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6.5 Os ecos da obesidade

6.5.2 Discriminação: o olhar do outro sobre o meu corpo

O olhar externo foi outra categoria muito ressaltada pelos sujeitos participantes do estudo. Eles/as exemplificaram situações cotidianas demonstrando como este olhar desqualifica, em boa medida, suas vidas por meio de conceitos pré- estabelecidos. Conceitos estes não apenas de imagem corporal, mas também de caráter, uma vez que, estes olhares externos frequentemente atribuíam juízos de valores pejorativos ao excesso de peso, associando-o à preguiça e ao descontrole. Segundo Poulain (2013), a apresentação social distante do esperado causa incômodo aos olhares, gerando, consequentemente, sofrimento a quem é observado (vinculado a uma certeza de fatos, de que a sociedade está lhe observando), como pode ser evidenciado nos depoimentos a seguir:

“Eu sempre achei muito difícil. Eu sempre sentia muito das pessoas, eu sentia muito bullying, eu me sentia mal, achava que ninguém gostava de mim”. (E9).

“Ah, eu passava na rua e tinha umas meninas que tiravam sarro de mim, sabe aquela risadinha de deboche? Eu ficava quietinha porque eu pesava 130kg. Hoje essas meninas, que já são adolescentes, estão obesas também! Então, não adianta você rir, porque o dia de amanhã ninguém sabe, né?”. (G11).

“Os outros não deixam você se reerguer, eles pisam em cima mesmo, sem dó! Tem prazer em massacrar! Não só a pessoa que é obesa, todos, em geral, que tem alguma diferença. Quando alguma coisa não está no padrão de beleza, sofre discriminação. E a gente não fica de fora dessa turma. Tiram sarro, fazem piadinha sem graça, piadas que magoam e a gente tem que passar por cima, ficar quieta. Você vai falar o quê? [...] Um dia eu estava passando para ir no mercado, tinham uns homens separando uns tijolos numa construção, aí um falou assim: ‘oh, o botijão (de gás) tá !”. (G8). “Quando você sai na rua, você parece um condenado, tem 500 pessoas cuidando, 500 pessoas olhando. [...] Quando você está no mercado, comprando uma coisa, as pessoas estão ali cuidando do teu carrinho, como se fosse assim (expressão de repreensão), é complicado, mas é assim mesmo!”. (E7).

“Ah, tem discriminação. [...] As pessoas olham para gente e acham que a gente relaxou: ‘ah, você relaxou!’, ‘você come errado, você tá comendo tudo errado, você está cada dia mais gordo!’. [...] Eu estava em um outro lugar, e encontrei uma conhecida que também é gordinha e ela chegou, me

olhou de cima a baixo e falou: ‘como que você é gorda se você come só salada?’. Eu estava almoçando e eu falei assim: ‘eu como salada porque eu tenho um acompanhamento com uma nutricionista. Você quer o endereço?’ (risos). Eu brinquei, né? A mulher olhou para mim e falou: ‘mas eu não sou obesa!’ E você lida com isso no dia a dia!”. (G4).

“Você acaba se tornando um referencial, você é um referencial: na fila do supermercado ou do banco, numa praça, você sempre é um referencial: tipo assim: ficou ficar atrás daquela gordinha ali [...]”. (G5).

Observa-se que o estigma da gordura é uma construção social engendrada em discursos hegemônicos que propagam verdades essencialmente estigmatizantes sobre a pessoa com obesidade que, como já mencionado, a desqualifica, na medida em que as pessoas atribuem juízos de valores ao excesso de peso.

Para Goffman (1988), as redes de relações sociais estabelecidas entre os sujeitos em sociedade estabelecem os meios de categorizar os outros a partir de um total de atributos considerados comuns ou normais para seus membros. Inúmeros ambientes sociais podem contribuir para determinar critérios e estereótipos específicos às pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas e, por consequência, aceitas. Do contrário, o estigma é lançado havendo um traço que se pode impor à atenção e causar afastamento, destruindo a possibilidade de atenção para outros atributos seus, portanto, nas palavras do autor “uma característica diferente da que havíamos previsto”. (GOFFMAN, 1988, p. 14).

Há, nesse sentido, uma gestão da aparência nos processos de individualização do sujeito, na medida em que ele elege seu corpo, isto é, sua aparência, como um valor moral. Na visão de Duret e Roussel (2003), as construções pessoais e coletivas inserem-se, portanto, nas representações contemporâneas das normas de beleza que excluem o gordo, tornando-o marginalizado e estigmatizado.

Isso fez com que esses sujeitos sentissem, diariamente, as mensagens estereotipadas e preconceituosas criadas e legitimadas pela presença física que os marca de forma quase definitiva ao longo da vida. É importante, portanto, discutir como se configura o olhar social normativo que trabalha para excluir e que está presente nas narrativas destes sujeitos. Este se relaciona com um olhar padronizado que exclui sujeitos em situação de obesidade dos contextos de interação social.

As consequências do estigma da obesidade são notadamente incorporadas às falas dos/as participantes, considerando a obesidade algo negativo e feio, mesmo a partir de um olhar subjetivo que se direciona para uma internalização do estigma e para a auto exclusão.

Na esteira da discussão, Scherer e colaboradores (2014) reforçam estas consequências ao informar que diferenciar alguém por alguma característica pessoal significa não permitir que essa pessoa possa usufruir plenamente de seus direitos ou da igualdade de oportunidades. Significa criar barreiras para sua plena realização. Pessoas com obesidade devem se ajustar a um contexto onde os critérios, os princípios e os modelos estão distantes de sua realidade, nesse contexto, a obesidade e suas prováveis consequências tornam-se condições limitadoras e excludentes.

Na configuração da sociedade moderna, ainda e, sob a ótica da unidade fisiológica da imagem corporal, estão presentes, na moda das roupas – como já abordado neste trabalho – questões de acessibilidade e usabilidade de produtos algumas das objeções que os sujeitos em situação de obesidade encontram ao se distanciarem do estereótipo considerado normal, como são exemplificados nos relatos a seguir:

“Eu já cheguei em loja onde eu falava bem assim: ‘aquela blusinha é tão bonitinha, você tem um tamanho maior?’, e respondem: ‘Não! Para teu tamanho eu não tenho!’. [...] Só que a vendedora que está te falando também é gorda, só que ela não vê que ela está fazendo discriminação”. (G4).

“Já entrei em loja e eu não fui nem atendida [...] Tem loja que a gente chega lá, olha e não vem ninguém! Você fica, assim, até incomodada, você vê as pessoas mexendo no celular, às vezes conversando enquanto você está ali esperando. Aí eu pego e saio! Dá vontade de nunca mais entrar naquela loja!”. (E2).

“Me incomoda muito, porque por toda parte que a gente vai, se vai comprar uma roupa... é discriminado: ‘aqui não tem roupa pra você’; você vai passar numa roleta de lotação, você não consegue passar e eles não querem deixar você passar lá na frente e o mais difícil é a turma que fica zombando da gente na rua e a gente tem que ficar quieto”. (G7).

Como exemplificado, as reações que os/as participantes do estudo têm ao cruzarem seus olhares, podem ser traduzidas sob a ótica de um poder agindo sobre a diferença, que deriva de uma moralização ou normatização identitária.

No tocante às dificuldades de acessibilidade e usabilidade de produtos, assim como no relato do/a participante G7 acima, foi possível afirmar que os sujeitos deste estudo já experimentaram situações em que houve o confronto da percepção que tinham do espaço ocupado pelo seu corpo com a real proporção deste no ambiente, tendo como desfecho o embaraço e a vergonha diante da exposição pública da sua forma não adequada aos padrões da sociedade. Isso pode ser visto em mais alguns exemplos abaixo:

"Teve uma vez que eu fui tomar um chopinho em um barzinho da cidade68. Ali tem uns cadeirões altos. Aí eu sentei, me encostei e comecei a tomar o chopp. De repente a cadeira quebrou. Mas o pior que não foi o assento da cadeira, foi o braço dela! Daí todos ao redor falavam: olha ali o gordinho que quebrou a cadeira. Foi só apoiar pra sentar que quebrou o braço. Mas a cadeira era apertada mesmo. Eu me senti horrível, queria fazer igual aquele avestruz que abre um buraco e se enfia dentro". (G9).

“Um dia desses fui sair com um amigo no carro dele, era uma camioneta dessas grandes, sabe? Mas aí, eu não consegui subir nela, ela era muito alta!! Foi aquele sarro!”. (E1).

“E estes dias que precisei ir no banheiro de uma loja, meu Deus, o que era aquilo? Não consegui entrar de tão apertado que ele era: quando abri a porta ela já quase encostava na privada, não tinha espaço para me mexer, aí pensei: ou faço com a porta aberta mesmo ou vou ter que me segurar até conseguir chegar em casa! Aquele dia foi um sufoco!”. (G8).

Neste sentido, Sant'Anna (2001) explica que muitas vezes os espaços públicos e seus equipamentos são os primeiros a excluir a presença de pessoas em situação de obesidade. São inúmeros os exemplos como cinemas, teatros, aviões, ônibus, cadeiras, poltronas, carros e restaurantes que costumam ser mais confortáveis aos magros e pequenos.

68 Por questões éticas, o nome do estabelecimento comercial foi propositalmente retirado do depoimento pela autora do trabalho. Desta forma, houve uma pequena alteração do texto original incluindo a expressão “...em um barzinho da cidade”, para que a leitura e compreensão do texto permanecessem claras aos leitores.

A sociedade, de uma maneira geral, que se preocupa em regular os desvios do corpo poupando suas energias para incluir e acomodar em suas estruturas corpos considerados diferentes e desviantes, quase que obrigando as pessoas a procurar formas para conseguir o emagrecimento (mesmo que, para muitos, não será possível).

As narrativas acima, portanto, refletiram em um estigma corporal em particular, que não pode ser escondido ao olhar externo, mas ao contrário, por sua própria constituição não foi permitido69 circularem nos espaços sociais.

Corroborando com vários trabalhos (PEREZ, 2017; ALMEIDA, 2013; MARCUZZO; PICH e DITTRICH, 2012; YOSHINO, 2010), ao longo das entrevistas e do grupo focal deste estudo foi possível compreender a importância que o olhar externo tem sobre a vida de sujeitos em situação de obesidade considerada grave, e consequentemente de suas RS, chegando ao ponto, em alguns exemplos, como os citados abaixo, do sujeito procurar incutir alguma alteração patológica em seu corpo/vida a fim de justificar sua aparência corporal:

“Você vai se servir e as pessoas estão sempre olhando a tua alimentação. Se uma pessoa magra vai lá e serve um prato enorme, ninguém olha, uma gordinha vai lá e come um lanche, pode ser um lanche menor, um copo de coca (cola) menor e aí todo mundo já fala: ‘é por isso que é gorda’. Mas não é bem assim (exaltada). Não é só a comida”. (E7).

“O pensamento das pessoas em relação à pessoa obesa... eles têm o pensamento completamente fora de... porque, assim, todos eles pensam que se a gente é obeso é porque você come muito, porque você come demais, e não é assim. Às vezes você tem um distúrbio, alguma coisa. Sempre existe uma discriminação em relação à obesidade”. (G1).

Ainda na questão de reconhecimento a partir do olhar social externo, nas falas a seguir, verificou-se a importância do emagrecimento enquanto fenômeno

69 Grifo nosso. A palavra faz alusão à expressão de permissão legal; como por exemplo, em estabelecimentos comerciais em que a cadeira do restaurante pode quebrar ou lojas cujos modelos de roupas ou calçados não dispõem de tamanhos variados ou, ainda, espaço interno dos veículos. Há muitos exemplos em que há incompatibilidade entre e o que é oferecido socialmente e o peso corporal que impede o livre-arbítrio do sujeito em situação de obesidade. Portanto, se democracia e liberdade constituem, atualmente, os pilares político-jurídicos mais importantes do Estado Democrático de Direito, consequentemte, a ausência de uma ou de outra resulta na impossibilidade do cidadão existir em toda a sua plenitude. (ALVES, 2005).

fundamental para a constituição da identidade, pois, acreditavam que, apenas com o emagrecimento, seria possível uma maior interação com o seu ambiente social (próximo ou distante) garantindo-lhes, inclusive, melhora da autoestima. Duas falas, em especial, chamaram a atenção pois referiram-se a esta mudança de olhar frente ao fenômeno do emagrecimento:

“Tem muito bullying. A turma faz muito bullying em cima das pessoas gordas [...] Mas agora, graças a Deus, que eu emagreci bastante, as pessoas me veem com outros olhos, não ficam tirando sarro igual antigamente”. (E3).

“[...] como eu estou ficando mais magra, todo mundo nota e diz que estou ótima, que estou melhor. A gente é mais elogiada”. (G9).

Estas falas corroboram com Mattos e Luz (2009) quando informam que a aparência física está diretamente relacionada à confiança que as pessoas depositam no sujeito. De fato, nestes relatos (e, mesmo, durante as entrevistas/grupo focal) demonstrou-se como a visão do outro interfere na autoestima e na autoconfiança dos sujeitos deste estudo.

Nesta mesma direção, o estigma relacionado à obesidade, diferentemente de qualquer outro (por exemplo: sardas, altura excessiva, etc) tem a seu favor toda a lógica discursiva da área médica científica e cultural. Afinal, é fato que alguém com o rosto repleto de sardas ou excessivamente alto sofre com as consequências desse tipo de corpo, entretanto, não existe nenhuma pesquisa científica afirmando que uma pessoa com estas características seja doente. Opostamente, a produção discursiva médica-científica e cultural enfatizam a cada segundo os males e prejuízos de se ter excesso de gordura acumulada. O que leva, em boa medida, uma legitimação no mundo social do estigma e da discriminação da pessoa em situação de obesidade o que é, justamente, o poder que os discursos exercem sobre os significados sociais atribuídos ao corpo gordo.