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1 O TRÁFICO DE SERES HUMANOS: A HISTÓRIA DIALOGANDO COM A CONTEMPORANEIDADE

1.2 O tráfico de seres humanos na contemporaneidade

1.2.1 Direitos humanos como tema global

Ocorreu, nos anos noventa, uma reestruturação das relações internacionais, tendo em vista a emergência de um novo contexto com prioridades distintas das expressadas anteriormente. Assim, assuntos que estavam à margem das preocupações internacionais e, que eram considerados low politics sob a ótica da estrutura da Guerra Fria, transformam-se em elementos integrantes desse conjunto de novos temas que provocam inquietude à comunidade internacional. De acordo com Alves (1994, p. 3):

Eliminada a divisão simplificadora do mundo em dois grandes blocos estratégicos, em que problemas e aspirações locais submergiam no contexto das rivalidades das duas superpotências, as realidades e conflitos nacionais tornaram-se muito mais transparentes. Foi possível, assim, verificar com maior clareza o estado deplorável dos direitos humanos em vastas massas territoriais e o grau de ameaça que isso significa à estabilidade internacional.

Destarte, as instituições da antiga ordem da Guerra Fria já não eram capazes de assegurar uma governança global estável no ambiente de transição e indefinição que se delineava, aparecendo os direitos humanos como uma das preocupações que emerge do ostracismo e passa a se apresentar como parte dessa incipiente ordem. As maciças violações aos direitos humanos, ocorridas no transcorrer do século XX, mostram-se na contramão de um mundo que vem presenciando robustos avanços tecnológicos e científicos, sendo todas as barbáries ocorridas incompatíveis com esta nova realidade. Trindade (2000, p. 157) pondera que:

[...] nunca, como neste século, se verificou tanto progresso na ciência e tecnologia, acompanhado paradoxalmente de tanta destruição e crueldade. Mesmo em nossos dias, os avanços tecnológicos e a revolução das comunicações e da informática, se por um lado tornam o mundo mais transparente, por outro geram novos problemas e desafios aos direitos humanos. Mais que uma época de profundas transformações, vivemos, neste final de século, uma verdadeira transformação de época.

Neste período, passou-se a adotar um conceito denominado “Human Security”, o qual buscava ampliar o escopo da visão militarista clássica de segurança internacional, ao incorporar outras prioridades. Desvinculava-a, assim, de sua conexão restrita ao uso da força militar para a defesa do território nacional ou para evitar um ataque nuclear (UNITED NATIONS, 1994, p. 22).

O termo “Segurança Humana” surgiu no contexto das Nações Unidas, sendo mencionado pela primeira vez no relatório denominado “Human Development Report”, de 1994, o qual abordou temas diversos, que fariam parte da nova agenda das Nações Unidas, no ambiente que se delineava. E ressaltava:

With the dark shadows of the cold war receding, one can now see that many conflicts are within nations rather than between nations. For most people, a feeling of insecurity arises more from worries about daily life than from the read of a cataclysmic world event. (UNITED NATIONS, 1994, p. 22).

Tratava de caracterizá-lo como um paradigma de um emergente modelo de segurança internacional, a partir do qual a segurança não deveria ser obtida apenas por meio de armas, mas também mediante o desenvolvimento humano sustentável. Dessa maneira, a denominada “Segurança Humana” deveria ser alcançada, levando-se em consideração os seguintes problemas que afetam as pessoas em todo o planeta:

Economic security (assuring every individual a minimum requisite income); food security; health security; environmental security; personal security (protecting people from physical violence); community security and political security (UNITED

NATIONS, 1994).

Essa perspectiva, baseada no “Human Security”, pode ser entendida como um mecanismo informal e flexível de ação coletiva, que objetiva captar a atenção internacional para essas novas questões, buscando aplicá-la na promoção da paz e do desenvolvimento. A ONU procura incorporá-lo em seus mais variados programas (HENK, 2005).

Ademais, deve-se salientar a relevante participação da sociedade civil, sob representação das ONG´s, para que essa nova agenda incorpore, além de temas relacionados à concepção clássica de segurança, também outros que se apresentem mais relevantes para os indivíduos do que para os Estados. E que também representem ameaças à segurança interna dos países e do próprio sistema internacional. Nesse sentido, questões como o crime organizado, degradações ambientais, os efeitos da globalização, entre outros, passam a figurar num projeto de governança

A década de noventa pautou-se pela realização de inúmeras conferências e eventos referentes à proteção dos direitos humanos10. Consubstanciava-se a retomada de sua importância no cenário internacional, além de consolidar padrões universais a serem incorporados nas legislações internas dos países. Estas também tiveram a incumbência de promover uma avaliação acerca dos aspectos positivos e negativos, no concernente aos variados temas discutidos nos últimos anos, a qual pode ser percebida nos documentos e programas de ação desenvolvidos. Cunha (1998, p. 666-667) corrobora essa afirmação ao pontilhar:

Alguns parâmetros ou pautas para esta reflexão são conhecidos e encontram-se nas diferentes Declarações e Programas de Ação adotados pela comunidade internacional durante as cimeiras mundiais organizadas pela ONU sobre diferentes temas relacionados com o desenvolvimento humano.

Essas inúmeras conferências internacionais trataram de assuntos diversos e correlatos, como os direitos humanos, meio ambiente, direitos das mulheres, populações, entre outros. Esses esforços ressaltam a importância de se utilizar uma visão holística, em um mundo cada vez mais interdependente, no qual variados temas se apresentam convergentes e parte integrante de um mesmo problema. Para Alves (2001, p. 35): “Vários ingredientes uniram todas as conferências da década num processo contínuo de alimentação e retroalimentação sistêmicas”, ou seja, “formaram um conjunto de configuração quase sistêmica, que aborda as questões de maneira abrangente e integrada, como temas globais, a envolver toda a humanidade” (ALVES, 1996). Um interessante aspecto decorrente das referidas conferências foi a relevante atuação de organizações da sociedade civil, nas discussões e elaboração dessas declarações, configurando-se num atuante ator nesse cenário, desde que:

[...] estão compelidas a intervir na construção de agendas alternativas para um novo Estado democrático, e para democratizar as políticas públicas de forma a poder contribuir para um ambiente capaz de favorecer a proteção alargada e abrangente dos direitos humanos para todos os grupos sociais (ALVES, 2001, p. 18).

10 As seguintes conferências, todas ocorridas na década passada, conformam a denominada agenda social das Nações

Unidas: Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992; II Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Viena, em junho de 1993, antecedida pela Conferência de Teerã de 1968; Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, havida no Cairo, em setembro de 1994; Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social, realizada em Copenhague, no ano de 1995; IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, em setembro de 1995, antecedida, por três outras: no México, em 1975; em Copenhague, em 1980; e em Nairobi, em 1985; II Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat- II), realizada no ano de 1996, em Istambul, precedida pela Habitat-I, em Vancouver, no ano de 1976 (ALVES, 2001)

Dessa forma, o fortalecimento das sociedades civis, no marco dessas conferências internacionais, proporcionou a criação de uma verdadeira agenda social das Nações Unidas, assim como evidenciou uma mudança de padrão nas Relações Internacionais, haja vista que o Estado não mais se apresentava como o único ator de peso nesse contexto. Ademais, o conceito de “poder” dissipou parte de sua estrita vinculação com aspectos meramente econômicos e militares, uma vez que, hoje em dia, tanto potências econômico-militares quanto países em desenvolvimento procuram se utilizar do soft power, vislumbrando a obtenção de credibilidade na esfera internacional. (CELSO LAFER apud ALVES, 2001, p. 39-40). Assim, a antiga soberania absoluta dos Estados-nações foi perfurada pela mudança de padrão nos preceitos de legitimidade internacional de um Estado, passando este a atuar conjuntamente com novos parâmetros e novos atores internacionais de forma multilateral.

Ressalte-se que, dentro do cenário anteriormente descrito, assim como sob a ótica das conferências internacionais dos anos 90, o tema dos direitos humanos possuiu importância especial: “[...] o elemento que lhes forneceu caráter eminentemente antropocêntrico e orientação social foi, sobretudo, a preocupação com os direitos humanos, com as características que a legitimaram em Viena (ALVES, 2001, p. 35)”. Por essa razão, a Conferência de Viena, realizada em 1993, possuiu um papel-chave para o transcurso das demais conferências.

Esta objetivou a reavaliação do processo de desenvolvimento, na esfera dos direitos humanos, ao longo dos anos, buscando a revitalização do programa mundial, em prol desses direitos; além de haver acordado em aplicar, com maior vigilância, as normas já codificadas. Assim, a maior preocupação se pautava na proteção dos direitos humanos, em diversos contextos, e não, na simples normatização dos mesmos, tarefa esta já amplamente realizada, desde a Declaração de 1948 (ALVES, 1996, p. 105).

Para Trindade (2000, p. 147), a mencionada conferência: “[...] procedeu a uma reavaliação global da aplicação de tais instrumentos e das perspectivas para o novo século, abrindo campo ao exame do processo de consolidação e aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos”.

Assim, reafirmou a importância fundamental da Declaração Universal e dos demais tratados para a proteção dos direitos humanos; consagrou a universalidade, indivisibilidade e

interdependência dos direitos; afirmou que respeitar os Direitos dos Homens deve ser prioridade dos governos; reconheceu a democracia como um direito humano; ressaltou a importância do papel das ONG´s na conscientização e educação acerca do tema; tomou medidas inovadoras em prol da defesa dos direitos das minorias; como também colocou a questão dos direitos da mulher e da criança num patamar destacado, no âmbito dos esforços da ONU para proteger os direitos humanos (TRINDADE, 1997, p. 205).

Portanto, o tema dos direitos humanos re-emerge de um longo interregno de esquecimento, para se transformar, a partir da última década do século passado, no pilar fundamental a dar sustentáculo à agenda social desenvolvida sob a égide das Nações Unidas.