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1.2 O campo dos media e o monopólio da visibilidade pública

1.2.2 O disciplinamento do jornalismo

No interior do campo dos media, há dois principais subcampos (ou subsetores), que são responsáveis pela maior parte daquilo é produzido na forma de conteúdo pelos meios de comunicação: o jornalismo e o entretenimento. Formalmente, eles operam a partir de lógicas diferentes, com objetivos distintos, cada um deles utilizando procedimentos e uma linguagem específica. O jornalismo tem a função de informar, o entretenimento a de divertir.

43 Ambos são normalmente distinguíveis e separados por uma fronteira bastante visível, mas hoje é cada vez mais comum observar conteúdos que mesclam elementos dos dois.

Mais do que simplesmente produzir modalidades de conteúdos para os meios de comunicação, esses dois subcampos estabelecem os principais valores no interior do campo dos media, determinando a ação deste na estrutura social. Como os meios gerenciam a maior parte do conhecimento que o indivíduo de hoje adquire sobre o mundo, não é exagero dizer que o jornalismo e o entretenimento impõem alguns dos mais significativos valores e formas de organização à sociedade atual, pela singular capacidade do campo dos media de mobilizar os indivíduos em torno de idéias e valores comuns.

O subcampo do jornalismo tem a informação como seu principal produto, cujo status se modificou com o passar do tempo. A difusão de informações começou como um objetivo em si mesmo, o que permitia a sua realização a partir de ideais aos quais grupos de pessoas aderiam, como funcionava no caso da imprensa partidária. Com o avanço do capitalismo e o surgimento das empresas de comunicação, a difusão da informação passa ter interesses essencialmente econômicos. A partir disso, o status e o significado de informar teve sua apreensão social bruscamente modificada ao longo de todo o século XX.

A mercantilização da informação dá outro significado ao ato de informar. A produção de informação se transforma em prestação de serviço, incluindo capital alienável à sua troca. As organizações de comunicação, então inseridas em um contexto de competição capitalista e guiadas principalmente pela lógica do lucro, passam a tratar a informação como mercadoria, fabricando-a segundo procedimentos industriais de produção. Com isso, a informação ganha um lugar de origem cada vez mais importante.

A informação passa a ser produzida a partir de um conjunto de técnicas profissionais, procedimento que começa a ser mais valorizado do que a falta de métodos sistemáticos de produção que imperava na imprensa partidária, literária e operária. É o início da profissionalização do jornalismo. Além disso, a informação se transforma em uma mercadoria qualificativa, cujo valor está baseado no seu caráter de credibilidade. Essa mercadoria adquire um valor social, um significado compartilhado de credibilidade, o que lhe dá legitimidade para ser absorvida como verdade, como dado.

O surgimento das chamadas indústrias culturais de informação, além de darem à informação um novo significado, modificou profundamente o funcionamento da atividade jornalística. O exercício do jornalismo de forma autônoma, como ocorria desde o século XVII, se torna impraticável em um cenário de poucas empresas de comunicação, as quais

44 concentram a maior parte da produção. A informação adquire certo caráter de impessoalidade e se identifica menos com o profissional que a produziu e mais com a empresa a qual está vinculada. Ocorre o que Marcondes Filho chamou de neutralização do emissor da informação, na medida em que o processo produtivo se propõe a desaparecer com os traços subjetivos (1986, p. 38).

Aos poucos, portanto, o jornalismo institucionaliza-se socialmente como um lugar especializado de produção de discursos sobre a realidade. Para tanto, legitima-se na medida em que proclama os valores da objetividade, do profissionalismo e da imparcialidade. Os três concedem à informação um valor mercadológico significativo, pois juntos formam o modo correto de se fazer jornalismo. No Brasil, a instauração desses valores só aparece de modo mais visível com a redemocratização, em 1984. Até a década de 1960, os veículos explicitavam os seus posicionamentos políticos e se engajavam em candidaturas.

Com o fim da Ditadura brasileira, a imprensa se apega com grande ênfase aos valores de apartidarismo, imparcialidade e isenção, buscando se posicionar fora do universo de interesses políticos. Era o momento em que, no mundo todo, a garantia de liberdade de imprensa passava a ser encarada como um dos pilares dos ideais liberais de democracia. Nesse contexto, os jornalistas, que passam a dividir funções dentro na própria profissão, concentram um poder de dizer diferenciado e passam a ser notados como detentores de uma capacidade específica de informar e interpretar a realidade.

E, cada vez mais, evidencia-se com maior nitidez a diferença entre os que estão dentro e aqueles que estão fora do campo. Em um contexto de valorização do saber científico, o jornalismo também passa a proclamar a idéia de que apenas a partir de uma técnica, de um método adequado, se pode alcançar um saber confiável, observável e verdadeiro, diferenciando-se radicalmente do saber comum. Desenvolveram-se tipos de saberes, técnicas e práticas para mediar o produto informação, só podendo ser manuseados pelos membros do campo.

Neste sentido, exclui e deslegitima os discursos que não estão subordinados aos seus processos de produção, tornando-os falsos ou não-verdadeiros. Um jornal feito por uma empresa de construção civil, com distribuição maciça, é tomado como não tendo se originado por uma empresa de comunicação, o local por excelência do jornalismo e dos seus produtos. Feito fora da esfera competente e sem as técnicas lá existentes, fica deslegitimado a falar e informar na esfera de visibilidade pública. Cria-se, portanto, a noção de que, por meio de

45 técnicas, é possível deixar de lado a subjetividade dos jornalistas para elaborar um saber considerado isento.

O jornalismo, assim, se transforma em uma disciplina na qual, por meio de um conjunto de técnicas, consegue-se trabalhar discursivamente um fato da realidade para transformá-lo em um texto objetivo, profissional e imparcial. Com efeito, do mesmo modo que a ciência é o único discurso reconhecido para se estudar a fundo os fenômenos da natureza, o jornalismo passa a ser a única maneira legítima de se representar o os fatos e acontecimentos diários. Ao entrarem no subcampo do jornalismo, os agentes precisam passar por um processo de aprendizagem e disciplinamento sobre esses conhecimentos de manipulação da informação.

Entende-se, aqui, por disciplina, o que disse Michel Foucault:

A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso, pode-se fiar em seu super poderio; é um poder modesto desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente (FOUCAULT, 1991, p. 153)

A disciplina definida pelo jornalismo de hoje acaba sendo inevitavelmente incorporada pelo novo agente, o membro recém-ingresso do campo. Cinco delas se apresentam como as mais importantes. A primeira, obviamente, é a consolidação do lead, que consiste na explicitação das principais informações da notícia logo no primeiro parágrafo – ou seja, as respostas às perguntas fundamentais: quem, o quê, quando, onde, como e por quê? A segunda é a pirâmide invertida, técnica que prescreve uma disposição das informações no texto: o início é reservado para as mais importantes (o lead) e segue em ordem decrescente de importância até o final.

A terceira é o estabelecimento de uma divisão entre os espaços reservados para textos de opinião e as notícias, garantindo que estas últimas se preservem da subjetividade dos textos opinativos, e garantam a isenção e objetividade exigida. A quarta técnica prevê a utilização de aspas e sonoras, que são as falas dos entrevistados, para confirmar e legitimar aquilo que está no texto jornalístico, ou mesmo para os entrevistados darem as suas opiniões. A quinta e última técnica é o grande valor dado hoje em dia à imagem, especialmente depois da ascensão da televisão, utilizada como fragmento da realidade.

A articulação conjunta dessas técnicas, que são normas consolidadas nas redações, viabilizaria a concretização da utópica objetividade do jornalismo, que é a ação de retratar o que realmente ocorreu em um acontecimento específico. Embora se saiba há tempos da

46 impossibilidade de se atingir uma narração plenamente objetiva da realidade, dado o teor subjetivo de cada uma das etapas de seleção, apuração e produção dos textos jornalísticos, a busca por essa objetividade é uma ação concedida socialmente ao jornalismo. Trata-se, portanto, de uma forma específica de dizer: um dizer disciplinado por técnicas.

Como disse Bourdieu, os jornalistas “têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais vêem certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas que vêem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é selecionado” (1997, p. 25). E esses óculos devem ser adotados como condição primordial para o ingresso, permanência e busca por melhores posições no interior do subcampo, o que também os posiciona inevitavelmente no campo dos media. Os jornalistas são, por fim, agentes mediáticos competentes para produzir discursos reconhecidos socialmente como verdadeiros.