho, exploração econômica que favoreça o bem estar de todos, qualidade dos produtos, soberania alimentar, etc.

Entretanto, a terra está cada vez mais se distanciando da sua função primordial, qual seja, garantir trabalho, alimentação e moradia, e a consequência desse fenômeno na sociedade é o aumento da desigualdade social.

Observa-se que os Movimentos Sociais14 sempre se fizeram presentes lutando pela concretização dos direitos fundamentais. A história os aponta como sujeitos de defesa e promoção dos direitos fundamentais, apesar de que o Estado Nacional foi um projeto

14 Quando falamos de movimentos sociais, estamos fazendo referência aos conflitos que, ao longo da história do Brasil, se fizeram presentes como formas de resistência do homem do campo em relação às transformações culturais, tradicionais, materiais, territoriais promovidas pelo modo de produção capitalista. Scherer-Warren (1996, p. 9) os define: “[...] quando os grupos se organizam na busca de libertação, ou seja, para superar alguma forma de opressão e para atuar na produção de uma sociedade modificada, podemos falar na existência de um movimento social”.

implantado pelas elites políticas, ou seja, o povo brasileiro não teve uma participação direta nesse processo de formação do Estado. Por suas lutas e resistências os movimentos sociais camponeses deram sentido e efetividade aos direitos fundamentais e à cidadania.

Por essa razão os direitos fundamentais não possuem uma natureza jurídica individual ou subjetiva, como se tem dito comumente, mas decorrem de movimentos sociais que, em suas lutas reivindicatórias, geraram e continuam gerando os direitos fundamentais, que adquirem uma natureza coletiva e difusa. De natureza coletiva, esses direitos fundamentais transformam-se em direitos difusos e, uma vez difundidos, tornaram-se direitos fundamentais individuais. Esta é a história a ser contada, que não banaliza conquistas históricas do povo, nem esvazia os direitos humanos em seu significado político e jurídico.

Portanto, quando os direitos fundamentais não decorrem de conquistas sociais e populares, mas são concedidos, num movimento vertical de normatização, não contando com a efetiva participação popular no processo, esses direitos ficam letra morta, banalizam as lutas históricas de um povo.

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