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2.3 A Lei e a Realidade: Posse, Usucapião e Regularização de Terras Particulares

2.3.2 A Lei e a Realidade Fundiária

Atualmente há um descompasso entre o que a lei aponta e o que se vive na realidade fundiária. E isto fica visível através do levantamento realizado pelo MPA\RS sobre a situação dos imóveis rurais, em famílias que possuem até 04 módulos rurais de terra. Os resultados deste levantamento é que nos oportunizam um confrontamento com a lei, indicando possiblidades a serem trabalhadas na regularização e acesso à terra.

Historicamente, a forma de apropriação da terra e sua distribuição entre os agricultores decorrem do sistema econômico implantado e das especificidades históricas que o desenvolvimento assumiu em cada região. Este processo de ocupação das terras foi tão marcante, que suas características básicas, mantêm-se nos dias atuais, influenciando a ocupação do espaço, a densidade demográfica, a produção de alimentos.

A modernização tecnológica e a capitalização da agricultura, também, assumiram um papel de destaque nas alterações estruturais, uma vez que as grandes propriedades, com condições favoráveis para mecanização, apresentaram vantagens comparativas às demais na absorção e incorporação dos progressos tecnológicos, diante dos estímulos de políticas econômicas, levando a uma tendência de absorção, desprestígio ou eliminação das pequenas propriedades.

Todo este processo levou vastos setores camponeses a ocuparem terras, apossando-se das mesmas, sem registro algum da terra. Por outro lado, por exemplo, os camponeses que já tinham a terra e com idade avançada, foram repassando suas terras aos herdeiros e estes a seus sucessores. E neste repasse a titulação não foi contemplada como algo importante. Desta forma, há muitas propriedades onde quem ocupa a terra é um herdeiro, sem ter documento da terra em seu nome.

Para além da posse e questão da herança, por ocasião da elaboração de projeto e no levantamento das hipóteses, foram demarcados alguns dos problemas da realidade fundiária19. Tais hipóteses acabaram por se confirmar em sua totalidade.

A pergunta principal do levantamento se referia ao instituto da regularização, onde era perguntado: “Os imóveis estão regularizados?” Não estando regularizados, passava-se às razões das tais situações irregulares.

19 Posses em terras públicas, passíveis de concessão de título público; posses em terras privadas sem contestação, passíveis de usucapião; posses em terras herdadas cujos inventários não foram realizados por vários motivos, entre eles, processo burocrático complexo e custo da transmissão de herança incompatível com a capacidade de pagamento dos herdeiros, gerando nova situação de irregularidade fundiária, em escala cada vez maior e sem perspectiva de solução, bloqueando acesso a políticas públicas, tais como, crédito, previdência social, tarifa social de energia elétrica, habitação rural, entre outros a identificar; posse em terras adquiridas através de contratos particulares de compra e venda cuja escrituração não ocorreu e o vendedor faleceu antes de realizá-lo.

A figura a seguir (nº 01) indica que 36% dos imóveis se encontram em situação irregular, sendo que os motivos principais para a irregularidade são o não encaminhamento de inventários, arrendamentos de terras, por morar com os pais, por ter comprado direito, por ter ocupado, ser posseiro, etc.

Figura N.º 01: MPA\INCRA, 2013.

Observa-se que todas estas situações dos imóveis são tidas como irregulares diante do marco legal da documentação vigente no país. Entretanto, “não são irregulares” do ponto de vista da posse, a medida que são posses justas, pacificas, ou seja, estes imóveis não se caracterizam como posses violentas, clandestinas ou precárias, conforme dita o artigo 1.200 do Código Civil. Deste modo, estes imóveis foram adquiridos às claras, sem abuso de confiança e sem o uso de atos de violência.

Daí decorre a necessidade, diante das exigências legais, em dar um passo a mais, buscando os atos do Registro de Imóveis20, que nada mais são do que ato jurídico que decorre da vontade das partes e onde o ato administrativo passa a ser condição de eficácia do negócio jurídico.

Não custa lembrar que até a sanção da Lei n° 10.267/2001 as questões de regularização ainda não ensejavam maiores preocupações e não tinham grande precisão; o que valia era o dito no ato da coleta das informações cadastrais, não havendo nenhuma norma que

20 A Lei nº 6.015/73 (artigos 227 a 235) afirma que a matrícula é a existência do imóvel no cartório; é seu número de inscrição, seu número de ordem. A partir da matrícula se identifica quem é o proprietário, se o imóvel é urbano ou rural, se é público ou particular. A matrícula está vinculada ao princípio da unitariedade (cada imóvel tem apenas uma matrícula e cada matrícula se refere a apenas um imóvel). Logo após a matrícula vem o ato do registro, que está regulado nos artigos 1.227 a 1.245 do Código Civil/2002 e nos artigos 167, I e 236 a 245 da Lei nº 6.015/73. Este ato de registrar consiste em realizar a descrição de todas as situações referentes ao imóvel, ou seja, traduz as situações jurídicas relacionadas ao imóvel, inclusive com as averbações (informações referentes a apresentação de outros documentos e que é feito à margem do registro).

estabelecesse rigor posicional (métrico ou geodésico) a ser seguido para realizar o registro do imóvel.

Tal situação fez do meio rural um ambiente propício para a existência de propriedades com registros imobiliários diferentes da sua real situação, imóveis rurais apresentando mais área do que o registrado, áreas com sobreposição de matrículas, proprietários que na realidade não eram proprietários, mas que apenas detinham a posse da área, sem a necessária matrícula e regularização junto ao INCRA. Foi a partir deste novo marco legal e considerando a crescente oferta de políticas públicas voltadas ao campo, que o reconhecimento do acesso à terra, o direito de propriedade e a regularização das posses passaram a ocupar a pauta e o debate público.

Portanto, esta situação de irregularidades, diante das exigências legais, têm causado grandes dificuldades aos camponeses e a sociedade; a não delimitação dos imóveis rurais tem impossibilitado a inserção dos camponeses em políticas públicas de desenvolvimento agrário, trazendo sérias consequências para a sua sobrevivência econômica, sua reprodução sociocultural. E é por isso que a regularização fundiária passa a ser condição para a inclusão social, para o ordenamento do território e para o desenvolvimento emancipatório do campo.

Mas porque não se regulariza tais imóveis? Para tal pergunta, o levantamento destaca algumas das principais motivações, como podemos ver pela figura logo a seguir.

Figura nº 02: MPA\INCRA-RS, 2013

Pela Figura sobressai o “contrato de compra e venda não concluídos” (29%). Este instituto, também é conhecido sob outras denominações, como promessa de compra e venda,

contrato preliminar de compra e venda, promessa bilateral de compra e venda, etc. O Código Civil designa promessa de compra e venda, conforme o seu artigo 1.417.

No compromisso de compra e venda, sob o aspecto contratual, há um acordo de vontades, de cunho preliminar, por meio do qual uma parte compromete-se a efetuar em favor de outra, em certo prazo, um contrato de venda definitivo, mediante o pagamento do preço e cumprimento das demais cláusulas. Tecnicamente, o contrato preliminar objetiva a conclusão de um contrato principal e definitivo, possuindo todas as características de contrato, ou seja, no contrato preliminar, pré-contrato ou promessa de contratar já existem todos os requisitos de um contrato.

No compromisso de compra e venda não concluído resultante do levantamento, torna-se claro que a intenção das partes não é precipuamente a conclusão de outro contrato, mas a compra e venda do imóvel de forma definitiva. Destarte, afasta-se esse compromisso da noção que poderá existir em outros contratos preliminares, pré-contratos propriamente ditos, ou mera carta de intenções ou acordo de cavalheiros. O nexo contratual de alienação da coisa é o aspecto primordial desse compromisso.

Outro instituto em destaque é a questão dos inventários em andamento ou não encaminhados. Há, em relação a isso, muitos herdeiros que vendem seu pretenso quinhão, com inventário em andamento; trata-se na verdade de pretensos donos que poderão ou não ser homologados como legitimamente constituídos. Diga-se de passagem, que tratando de bens imóveis, só haverá a transmissão de propriedade se na matrícula do imóvel a venda para o novo proprietário for registrada e passar a constar o comprador como sendo o novo proprietário deste bem, pois a propriedade não se transfere por mera tradição.

Portanto, em termos legais, a transferência de bens imóveis só pode ocorrer mediante instrumento público, neste sentido, cabe salientar que meros contratos particulares de compra e venda não transfere a propriedade de um imóvel por si só; podem significar uma promessa de compra e venda, no máximo. Outras situações relacionadas a este instituto ligam-se aos custos para encaminhamentos dos inventários, ficando então morando com os pais, delimitando internamente o quinhão em que podem plantar, construir, considerar-se como proprietários.

Em relação ao instituto do “arrendamento” (artigo 3º, Decreto nº 59.566/66), ele é um contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração

agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais da lei. Os imóveis pesquisados que se encontram nesta situação, em sua maioria, assim se enquadram, estando também presentes contratos verbais, muitos não renovados, outros em conflito com os proprietários.

Em relação à “compra de direitos”, na verdade são como contratos de gaveta, sendo estabelecidos por acordos particulares entre partes, onde se observa a transferência do imóvel de forma irrestrita. Nisso se juntam os imóveis, inclusive adquiridos pelo Banco da Terra, assentamentos de reforma agrária, etc. Assim, esta compra de direito é uma forma encontrada para a celebração do acesso à terra, por meio de um instrumento particular, de um compromisso de compra e venda, que não pode ser registrado devido à discordância formal com as leis vigentes. Esta compra de direito equivale a adquirir um imóvel como simples posseiro, com todos os riscos evidentes, onde o comprador não registra o seu título, portanto, não se torna proprietário do imóvel.

Em relação ao instituto da “doação”, há que se dizer que ela é reconhecida como um contrato, respeitando a disposição prevista no artigo 538 do CC que dispõe: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Veja-se que, pelo conceito, sobressaem alguns elementos importantes, tai como: é um contrato onde intervém duas ou mais partes, a liberalidade, a transferência de bens e aceitação do donatário.

A previsão contida no artigo 218 da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973) estabelece que para o registro dos atos de liberalidade deve haver prova de aceitação do beneficiado. Esta situação para ser formalizada por meio de escritura pública exige do notário cuidados especiais relativos aos limites impostos pelo legislador à liberalidade praticada em favor do donatário, tais como, à capacidade ativa e passiva das partes, à vedação imposta ao doador de transferir a integralidade de seu patrimônio ao donatário, à necessidade de preservação da legítima dos herdeiros necessários, às particularidades do regime patrimonial dos doadores e donatários, a outorga uxória marital, etc.

A inobservância dessas restrições e cláusulas específicas pode gerar defeitos jurídicos relevantes com o desvirtuamento do negócio jurídico e até mesmo o desfazimento completo do ato, pela presença de vícios insanáveis que poderiam ter sido evitados.

Fenômeno que despertou a atenção foi o elevado número de pequenas propriedades abandonadas. Situação tipificada como “tapera”, em que a casa, os galpões, as cercas, os pomares, as hortas, o poço de água, etc. são as testemunhas materiais que atestam que ali

morou e viveu uma família camponesa. O abandono da antiga residência está patente pelo mau estado de conservação das benfeitorias que durante anos foram o lar dos seus moradores. A não mais existência dos moradores é um indicativo das transformações econômicas que se efetivam na realidade, na situação fundiária.

Este fenômeno das “taperas” indicam fatores como o envelhecimento da população rural, que nos coloca outro problema, o da sucessão familiar. Aliás, a sucessão familiar entre as famílias camponesas empurrou para fora a maior parte dos filhos, seja porque houve a modernização do campo, seja porque as oportunidades da cidade foram sedutoras. Evidentemente, este esvaziamento também foi favorecido pelo sistema de educação escolar, onde se transportou crianças e jovens para a cidade, que acabam não mais retornando para a propriedade familiar. Deste modo, este fluxo de saída dos filhos e mesmo de famílias camponesas vai esvaziando as comunidades rurais e envelhecendo a população que permanece.

Mas, as taperas, também, são consequência das falências dos sistemas agrários, estão ligadas ao fenômeno da crise e decadência dos sistemas agrários concentradores, tornando-se um sistema agressivo aos pequenos agricultores, expulsando-os da terra, ou através políticas capitalistas industriais, que capturam os pequenos, submetendo-os à produção, tirando a sua autonomia, mantendo-os como apêndices de suas agriculturas voltadas à exportação.

Assim, diante de nós, cada vez mais campos desertos, dando lugar ao capim, aos

pinus illiotis, ao gado vacum, a soja, etc. E o povo, que do campo foi expulso, ficou com as

perdas e as tragédias. Lugares que foram tudo ontem e que hoje não são nada, ou como diz Lobato (1995): “Ali tudo foi, nada é”. Resta para estes lugares a conjugação dos verbos no pretérito: “lá tinha!”, pouco presente e futuro se vislumbram.

Diante deste quadro pintado não se trata de chorar as perdas sociais destas “cidades mortas”, tal como diz Lobato. As tarefas históricas se colocam diante de nós a começar por compreender a realidade fundiária real, intervindo politicamente e tecnicamente, em vista da garantia dos direitos fundamentais, da regularização e do acesso à terra.

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