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Acesso à terra: direito fundamental e exercício da cidadania

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Academic year: 2021

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GRANDE DO SUL

CÉLIO VALDEMAR CADONÁ

ACESSO À TERRA:

DIREITO FUNDAMENTAL E EXERCÍCIO DA CIDADANIA

Ijuí, (RS) 2014

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CÉLIO VALDEMAR CADONÁ

ACESSO À TERRA:

DIREITO FUNDAMENTAL E EXERCÍCIO DA CIDADANIA

Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Curso - TC.

UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul.

DCJS - Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Rubens Cenci

Ijuí (RS) 2014

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Agradeço:

Aos Familiares e Amigos;

Meu carinho a Cláudia Piva, companheira solidária de vida;

Ao Movimento dos Pequenos Agricultores do RS, especialmente, lideranças e famílias dos municípios de Sagrada Família, Redentora, Vale do Sol e Encruzilhada do Sul.

No âmbito Acadêmico, Agradeço:

Á UNIJUÍ e ao Corpo Docente do Curso de Direito;

Ao Orientador e Amigo, Prof. Dr. Daniel Rubens Cenci;

Ao integrante da Banca Examinadora, Prof. Ms. Aldemir Berwig;

Aos Companheiros e Companheiras com os quais compartilhei a trajetória acadêmica do Curso de Direito, especialmente àqueles e àquelas com os quais mantive laços fraternos, partilhando ideias, sonhos e projetos;

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“E Deus, falando à multidão anunciou. ‘A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.’ E a multidão respondeu-lhe: ‘Justiça nós já a temos e não nos atende’.

‘Sendo assim, tomarei o nome de Direito’.

E a multidão tornou-lhe a responder: ‘Direito já nós o temos e não nos conhece’. E Deus’: ‘Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.’

Disse a multidão: ‘Não necessitamos de caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite’.”

(José Saramago, Terra,1999)

“Luta pelo Direito. Mas quando encontrares o Direito em confronto com a Justiça, luta pela Justiça”.

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RESUMO

CADONÁ, Célio Valdemar. Acesso à Terra: Direito Fundamental e Exercício da Cidadania. Ijuí, UNIJUÍ, 2014. 71p. (Monografia)

O presente trabalho se propõe a um estudo sobre o acesso à terra como direito fundamental, tendo como critério a dignidade humana. Para tanto, a partir da formação sócio-histórica do campesinato, com seu ordenamento fundiário desigual, sinalizar que a busca da terra foi uma constante, não obstante os diversos conflitos e lutas na conquista pela reforma agrária. A legislação agrária brasileira é farta, entretanto, o acesso à terra é negado para vastas camadas do campesinato. Não bastasse a falta da terra, a situação fática, aponta impedimentos práticos ao acesso e manutenção da posse, com um crescente quadro de irregularidades nos imóveis particulares, o que tem impedido o exercício da cidadania, excluído os camponeses de políticas públicas e aumentando a exclusão social. Assim, para além do acesso à terra, aos que não a tem, o estudo privilegiou a situação do campesinato que tem a terra, mas que diante de uma situação diversificada, vivem sob o marco legal, sob a condição de irregulares, diante de um Estado ausente e sem compromisso com os setores populares. Perante tal situação, a legislação agrária precisa ser lida e efetivada à luz da Constituição Cidadã e da instauração do Estado Democrático de Direito, fazendo com que a ordem econômica e a propriedade se submetam aos princípios sociais e a função social. O Estado Democrático de Direito tem exigências de efetivação da reforma agrária, das políticas fundiárias e política agrícola.

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ABSTRACT

CADONÁ, Célio Valdemar. Land Access: Fundamental Law and Practice of Citizenship. Ijuí UNIJUÍ, 2014. 71p. (Monograph)

The present work proposes a study on access to land as a fundamental right, with the criterion of human dignity. To do so, from the social-historical formation of the peasantry, with its uneven land planning, signal that the search of the land was a constant, notwithstanding the various conflicts and struggles in the conquest for land reform. Brazilian agrarian law is sick, however, access to land is denied to vast layers of peasantry. In addition the lack of land, the factual situation, points out practical impediments to access and maintain possession, with a growing cadre of irregularities in private homes, which has prevented the exercise of citizenship, deleted the peasants of public policies and increasing social exclusion. Thus, in addition to access to land, those who don't have it, the study focused on the situation of the peasantry that has the Earth, but that faced with a diversified situation, living under the legal framework, under the irregular condition, before a State missing and without commitment to the popular sectors. Faced with this situation, agrarian legislation needs to be read and carried out in the light of the Constitution a citizen and the establishment of the democratic State of law, causing the economic order and property to submit social principles and social function. The democratic State of law has effective requirements of agrarian reform, land policy and agricultural policy.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 07

1 FORMAÇÃO FUNDIÁRIA E SÓCIO-HISTÓRICA DO CAMPESINATO ... 10

1.1 Ordenamento Fundiário Desigual: Origens e Desenvolvimento ... 10

1.2 A Formação Sócio Histórica do Campesinato ... 18

1.3 Conflitos no Campo e as Políticas de Reforma Agrária ... 24

2 ACESSO À TERRA, JUSTIÇA E CIDADANIA ... 28

2.1 Direitos Fundamentais e o Acesso à Terra ... 29

2.1.1 Aterra como Direito Fundamental ... 32

2.2 Instrumentos Jurídicos do Direito Agrário ... 34

2.3 A Lei e a Realidade: Posse, Usucapião e Regularização de Terras Particulares ... 40

2.3.1 Regularização das Terras Particulares ... 42

2.3.2 A Lei e a Realidade Fundiária ... 44

2.4 Exigências do Estado Democrático de Direito ... 49

2.4.1 A Terra e sua Função Social ... 52

2.4.2 Reforma Agrária, Política Fundiária e Agrícola ... 55

CONCLUSÃO ... 61

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INTRODUÇÃO

Este estudo monográfico e seus resultados decorrem da problemática acerca do acesso à terra e da realidade enfrentada pelos camponeses diante das irregularidades nas posses, na qual é desenvolvido o projeto de pesquisa intitulado: “ACESSO À TERRA: DIREITO FUNDAMENTAL E EXERCÍCIO DA CIDADANIA”, trabalho pré-requisito para a conclusão do Curso de Direito, UNIJUÍ, Ijuí, Rio Grande do Sul.

O título da monografia indica a intenção de resgatar e solidarizar-se com todos os camponeses sem terra e com terra que hoje se encontram na situação de irregulares, diante dos ditames legais, do que seja uma propriedade escriturada. Tal situação põe vastos setores à margem da sociedade, impedindo o exercício da cidadania, à medida que nega os mais elementares direitos, aumentando a injustiça e a exclusão social.

Tal realidade aponta violações ao direito fundamental à terra. Estas violações deitam raízes na formação fundiária e histórica brasileira. Os instrumentos jurídicos de nosso ordenamento, apesar de amplos, não são suficientes para oportunizar o acesso à terra e resolver problemas das irregularidades nas posses, necessitando de atualizações. Daí a necessidade em fortalecer o discurso dos direitos fundamentais e humanos ligados aos problemas dos camponeses, confrontando a prática social com o aparato legal agrário, em vista da realização da justiça agrária.

A dignidade humana deve ser o critério principal para a elaboração, aplicação e interpretação dos direitos e garantias conferidos aos seres humanos. É ela que confere autenticidade ao Estado Democrático de Direito. Com o acesso à terra se confere dignidade humana. Entretanto, não basta somente o acesso, há de se formular políticas públicas para manter à terra, proteger, conservar os bens, produzir alimentos.

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Diante de uma herança e tradição patrimonialista e individualista, onde o domínio se sobrepõe ao direito de propriedade, ao acesso à terra, aos direitos fundamentais, eis que precisamos reexaminar os institutos agrários e notariais existentes a luz da Constituição Cidadã, redimensionando-os em vista dos sérios problemas enfrentados na realidade fundiária brasileira.

A problemática camponesa do acesso à terra e das irregularidades nos imóveis que impedem o pleno direito de posse aos camponeses, impedindo o exercício dos direitos, é uma afronta aos camponeses e sua dignidade humana. Estas questões, de contornos nacionais, ganham importância à medida que avançam em direção ao campo às diversas políticas públicas. Neste sentido, o estudo do tema se justifica, pela atualidade, pela relevância social, pela singularidade em tratar questões pertinentes a realidade de um dos setores indispensáveis na manutenção da soberania e segurança alimentar neste país.

Procurando responder à problemática apontada, desenvolvemos um itinerário de análise, em dois capítulos interdependentes, tendo em vista analisar e sistematizar o direito ao acesso à terra e seus entraves a regularização das posses em terras particulares.

Assim, através do primeiro capítulo, buscamos resgatar as origens da estrutura fundiária e da formação do campesinato dentro do marco agrário colonialista, delimitando a resistência e o campo de lutas nas opções históricas da existência camponesa no Brasil.

A formação fundiária está ligada à formação do campesinato; nascemos sem terra, precisando conquistá-la, pois as políticas agrárias sempre foram submetidas aos interesses dos latifundiários. Entretanto, embora tragam a marca de alijados dos direitos à terra, perpassa na história, conquistas imemoráveis e avanços dos movimentos sociais na luta e resistência camponesa.

No segundo capítulo, a partir da análise do direito ao acesso à terra como direito fundamental, procuramos analisar a concepção e aplicabilidade dos instrumentos e institutos jurídicos agrários, sob o influxo do Estado Democrático de Direito.

A legislação agrária brasileira, a importada ou a produzida internamente, ainda que vasta, carrega fortemente ranço liberal e autoritário, tirando o protagonismo da sociedade em resolver seus maiores problemas agrários, o acesso à terra, a reforma agrária, com políticas agrícolas de reprodução e autonomia dos camponeses.

Os estrangulamentos no acesso à terra e à regularização das posses em terras particulares tiveram tratamento significativo e intenso ao confrontar a realidade fundiária no sul do país com a legislação agrária existente. Nisso, a realidade fundiária dos camponeses,

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especificamente do Rio Grande do Sul, foi oportunidade para apresentar uma amostra do que se pode fazer diante deste quadro de exclusão e ausência do Estado em relação ao acesso e irregularidades das terras, tendo em vista o exercício da cidadania.

Ao concluir o trabalho, realizamos algumas considerações gerais, apontando, na esteira da Constituição de 1988, as exigências do Estado Democrático de Direito para o meio camponês analisado, ou seja, apontamos que é a reforma agrária e o consequente compromisso em desenvolver as políticas fundiária e agrícola, voltadas aos interesses dos amplos setores populares do campo, podem trazer a segurança jurídica e a justiça no campo.

Acreditamos que o envolvimento com as questões desta monografia possam ter acarretado limites na compreensão e na análise. Reconhecemos que o ato de aventurar-se em realizar uma pesquisa no campo político e social sempre traz reflexos sobre a investigação e a construção do conhecimento, pois este ato impõe a necessidade de se envolver para conhecer.

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1 FORMAÇÃO FUNDIÁRIA E SÓCIO-HISTÓRICA DO CAMPESINATO

O presente capítulo tem como objetivo realizar resgate histórico da apropriação da terra, da formação fundiária e histórica do campesinato brasileiro, transitando pelos conflitos e lutas sociais pelo acesso à terra e sucessivas tentativas de concretização das políticas de reforma agrária no Brasil.

Com este resgate das origens da formação fundiária e sócio histórica do campesinato intencionamos demonstrar que muitas das consequências da estrutura agrária de hoje, deitam raízes na estrutura de ontem. Ou seja, o acesso à terra e os desafios diante de terras irregulares não são fenômenos isolados, mas se inserem dentro de um contexto de omissão do Estado, e que não serão resolvidos com meras decisões administrativas ou produção de mais leis.

Com este olhar retrospectivo, entendendo a estrutura fundiária como importada e a constituição da identidade do camponês através dos tempos, teremos melhores condições de realizar confrontamento com a realidade camponesa nos dias de hoje e, assim, nos colocarmos diante das possiblidades de construção da justiça agrária, com novos instrumentos para o acesso à terra, à regularização das posses e efetivação da reforma agrária, condições indispensáveis para exercício da cidadania.

1.1 Ordenamento Fundiário Desigual: Origens e Desenvolvimento

Ao remontar de origens e desenvolvimento fundiário, marcado pela desigualdade, registra-se que o domínio da terra no Brasil, antes da chegada dos europeus no século 16, era unicamente marcado pela posse comunal dos territórios pelos povos indígenas. Este cenário modificou-se paulatinamente até a propriedade se tornar, como nos dias atuais, de controle e domínio majoritariamente privado, baseado na propriedade privada.

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Nas origens, destaca-se que a forma de apropriação da terra, bem como a sua distribuição, decorreram de um sistema econômico implantado e das especificidades históricas que o desenvolvimento deste sistema assumiu em cada região em particular.

Em linhas gerais, podemos sintetizar que a formação da propriedade brasileira seguiu as fases pré-colonial, sesmarial, regime de posses, regime das leis de terras, sistema civil do Código de 1916, sistema legal do Estatuto da Terra e o regime fundiário inaugurado com a Constituição Federal de 1988.

Inicialmente, as sesmarias1 no Brasil remontam ao sistema vigente em Portugal, originadas em de 1375. Portugal, exaurido por guerras e estruturas produtivas, exigia medidas para evitar a fome e a miséria. Então, Dom Fernando I (Lei Dom Fernando I, 1375) antevê no incremento da produção agrícola a forma de reerguer seu país e suprir suas necessidades. Disso decorre a sua ordem:

Todos os que tiverem herdades próprias, emprazadas, aforadas, ou por qualquer outro título, que sobre as mesmas lhes dê direito, sejam constrangidos a lavrá-las e semeá-las. Se por algum motivo legítimo não puderem lavrar todas, lavrem a parte que lhes parecer poder comodamente lavrar, a bem vistas e determinação dos que sobre este objeto tiverem intendência; e as demais façam-nas aproveitar por outrem pelo modo que lhes parecer mais vantajoso, de modo que todas venham a ser aproveitadas.

Surgem, então, as sesmarias como sistema legal de propriedade, tendo como objetivo tornar as terras produtivas (“constrangidas a lavrá-las e semeá-las”), tendo em vista a escassez de alimentos no país. Estas sesmarias serão aperfeiçoadas, vindo a ser asseguradas nas ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1512) e Filipinas (1603).

Observa-se que nas Ordenações Filipinas os portugueses introduzem o Comisso2, instituto que passou a existir também no Brasil, sendo ordenado:

[...] para que as lavrem ou aproveitem e reparem ditos bens, ou os vendam, emprazem ou arrendem a quem os possa aproveitar ou lavrar. E se não o fizerem, passado dito ano, dêem os sesmeiros as ditas sesmarias a quem as lavrem e aproveitem (ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro IV, Título 43)

Assim, o sistema das ordenações foi introduzido no Brasil, sendo que a ocupação se realizou sob o manto desta lei, ainda que tivesse objetivos diversos se comparada com a

1 Instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção. No Brasil a principal função do sistema de sesmarias foi estimular a produção; quando o titular da propriedade não iniciava a produção dentro dos prazos estabelecidos, seu direito de posse poderia ser cassado.

2 Em Portugal eram porções de terras doadas, geralmente abandonadas, taperas, em ruínas; no Brasil ganha outro sentido, sendo terra doada aos amigos do rei, os fidalgos que se encontravam quebrados.

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implantação em Portugal. A ocupação se deu sob os auspícios do Tratado de Tordesilhas3 (1494), sendo que o lucrativo comércio de especiarias nas Índias geraria imenso desinteresse pela exploração do território brasileiro.

Neste sentido, pode-se dizer que as sesmarias não vêm para o Brasil como sistema legal de propriedade, com ocupação efetiva, mas visando basicamente a exteriorização do domínio da coroa, como que marcando a terra, fincando a cruz e dizendo: isto aqui é nosso. Em outras palavras, o plano de ocupação, inicialmente tinha apenas uma preocupação: a atividade econômica limitada a exploração da madeira pau-brasil.

Segundo Borges (1984, p. 12), na fase pré-colonial, fase do Escambo4 (1500 a 1530) não houve distribuição de terras, nem instalação de povoamentos no Brasil. O que havia eram rapinagem e exploração de mão-de-obra escrava de povos indígenas. Só mais tarde, segundo Benjamin (2001), o território foi povoado, mas ainda de forma precária e fragmentada, com a economia organizada de fora para dentro, sem autonomia e sem preocupação com o mercado interno.

Já na fase colonial, que vai de 1530 a 1822, no Brasil é implantado o regime das capitanias hereditárias5, sendo dividido o território em enormes faixas de terras e sendo possibilitada a concessão das sesmarias, que será a base da economia colonial.

Este regime de acesso à terra vai se concretizar com a outorga de terras aos capitães gerais das capitanias hereditárias, os agraciados pela coroa. Em 1808, por decreto do príncipe regente, mais tarde imperador D. Pedro I, este regime foi estendido também aos estrangeiros, ou seja, estes passam a ter o direito de obter sesmarias.

Registra-se que na Europa o regime feudal estava desagregando-se com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo. Entretanto, o novo regime que aportava no Brasil não conseguia a mesma influência e nem exercia o mesmo papel, tal como no velho continente. E a doação das terras deixava claro quais eram os objetivos dos colonizadores e o caráter da colonização: implantar os fundamentos econômicos da ordem de produção feudal, fazer do Brasil um exportador de gêneros alimentícios e de matérias-primas.

3 Acordo firmado na cidade de Tordesilhas, em 4 de junho de 1494 entre Portugal e Espanha. Pelo acordo se estabelecia uma linha imaginária a 370 léguas de Cabo Verde; as terras a oeste desta linha ficaram para a Espanha, enquanto as terras a leste eram de Portugal. Este acordo deixa vigorar em 1750, com a assinatura do Tratado de Madri, onde as coroas estabeleceram novos limites de divisão territorial para suas colônias na América do Sul.

4 Em regra são trocas que se realizaram entre os índios e os europeus, no início do séc. 16. Os próprios escravos eram adquiridos na África pelo escambo, ou seja, boa parte do fumo plantado no Brasil e da produção de aguardente destinava-se à obtenção de escravos na África.

5 Forma de administração territorial do império português pela qual a coroa delegou a tarefa de colonização e exploração de determinadas áreas a particulares, através da doação de lotes de terra.

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[...] o regime de propriedade da terra no Brasil nasceu de um legado aos nobres e abastados, nasceu como um sistema de latifundiário que não se forma lentamente, por gestação histórica, por meio da anexação, antes, ele nasce usurpando as terras dos indígenas, escravizando povos, em cumprimento ao plano de ocupação traçado previamente (GUIMARÃES, 1979, p. 298-299).

Neste sentido, Benjamin (2001, p. 2) dirá que o direito agrário surgirá para defender e consolidar o monopólio da terra, para dissociar a propriedade de ocupação, para legitimar a desocupação e criminalizar a ocupação. Ou seja, a ocupação da terra, desde o Brasil colônia, não foi vista como ato gerador de direito; este não se colocou a serviço da organização do uso do território e segundo as necessidades da sociedade, antes, foi instrumento para a repressão, tratando como “caso de polícia” os que buscavam a terra para produzir, acobertando a improdutividade dos latifúndios.

Assim, o acesso legal à propriedade foi barrado, ficando dependente da “bondade” da Coroa ou através de processos de compra, inviabilizando o acesso aos setores pobres e marginalizados. E este processo vai marcar profundamente toda a formação da sociedade brasileira, pois tais raízes estão arraigadas em nosso sistema fundiário e modo de produção. Deste modo, o regime das sesmarias liga o Brasil ao latifúndio, explorando inicialmente a cana-de-açúcar, no sistema de monocultura para exportação, formando a sociedade escravocrata que durou por mais de 400 anos. Neste interim entra também o gado, dando origem a um segundo latifúndio, o latifúndio das fazendas.

Com o retorno da família real à Portugal (1821) foram suspensas as concessões das sesmarias, até que se convocasse a Assembleia Nacional Constituinte. Esta foi convocada e em seguida dissolvida pelo imperador D. Pedro I. Com isso, não surgindo de imediato nenhuma legislação sobre a posse da terra, passou a existir um sistema extralegal, onde predominava a simples ocupação, a posse sem título, dando origem a nova fase no desenvolvimento fundiário nacional.

Este regime das posses, das ocupações primárias, embora sendo extralegal, foi uma forma lícita e única de apropriação das terras devolutas. Os próprios camponeses, sem oportunidade de concessão de sesmarias, partiram para a conquista do sonhado pedaço de terra, espraiando a pequena propriedade. Ou seja, se expandem os pequenos estabelecimentos sobre terras devolutas ocupadas por antigos escravos, agregados, assalariados, sendo que a cultura efetiva foi a forma normal de aquisição do domínio da terra e o costume, a fonte jurídica da posse da propriedade. Tal regime de posse, desordenada, também acaba por criar conflitos, grande procura, valorização das terras, imensa concentração das terras por particulares, situação que perdurará até o surgimento da Lei das Terras.

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O “fim da escravidão” muda os planos dos fazendeiros; se antes era preciso que investissem na compra de escravos, a partir da Lei de Terras passam a investirem seu capital na compra de terras. Neste sentido, para José de Souza Martins (1986) “[...] num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”. Assim as condições de acumulação se mantiveram, sem prejuízo nos interesses dos fazendeiros, tanto no sudeste, no nordeste e em outras regiões do Brasil.

A Lei das Terras vem e tem como objetivo por ordem, encerrando o regime das posses, visando regular a titulação das terras no Brasil, tendo como fundo ideológico o sentido napoleônico da propriedade privada. A lei permitia documentar, mediante compra, as posses legitimamente ocupadas. Ou seja, a Lei de Terras passa a ser marco histórico no que se refere à forma de aquisição da terra no Brasil; a lei substituirá a concessão das terras pela venda, dispondo também sobre as posses em conflito, determinando medições, demarcações.

Destaca-se, ainda, a Lei de Terras introduz o Comisso, a devolução de terras à coroa e proíbe aquisições de terras devolutas (a não ser por compra), objetivando impedir o acesso à terra por intermédio da posse ou da compra a baixo preço. Nisso, Zarth elucida a real intenção da lei:

O cativeiro da terra [...] tem como marco a Lei de Terras de 1850, que acabou com o sistema de posse, através do qual o acesso a terra era fácil em termos jurídicos. A Lei de Terras, como instrumento de controle da propriedade da terra, através da qual se pretendia impedir o livre acesso ao solo pelos colonos imigrantes e agricultores nacionais [...] (ZARTH, 2002, p. 46-47)

Não há dúvidas que a Lei das Terras tinha como um de seus objetivos garantir o monopólio dos meios de produção através da propriedade latifundiária. A abolição da escravatura que abala as relações escravistas coloca a questão de onde buscar mão-de-obra e como produzir para garantir o latifúndio. A Lei das Terras (Lei nº 601/1850) vai dar as respostas; vendendo terras, mas sem finalidades democráticas, de expandir o acesso à terra, o que fica estampado no artigo 1º:

Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro titulo que não seja o de compra.

Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Imperio com paizes estrangeiros em uma zona de 10 leguas, as quaes poderão ser concedidas gratuitamente.

Ora, isso era a forma de excluir os pequenos, negros e índios, dificultando o acesso à terra; tornava-os farta e barata mão-de-obra para os senhores de posses. E os imigrantes entram nesta lógica e projeto, tal como lemos no artigo 18:

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O Governo fica autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro certo numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado, em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos dirigidos pela Administração publica, ou na formação de colonias nos logares em que estas mais convierem; tomando anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos achem emprego logo que desembarcarem. Aos colonos assim importados são applicaveis as disposições do artigo antecedente (Lei nº 601/1850).

Portanto, é neste contexto se insere a questão da imigração do século 19. Os imigrantes, bem como demais brasileiros natos, não merecedores de sesmarias, passam a ocupar as terras livres. Com isso se dava inicio a agricultura camponesa, o colonato, o pequeno agricultor.

José Graziano da Silva (2001, p. 27-28) afirma que a Lei das Terras teve papel decisivo para a vinda dos imigrantes ao Brasil. Isto porque as terras devolutas, que só poderiam ser apropriadas mediante a compra ou venda, renderiam dividendos, possibilitando o financiamento para a vinda dos imigrantes da Europa. Deste modo, “matavam-se dois coelhos com a mesma cajadada”: restringia-se o acesso às terras aos que não tinham dinheiro e criavam-se as bases para a organização de um mercado de trabalho livre para substituir os escravos.

Pelo visto, foi sob a vigência da Lei de Terras que os imigrantes chegaram ao Rio Grande do Sul, inicialmente oriundos de Portugal e depois de diversas nacionalidades. Paulo Zarth a propósito afirma, em relação a entrada dos imigrantes no Rio Grande do Sul:

As primeiras ideias de distribuir terras para imigrantes, sob forma de pequenas ou médias propriedades, decorreram da necessidade de povoar a região para fins estratégicos. Uma população densa daria garantia de posse do território e forneceria soldados e alimentos (ZARTH, 2002, p. 69).

O destino destes imigrantes, primeiramente, era a região das Missões, como substitutos dos povos das reduções, mas devido dificuldades para o transporte, acabaram ficando perto dos rios e mares, nas proximidades de Porto Alegre e Vale do Rio dos Sinos e Vale do Taquari, onde se colocam em pequenas glebas de terras.

Estas pequenas propriedades (ZARTH, 2002, p. 72) entram no sul a contragosto dos estancieiros. E o governo, para não contrariar os estancieiros e nem se dar mal com os pequenos agricultores, deixa as estâncias para os estancieiros e libera as terras de matas para a colonização, onde irão proliferar comunidades e a riqueza da economia de subsistência.

Salienta-se que o período da chegada destes imigrantes (1824 e 1920) coincide com a fase de transição da mão-de-obra escrava para a livre, ou seja, processam-se novas relações de produção, as relações capitalistas. Estas situações, segundo Rodrigues (2001, p. 22) condensam condições para que os governos estabeleçam acordos/parcerias migratórias. Para

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tanto, leis próprias são criadas, a exemplo da Lei das Posses, possibilitando a doação de pequenas glebas de terra aos imigrantes, com o objetivo de produzir alimentos para o mercado interno.

Em suma, a chegada dos imigrantes significa a introdução de um novo tipo de propriedade, de novas relações sociais de produção, de um novo período na história dos camponeses. De agora em diante, dependendo das particularidades de cada região, das formas do sistema produtivo, do tipo de relações enfrentadas na sua prática de consumo e de produção, teremos um tipo de agricultor, o pequeno agricultor, colono, lavrador, camponês, etc. Todo este processo de ocupação das terras foi tão marcante que suas características básicas mantêm-se nos dias atuais, influenciando a ocupação do espaço, a densidade demográfica e a produção de alimentos, as características fundiárias e culturais.

Há que se destacar que paralelamente a esta retrospectiva sócio-histórica, especialmente, a partir do Brasil Império, a questão da terra e da estrutura fundiária foram recebendo um trato jurídico no desenvolvimento nas diversas Constituições. E, uma marca que percebemos em todas, é que elas se inspiraram no conceito napoleônico, dando prioridade à propriedade privada, individual.

Assim, por exemplo, na Constituição do Império (1824), em seu artigo 179, XXII consta que:

A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte: XXII - É garantido o Direito de Propriedade em toda sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos em que terá lugar essa única exceção, e dará as regras para determinar a indenização.

Na Constituição Republicana (1891) são mantidos os princípios da Constituição de 1824, sendo que em seu artigo 72, §17 é assegurada a inviolabilidade da propriedade, sendo que este direito se mantem em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação, mediante indenização prévia. Com isso se atende os interesses da oligarquia rural brasileira.

Entre a Constituição da República (1891) e a Constituição de 1934 surge o Código Civil de 1916, trazendo a marca do privado, liberal e individual, não tendo alcance social, consolidando o sistema jurídico da posse e das propriedades. Por este Código de 1916 a estrutura fundiária da Lei nº 601/1850 é mantida e com isso continua a monopolização da terra, baseada no latifúndio, destacando os coronéis como privilegiados.

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A Constituição de 1934 apresenta alguma novidade, como o usucapião “pro labore” (artigo 125), introduzindo o conceito de interesse social e coletivo, conforme art. 113, § 17:

A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 17 - É garantido o direito de propriedade que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização.

Tal sistema fica inalterado com a Constituição de 1937, tratando a propriedade em seu artigo 122, §14, e inovando apenas em relação à possibilidade de se definir, legalmente, “o conteúdo e os limites” das indenizações e das desapropriações:

A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 14 o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia, ou a hipótese prevista no § 2º do art. 166. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício. (Redação da pela Lei Constitucional nº 5, de 1938) (Suspenso pelo Decreto nº 10.358, de 1942).

A Constituição de 1946, após a ditadura do Estado Novo, inova quanto ao uso da propriedade e mantem o conceito de interesse social em seu artigo 141, § 16 combinado com o art.147:

A Constituição assegura aos brasileiros e a estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro.

O uso da propriedade será condicionada ao bem estar social. a lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”.

No contexto da Constituição de 1946 é que surge a preocupação com a fixação do homem no campo, tendo em vista o fenômeno da urbanização, do êxodo rural, das favelas e da exclusão social, tal como podemos perceber pelo artigo 156: “A lei cuidará da fixação do homem no campo, estabelecendo planos de colonização e de aproveitamento das terras públicas. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes de zonas empobrecidas e os desempregados”.

A Emenda Constitucional (EC) nº 10 de 1964, durante o período da ditadura militar, inova no sistema de indenização por expropriação, antecipando a Lei nº 4.504/64, que traz como principio fundamental a função social da propriedade.

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Registra-se que, desde a criação a Lei de Terras (1850), a aquisição da propriedade da terra transmitiu-se de geração a geração, de forma a manter ou a aprofundar a desigual configuração fundiária herdada dos tempos coloniais. Mas, não há dúvidas que no que tange ao caráter político do processo de ocupação e demarcação das terras no Brasil, a criação do Estatuto da Terra foi um dos acontecimentos maiores, antes da Constituição de 1988.

Entretanto, a questão referente ao acesso à terra através da reforma agrária e da função social da propriedade ganha espaço nos debates no Brasil um pouco antes do Estatuto da Terra. E, diga-se de passagem, foram os diversos movimentos camponeses que lutam pelo acesso à terra que forjam o surgimento do Estatuto da Terra e demais conquistas históricas para o campesinato e sociedade como um todo.

1.2 A Formação Sócio Histórica do Campesinato

A formação do campesinato se deu com o surgimento da humanidade. Bem antes do surgimento das classes sociais ele já produzia sua existência (Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA, 2003, p. 9). Nos diversos tipos de sociedade, ele esteve presente, produzindo alimentos e integrando a população. Em cada momento histórico, e em determinada sociedade, foi desenvolvido um tipo de luta e de resistência, a partir de necessidades e de seus interesses; e foram transformando e transformando-se, reproduzindo seu modo de vida e de produção.

Assim, não se pode dissociar as origens e desenvolvimento da estrutura agrária da formação histórica do campesinato, uma vez que ambas estão intrinsicamente interligadas. Neste sentido, podemos afirmar que o campesinato no Brasil é o resultado do enfrentamento por acesso à terra e, neste processo, ele se faz como classe, se recriando e se reproduzindo nas suas lutas e resistências.

Em outras palavras, simultaneamente com o desenvolvimento do ordenamento fundiário, o campesinato brasileiro se constituiu como sujeito social, político, econômico. Foi do encontro de povos, nos enfrentamentos das crises e conflitos agrários, que se moldou a identidade, um jeito, o jeito camponês. Nisso, mediante perspectiva histórico-política, nos propomos compreender a participação deste sujeito através dos diferentes períodos da sociedade brasileira, nos diversos sistemas fundiários que vão se sucedendo.

Para Lamarche (1993, p. 179) a agricultura camponesa brasileira foi profundamente marcada pelas suas origens coloniais, caracterizada pela grande propriedade, monocultura,

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escravidão. Em cada novo momento histórico novas marcas foram sendo introduzidas. E os camponeses desde o início foram fragilizados, dependentes social e politicamente, além da mentalidade forjada por relações de senhorio e de vassalagem. Aqui está uma das raízes de nossos camponeses: o campesinato nasce como uma classe a serviço do modelo colonial, para suprir as necessidades do setor dominante da economia.

[...] nasceu no Brasil sob o signo da precariedade: precariedade jurídica, econômica e social do controle dos meios de trabalho e de produção e, especialmente, da terra; caráter extremamente rudimentar dos sistemas de cultura e das técnicas de produção; pobreza da população engajada nesta atividade, como demonstra a grande mobilidade espacial e a dependência ante a grande propriedade (LAMARCHE, 1993, p. 180).

Entretanto, em termos de contribuições culturais e sociais as bases da formação histórico-camponesa são situadas nos índios, negros, mestiços, imigrantes, que acima identificamos como “encontro de povos”.

Assim, pela lógica de expansão do capitalismo, os colonizadores invadiram as terras além-mar. Em nome da “espada e da cruz” escravizam, aculturam e aniquilam os diversos grupos de povos existentes. O próprio sistema das sesmarias, ao não reconhecer os indígenas como seres humanos, foi um sistema programado para banir a cultura e a raça indígena. Neste sentido, os primeiros excluídos do processo de colonização são os índios, escravizados e expulsos de suas terras.

Depois, outros grupos são excluídos: negros, mestiços, um enorme contingente de brasileiros, gente sem proteção das elites e do poder, marginalizados do processo de desenvolvimento econômico e social.

Havia uma interdição racial e religiosa no acesso à terra. Na base, este acesso estava regulado por critérios baseados na relevância da pureza de sangue e da pureza de fé. Dessas concepções derivava um direito que era o direito dos vencedores e dominadores de gentes de outras raças e outros credos. Então, o direito não se configurava em relação a pessoas que tivessem, por exemplo, como então se dizia, mácula de sangue, pessoas que não eram brancas de quatro costados, cujos bisavôs não fossem, também eles, brancos e puros de sangue (MARTINS,1997, p.17).

Assim, com a chegada dos colonizadores, a terra, que era livre e patrimônio coletivo, passa a ter dono e, os homens e mulheres que eram intimamente ligados à terra livre, passam a vaguear pelas terras escravas. O que restou foi, posteriormente, dizimado pelos brancos, pela modernização, pois, na lógica do sistema, “terra é mercadoria”, progresso é obra da “civilização branca”.

Tratando-se do Rio Grande do Sul, a presença dos indígenas é riquíssima. Com a colonização viraram presas e vitimas da ganância dos colonizadores. Segundo Zarth (2002, p.

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50) foram caçados pelos bandeirantes: “O indígena era o único produto do sul realizável no comércio, no mercado de escravos do sudeste e nordeste do Brasil”, sendo que a última excursão acontece em 1641, ocasião em que são derrotados pelos indígenas e padres jesuítas.

Um segundo grupo na formação camponesa são os negros, que mesmo submetidos ao jugo do latifúndio, se tornam elemento constitutivo na formação dos camponeses brasileiros. Aliás, a escravidão do povo negro foi a base fiadora das oligarquias e do latifúndio, base do poder dos senhores, pois a estrutura fundiária foi caracterizada e profundamente marcada pela escravidão, até os primórdios do século 19.

A entrada em cena dos negros no Brasil teve como objetivo colocar à disposição dos senhores das sesmarias farta mão-de-obra para o trabalho braçal, considerado desprezível e sem dignidade para os colonizadores. Ou seja, a introdução dessa mão-de-obra deu-se com vistas ao suprimento das carências nas lidas cotidianas, para abastecer fazendas e vilas e suprir o mercado europeu, carente de matéria-prima e de produtos de subsistência.

No Rio Grande do Sul (Zarth, 2002, p. 49) a presença dos negros foi pouco marcante durante os primeiros séculos, devido razões geográficas não propícias aos interesses mercantis, tais como não ter ouro e prata, não oferecer vantagens para o cultivo de produtos tropicais, ser distante e não oferecer segurança para aportar navios, além de ser povoado por povos indígenas. Entretanto, não se pode desconhecer ou minimizar a presença dos negros no sul; o certo é que negros escravos estiveram presentes nas Reduções Missioneiras, nas estâncias, como roceiros, encarregados da produção para consumo, campeiros que cuidavam do gado, domésticos, nas charqueadas e atividades artesanais, como lanceiros na Revolução Farroupilha, etc.

Na verdade, não há motivos para supor que estancieiros da região missioneira não utilizassem cativos. Estâncias pastoris, como quaisquer outras, faziam parte de uma sociedade que adotava um modelo produtivo no qual o uso de escravos era algo comum (ZARTH, 2002, p.117).

Pelo visto, a escravidão deixa suas marcas; foram quatro séculos de exploração do trabalho escravo. O homem negro foi feito instrumento de trabalho, pagão, serviçal considerado sem capacidade de gerenciamento e de desenvolvimento. À custa da exploração, foram sendo formadas riquezas necessárias para o estabelecimento da coroa e das elites portuguesas no Brasil.

Entretanto, foram os negros, mesclados com os índios, resultando os caboclos, que se proliferaram e se dedicaram cada vez mais à agricultura de subsistência, abrindo matas em busca de nova vida, dilatando as fronteiras do Brasil.

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Em período mais recentemente, os Imigrantes vêm se juntar como mais um elemento na formação do campesinato. Segundo Paulo Zarth (2002, p. 69) as primeiras tentativas de instalar pequenos agricultores no Rio Grande do Sul ocorreram em meados do século 18. Estes imigrantes chegaram a partir de 1740, vindos da ilha de Açores e com apoio oficial da Coroa, que tinha como objetivo e fins estratégicos a distribuição de terras e o povoamento da região.

O destino dos imigrantes, primeiramente, era a região das Missões, como substitutos dos povos das reduções. Diante das dificuldades com o transporte, os portugueses acabaram ficando perto dos rios e mares, em Porto Alegre, Vale do Rio dos Sinos e Taquari. Aí praticaram uma agricultura de subsistência e tendo dificuldades na comercialização do excedente produtivo, uma vez que cada estância funcionava como uma célula independente. Por isso, acabaram por se integrar à economia da pecuária a partir de 1780, ligando-se às charqueadas.

Para Zarth (2002, p. 72) a pequena propriedade entra no sul a contra gosto dos senhores das estâncias, mas com adeptos nas esferas do governo. A saída encontrada pelo governo para não desgostar os estancieiros e sair-se bem com os pequenos agricultores foi deixar as estâncias com os estancieiros e partir para a colonização das terras de matas. Com isso, a partir do século 19, entre 1824 e 1920, a realidade no Rio Grande do Sul e no Brasil começa a ser modificada, pois os imigrantes começam a chegar de forma planejada, provenientes da Itália, Alemanha, Polônia e demais imigrantes europeus.

Em relação à procedência dos imigrantes, Santin (1986, p. 36) dirá que os caminhos dos imigrantes começaram nas vertentes da pobreza, da insegurança no futuro, muitas vezes na revolta, sob o peso do trabalho penoso e pouco lucrativo, por vezes, até com a angústia da fome e da penúria. Entretanto, uma das principais razões foi a questão da expansão do capitalismo internacional, envolto num processo de convulsão social, com um excedente de população pauperizada, ameaçando os processos de industrialização e de concentração fundiária na velha Europa. Na verdade, os imigrantes são as sobras da Europa, um contingente que não mais encontrava lugar e não mais tinha importância para o capitalismo europeu.

Nisso a Lei das Terras estava em sintonia com a chegada dos imigrantes; realizava-se de acordo com os interesses internacionais, isto é, abria-se a possibilidade de aliviar a Europa das “sobras” e, de quebra, impulsionavam-se as colônias, colocando-as nos trilhos do capitalismo, como nações dependentes, exportadoras de açúcar, café, matéria-prima. E o

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Brasil, por sua vez, procurava resolver seus problemas internos decorrentes da transição da mão-de-obra escrava para a livre.

Sandra Jatahy Pesavento (1982) analisa dois momentos distintos neste processo de chegada dos imigrantes e de colonização: o primeiro, associado à presença dos imigrantes alemães - o objetivo do governo estava relacionado com o campo político de povoamento e de colonização das áreas vazias, não produtivas. Com isso, o governo intencionava criar núcleos de proprietários a fim de neutralizar a oligarquia regional, resolver o problema do abastecimento do mercado interno, diminuindo as importações de alimentos e auxiliar no desenvolvimento urbano e na incipiente industrialização recém-iniciada no país; o segundo, associado à presença dos imigrantes italianos, de 1875 em diante, com o objetivo de desviar estes contingentes às fazendas de café, como trabalhadores assalariados. Para estes, não se pensava, em hipótese alguma, na realização do sonho do pedaço de chão para trabalhar.

No entanto, os imigrantes vindos para o sul do país puderam realizar núcleos coloniais prósperos, que passaram a funcionar como chamariscos para novos imigrantes. Para estes imigrantes, agricultores pioneiros e desbravadores foram feitas doações de porções de terras, transformando-os em pequenos proprietários, os “colonos” do sul.

Destaca-se, esta colonização não se deu em terras desocupadas. Aqui viviam agricultores nacionais: lusos, descendentes dos povoadores de São Paulo, mestiços de negros, índios e lusos, apoiados na erva-mate e na roça de subsistência. Estes agricultores, caboclos em sua maioria, foram expulsos e desapropriados, causando o fenômeno chamado dos “intrusos”, muitos ainda alojados nas costas ribeirinhas dos rios, especialmente o Uruguai.

A importância e papel dos imigrantes ampliam-se com a segunda etapa da colonização, que segue uma dinâmica própria: desbravamento, fixação dos pioneiros, produção de produtos para as necessidades básicas, consumo direto, etc. As novas comunidades vão gerando novos espaços, novas lideranças, criando diferenças sociais, econômicas, políticas. Em outras palavras, com o esgotamento do solo, o fracionamento das colônias por herança e outros fatores conjugados, os imigrantes serão deslocados continuamente para novas buscas. Em decorrência deste processo, os minifúndios crescem em quantidade e em problemas.

Apesar de inúmeras dificuldades, os imigrantes ocuparam as terras, configuram nova estrutura fundiária, forçando o Estado e empresas a intervir na configuração da estrutura agrária e na formulação de “políticas públicas”. Ou seja, a chegada dos imigrantes significa a

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introdução de um novo tipo de propriedade, de novas relações sociais de produção, de um novo período na história dos camponeses.

Assim, a bagagem específica de cada cultura (índios, negros, imigrantes, etc.) cindiu e fundiu novas identidades, isto é, a agricultura que perpassou o período colonizatório até o período dos migrantes, foi um processo contraditório de autonomia e de submissão, com progressiva seleção e exclusão, resultando em proprietários e excluídos da terra.

A introdução do paradigma da modernização na agricultura6, manifestado com o início da crise da agricultura colonial, influenciou de forma decisiva, transformando a sociedade agrária colonial, os camponeses, seu modo de vida e de produção. Em relação a esta crise, Brum (1983, p. 87s), destaca alguns fatores, tais como o esgotamento da fertilidade natural do solo, a utilização de métodos e técnicas que negligenciavam a defesa e a recuperação da terra, a redução substancial do tamanho das propriedades, etc. Este processo de decadência culmina no período entre 1950 e 1960, ocasião em que ocorre a corrida dos “gaúchos” para outros estados, iniciando novo ciclo de exploração agrícola em terras de matas.

O sistema capitalista internacional acompanha a evolução da decadência da agricultura colonial, impulsionando o desenvolvimento da “revolução verde” 7, afirmando a morte da agricultura tradicional, diante da baixa produtividade, do pequeno retorno de renda aos agricultores.

Para tanto, será incrementada a industrialização do país e depois desta inicia-se a industrialização da agricultura, com a expansão da grande empresa capitalista na agropecuária, que provoca a intensificação da produção e a elevação da produtividade do trabalho. “Essa industrialização da agricultura é exatamente o que se chama comumente de

penetração ou desenvolvimento do capitalismo no campo” (SILVA, 2001, p. 14).

Com o desenvolvimento deste processo, segundo Silva (2001, p. 46), resolve-se a “questão agrícola” 8, embora se agrave a “questão agrária”, pois a rápida industrialização, iniciada a partir dos anos sessenta, aumentou a miséria e a exploração de grandes massas camponesas, fazendo crescer o contingente de sem-terra, excluídos pela concentração da terra,

6 Processo de mudanças nos métodos e técnicas de produção, na utilização de máquinas, equipamentos e insumos, nas relações sociais de produção.

7 Pacote de medidas com o objetivo de aumentar a produção e combater a fome das populações pobres. A promessa era acabar com a fome através do emprego de sementes melhoradas, novos cultivares, novas técnicas de preparo e manejo do solo, plantas e pragas, uso de fertilizantes, pesticidas, mecanização das lavouras, etc. Hoje, estaríamos vivendo a revolução verde II, fase onde a biotecnologia reatualiza promessas e milagres. 8 A questão agrícola está relacionada com a produção, a liberação de mão-de-obra para a indústria, às matérias primas, etc. A questão agrícola diz respeito aos aspectos ligados às mudanças na produção em si mesma: o que se produz, onde se produz e quanto se produz (GRAZIANO DA SILVA, 1980, p. 11).

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além de serem atraídos a ocupar espaços de trabalho na cidade, constituindo o exército de reserva de origem camponesa.

Em outras palavras, a origem das grandes cidades e de seus graves problemas tem suas raízes no modelo de desenvolvimento adotado e na manutenção do latifúndio, que, explorando os camponeses e contando com privilégios do Estado, cada vez mais enriqueceu e concentrou terras. Esta oligarquia rural agroexportadora e de origem colonial mesclou seus interesses entre agricultura, comércio, finanças e indústria. E hoje, constitui um setor sem o mínimo interesse em realizar transformações nos pilares do poder e na realização da reforma agrária.

1.3 Conflitos no Campo e as Políticas de Reforma Agrária

Os conflitos e lutas pela existência camponesa são marcas do desenvolvimento e do processo de ocupação do país, pois em todos os períodos da história, os camponeses lutaram para entrar na terra, produzir, construir espaços onde fosse possível desenvolver relações justas, uma sociedade que tivesse como base a cooperação e a solidariedade; lutaram contra o cativeiro, pela liberdade humana, das mais deferentes formas, construindo organizações históricas para desenvolverem lutas contra a expropriação.

Bernardo Monçano Fernandes (1999), ao tratar das lutas e resistências camponesas classifica a história das resistências em quatro fases, a constar: o principio, o entretanto, a organização e as origens do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).

A primeira fase da resistência camponesa é o “Principio”, que corresponde às contribuições dos índios, negros da ordem escravocrata. Os povos indígenas foram os primeiros a conhecer este processo, pois território brasileiro tem sido produto da conquista e destruição dos territórios indígenas. Simultaneamente às lutas dos indígenas nasceram as lutas dos negros; dessas lutas e das fugas dos escravos nasceram os quilombos, verdadeiras terras da liberdade e do trabalho de todos.

A segunda fase da resistência camponesa é o “Entretanto”, a partir da segunda metade do século 19, através da resistência dos homens livres, mas sem-terra, com o avanço das grilagens, dos coronéis, do latifúndio. Este é o período das lutas da primeira república.

Neste período, os posseiros, parcela de camponeses sem terra lutam contra a expropriação que os gera e sofrem a violência dos jagunços, cães dos latifundiários e grileiros. Travaram lutas

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imemoráveis, demonstrando grande capacidade de resistência e de construção social, tais como as lutas de Canudos, Contestado, Trombas e Formoso, etc.

A terceira fase da resistência camponesa é a da “Organização”, fase das lutas organizadas, onde os camponeses passam a enfrentar o latifúndio e o Estado. Especificamente, entre os anos de 1950 a 1960, desenvolvem-se as experiências das Ligas Camponesas que sacudiram o campo brasileiro. Decorrente destas lutas foi criada a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), sendo que no governo Goulart se iniciou processo de reforma agrária, sendo criada a Superintendência de Política Agrária (SUPRA). Entretanto, a violência do golpe militar de 64 sufocou o anseio de liberdade dos camponeses, sendo extinta a SUPRA e criado o Instituto Brasileiro da reforma agrária (IBRA), órgão sem vontade política em impulsionar a reforma agrária.

A quarta fase da resistência camponesa acontece a partir do surgimento do MST (1979-1985) e com o surgimento de outros movimentos camponeses como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), que coordenados pela Via Campesina, travam lutas pela terra, reforma agrária e sobrevivência camponesa. Nesta fase, acampamentos, assentamentos, políticas públicas, passam a ser novas formas de luta de quem já está na terra, dos que são expulsos de suas terras ou daqueles que nunca tiveram a terra. Para estes a conquista da terra se consuma na conquista da democracia, na conquista de sua identidade camponesa, na conquista da cidadania.

Em outras palavras, todas estas lutas e resistências tiveram sempre como motivação

um pedaço de terra, um pedaço de pão, a luta pelo acesso à terra, o direito de ser camponês. Tais lutas, hoje, ganham outro caráter, que é o reconhecimento como camponês, a regularização de suas terras, a soberania alimentar, a agroecologia, etc.

Tais lutas e resistências, as de ontem e as de hoje, são práticas políticas; nasceram com o latifúndio, com a concentração e exclusão, mas se atualizam nas diversas formas de lutas pela terra e lutas pela reforma agrária.

A luta pela terra é a prática política desenvolvida pelos camponeses através da história, com ou sem projetos de reforma agrária, sendo luta específica, desenvolvida pelos sujeitos interessados. Já a luta pela reforma agrária é mais recente, sendo que o primeiro projeto remonta à década de 60, com o Estatuto da Terra. Esta faz parte da política pública de caráter institucional da sociedade, cuja instituição compete ao Estado realizar.

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Estas duas formas de luta, pela terra e pela reforma agrária, no entanto, são interativas e complementares, muito embora a luta pela terra possa acontecer sem a luta pela reforma agrária. Esta distinção é importante, pois pode ajudar a compreender porque ainda não se implantou a reforma agrária no país, ou seja, a realidade agrária mostra que o momento é de intensificação da luta pela terra, por meio de diversas formas de lutas e com diversos atores sociais envolvidos.

Aliás, devemos reconhecer que a marcha histórica da luta pela reforma agrária em nosso país tem sido movida pela luta por terra. Os setores populares, nos últimos anos, têm se esforçado, pressionado os governos, garantindo políticas diversas de acesso, democratização, regularização das terras. Contudo, ainda não há definição clara em relação, não obstante a Constituição de 1988 tenha dado especial atenção a questão agrária.

Os camponeses aspiram a reforma agrária. Mas não é qualquer reforma agrária. Trata-se, portanto, de olharmos para qual e por que a reforma agrária. O mais importante é determinar quem é o sujeito do processo da reforma agrária; se é o campesinato, o capital ou é o Estado. Ao definirmos o sujeito, os rumos das políticas e da luta pela reforma agrária também serão determinados em sua direção, ou seja, disso decorrem os encaminhamentos das políticas de crédito, de produção, de comercialização, de organização, etc.

Na compreensão dos camponeses a reforma agrária a ser implementada não é distribuição de terras sem que se toque no mais importante que é a estrutura fundiária.

[...] não é pulverização antieconômica da terra; é sim, uma redistribuirão da renda, do poder e de direitos, aparecendo as formas multifamiliar e cooperativada como alternativas viáveis para o não fracionamento da propriedade [...] não desejam a mera distribuição de pequenos lotes, o que apenas os habilitaria a continuarem sendo uma forma de barateamento de mão-de-obra para as grandes propriedades. Mas almejam uma mudança na estrutura política e social no campo, sobre a qual se assenta o poder dos grandes proprietários de terras (SILVA, 2001, p. 54-55).

Ou seja, a reforma agrária passa a ser pensada como uma estratégia política para romper o monopólio da terra, estratégia esta que segundo Silva (2001, p. 105) aparece como a única solução democrática possível para a questão agrária.

A reforma agrária é uma política pública necessária e urgente, vista não apenas como uma distribuição de terras e infraestrutura produtiva, mas ligada a muitos outros fatores e dimensões, envolvendo educação, cultura, economia, política, inserindo-se num processo de transformação maior, ou seja, tocando as relações sociais, tendo como objetivo a própria transformação do sistema, de sua estrutura fundiária e de seus processos produtivos.

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Significa que a reforma agrária é um conjunto de medidas, de políticas. Inicia pela democratização da terra, dos meios de produção, inclui alterações estruturais no sistema econômico, reorganizando a produção, exige nova política agrícola, novo modelo tecnológico, eliminação do analfabetismo rural, escolas públicas com ensino adequado à realidade, capacitação técnica e ensino superior aos jovens e camponeses, moradia, cultura e lazer, etc. Mas vai além, significa protagonismo, possibilidades de realização dos sonhos, dando dignidade ao ser camponês e sua família, rompendo com a exclusão social.

Neste sentido, Paulo Freire (1977, p. 58) afirma que não basta a transformação latifundista, a mudança da posse, novas tecnologias. Este é um fator indiscutível de mudança na percepção do mundo dos camponeses, mas é necessário ir além, precisa-se de uma ação também sobre o quadro cultural. Ou seja, a reforma agrária não pode limitar-se à ação unilateral no domínio das técnicas de produção, comercialização, antes ela “[...] deve unir este esforço indispensável a outro igualmente imprescindível: o da transformação cultural, intencional, sistematizada, programada”.

Portanto, o acesso à terra e sua regularização invocam a reflexão sobre um dos instrumentos indispensáveis no reordenamento fundiário que é a reforma agrária, entendida como uma política de distribuição e produção de alimentos. Esta opção pela reforma agrária está relacionada com a dignidade camponesa, uma vez que as pessoas só adquirem condição digna com acesso à terra, com condições de produzirem e sobreviverem.

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2 ACESSO À TERRA, JUSTIÇA E CIDADANIA

No presente capitulo, nos propomos analisar o acesso à terra como direito fundamental, exigência para a realização da justiça e para o exercício da cidadania dos homens e mulheres camponesas. Acesso à terra que é inerente à dignidade humana; direito este que historicamente foi negado aos setores populares da sociedade camponesa.

Tendo em vista a proteção da propriedade, a legislação foi sendo criada, em geral, de cima para baixo, com ranço liberal e autoritário, ganhando pouca efetividade e tirando o protagonismo do povo camponês. Ou seja, existe vasta legislação agrária, a exemplo dos diversos institutos agrários que analisaremos, não obstante, os problemas agrários estão a se agigantar e novos problemas vão eclodindo em nossa realidade.

Dentre estes novos problemas, que a legislação não conseguiu dar resposta eficaz, e que deitam raízes no colonialismo, se agravando através dos tempos, temos o problema das irregularidades nas posses, sejam em terras públicas ou de particulares, que se configuram um dos maiores problemas agrários nos dias de hoje, ao lado da luta pelo acesso à terra, gerando exclusão social para amplas camadas, pois, à medida que os camponeses estão nas terras como posseiros, sem titulo dos imóveis, tal situação está lhes acarretando exclusão social, sendo impedidos em acessar políticas públicas, obstaculizando o exercício da cidadania.

Com a Constituição Federal de 1988 novos princípios passam a iluminar a sociedade e a questão agrária, sendo que o Estado Democrático de Direito traz junto de si a exigência do exercício dos direitos fundamentais, o acesso à terra, a dignidade humana, dando à propriedade a função social. Com isso os institutos agrários ganham nova leitura. E nisso, urge a realização da reforma agrária, o estabelecimento de uma política fundiária e política agrícola voltada aos interesses dos setores populares do campo, em vista da segurança e soberania alimentar.

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2.1 Direitos Fundamentais e o Acesso à Terra

A noção de direitos fundamentais tem lastro na história; na origem dos direitos fundamentais encontramos os ideais de religião, filosofia, teologia, que foram sendo passadas de geração a geração.

Canotilho (2002) afirma que as concepções cristãs de direito natural, ao distinguir entre “lex divina, lex natura e lex positiva”, abriram caminho para a necessidade de submeter o direito positivo às normas jurídicas naturais, fundadas na própria natureza do homem.

Os contratualistas introduziram a ideia de direitos naturais do homem, surgindo as cartas de direitos, cartas de franquias, assinadas por soberanos, mais precisamente, na Inglaterra, onde merece destaque a Carta Magna do Rei João Sem-Terra. A propósito, sobre a Carta, Comparato dirá:

Vislumbra-se que o Rei João da Inglaterra assinou a Magna Carta com o intuito de amenizar os conflitos que estavam surgindo em face do aumento dos impostos fiscais. O povo estava insatisfeito com o abuso da progressividade no tocante a esses aumentos. E com isso, passou a exigir periodicamente, que em troca desses pagamentos exacerbados, fossem reconhecidos formalmente os seus direitos como pessoa e como cidadãos portadores desses direitos (COMPARATO, 1999, p. 59).

Embora esta carta, bem como outras que surgiram, não tivessem alcance universal, passaram a ter importância na evolução dos direitos fundamentais, à medida que apontavam para direitos dos homens reconhecidos formalmente, impondo limitações ao poder. As declarações americanas vão incorporar tais direitos e liberdades reconhecidas, sendo que estes direitos do homem passam a ser recepcionados e positivados como direitos fundamentais constitucionais.

Dentre as declarações de direitos, a mais significativa é a declaração de direitos da Revolução Francesa (1789), que se tornou paradigma para a definição de outras declarações universais. A declaração de 1789, ao menos em termos teóricos, propõe eliminar todas as desigualdades e privilégios entre indivíduos, grupos sociais, nações. A igualdade, liberdade e fraternidade foram os eixos condutores deste movimento histórico.

Frisa-se, tanto a declaração americana, como a francesa, tiveram como característica a inspiração jusnaturalista, reconhecendo aos seres humanos direitos naturais, invioláveis e imprescritíveis, direitos de todos os homens, que se tornaram universalmente em princípios, tais como a igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, legalidade, presunção da inocência, etc.

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No início do século 20, outros documentos surgiram, trazendo marcas sociais, tais como a Convenção de Genebra (1864), a Constituição Mexicana (1917), a Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador (1918), a Constituição de Weimar (1919), a Convenção de Genebra sobre a Escravatura (1926).

Entretanto, a Carta das Nações Unidas (1942) tornar-se-á o maior marco na definição dos direitos fundamentais. Sobre ela Sarlet (2002, p. 91) afirma: “A declaração Universal da ONU consagrou que todos os seres humanos são iguais em dignidade e direitos. Assim, constituiu o pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia [...]". Deste modo, a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) torna-se um dos maiores documentos universais de garantia dos direitos fundamentais.

Para a doutrina, os direitos fundamentais, em sua trajetória histórica e evolutiva, passaram por dimensões (gerações), como as de primeira9, segunda10 e terceira geração11, sendo que para alguns doutrinadores existe uma quarta12 e quinta13 geração de direitos. Para Sarlet (2002), as gerações dos direitos surgiram "como direitos dos indivíduos frente ao Estado, mais especificamente, como direitos de defesa, demarcando uma zona de não intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face do seu poder". Esses direitos se constituíram como direitos do povo e para o povo, com a finalidade de impor limites na esfera de atuação do Estado em relação aos indivíduos.

Não obstante este histórico evolutivo, ainda há certa falta de clareza sobre o que sejam os direitos fundamentais, sendo que eles se configuram sob os mais diferentes nomes, tais como, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos naturais, liberdades fundamentais, etc. Para Sarlet, normalmente, os direitos humanos e direitos fundamentais são utilizados como sinônimo, precisando ser distinguidos:

O termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação com documentos de direito internacional por referir-se aquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser

9 Primeira Geração: são os chamados de direitos civis e políticos, que englobam os direitos à vida, à liberdade, a propriedade, à igualdade formal, as liberdades de expressão coletiva, algumas garantias processuais, etc.

10 Segunda Geração: Essa geração é constituída pelos direitos econômicos, sociais e culturais com a finalidade de obrigar o Estado a satisfazer as necessidades da coletividade, compreendendo o direito ao trabalho, à habitação, à saúde, educação e inclusive o lazer.

11 Terceira Geração: são denominados de direitos de solidariedade ou de fraternidade, compondo os direitos que pertencem a todos os indivíduos, constituindo um interesse difuso e comum, transcendendo a titularidade coletiva ou difusa, ou seja, tendem a proteger os grupos humanos (Ex.: direito à paz, á autodeterminação dos povos, ao meio ambiente, qualidade de vida, a utilização e conservação do patrimônio histórico e cultural, etc.). 12 Quarta Geração: seriam os direitos ligados à pesquisa genética, surgida da necessidade de se impor uns controles a manipulação do genótipo dos seres, em especial o do ser humano.

Referências

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