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6.6 As tecituras da rede social

6.6.1 Família: uma parceira de cuidados

A família é considerada, por muitos autores, um sistema aberto, ou seja, em constante transformação, cujo papel principal é (ou deveria ser) a proteção psicossocial de seus membros e a transmissão de sua cultura aos seus descendentes (LASCH, 1991). Nessa perspectiva, Scherer et al. (2017) citam a família enquanto fundamental para o processo de desenvolvimento humano e socialização.

Nesta corrente, Sarti (2004) comenta que há em seus membros uma tendência ao etnocentrismo (seja como for composta, vivida e organizada), pois olha- se para o outro a partir das próprias referências, espelhando a realidade exterior naquilo que é ‘familiar’, sem enxergá-la em sua maneira de se explicar a si mesma. Traduz-se o estranho em termos ‘familiares’, o que impede o movimento de estranhamento necessário para relativizar o próprio olhar.

Assim, nesta corrente foram os depoimentos dos/as participantes ao referirem-se às suas famílias enquanto uma espécie de porto-seguro:

“Minha mãe, meu pai, meu marido... Meu marido sempre fala: ‘eu gosto de você do jeito que você é! Se você engordar, se você emagrecer, você é sempre a mesma para mim!’. Minha mãe também nunca se importou, meu pai. [...] Minha família me apoia no que for necessário, menos cirurgia (risos). Eu sempre tive o apoio do meu marido; a minha mãe sempre me levantando: quando eu dizia que estava gorda, ela dizia: ‘não, você está bem, você é bonita, você é gorda inteira’. [...] o meu pai, o meu marido, a minha mãe e o meu irmão nunca se importaram. E tem uma prima que morou com a gente [...] ela é magrinha, magrinha, uma vara, e um dia eu

cheguei em casa e ela estava dentro das minhas roupas, ficou um balaio (risos), mas ela falava: ‘eu queria ser gorda igual você!’, e a gente sempre falava: ‘para com isso!’, porque ela é linda; e ela sempre chegava para mim e dizia: ‘eu te acho linda!’, aquilo era pra mim... o jeito dela chegar pra mim e falar, assim, na simplicidade dela, porque ela é uma pessoa bem simples, ela falava assim: ‘eu queria ser bonita igual você!’. E eu achava ela linda, igual ela é. Isso é um motivo para gente... parar em pé!”. (E1).

“Meu marido é muito tranquilo. Quando eu faço aquelas dietas loucas, ele fala para eu não fazer: ‘eu te conheci você não era tão gordinha assim, mas não tem problema nenhum’. Ele é bem compreensível”. (E7).

Na esteira dos pensamentos de Sarti (2004), segundo os depoimentos, a família teve a função de dar sentido às relações entre os sujeitos e servir de espaço de elaboração das experiências vividas. Assim, a família atuou como uma espécie de filtro através do qual se vê e se dá significado ao mundo, mesmo que, para o mundo fora dessas paredes, o filtro não garanta a proteção necessária.

É possível observar nestes discursos a franca naturalização das relações sociais diante do sujeito em situação de obesidade. Essa naturalização, segundo Sarti (2004), acontece de forma mais clara em relação à família do que a outras instituições sociais, porque a família é o espaço social onde se realizam os fatos da vida vinculados ao corpo biológico, como o nascimento, a amamentação, o crescimento, o acasalamento, o envelhecimento e a morte.

Isto pode ser também observado nas falas a seguir, em que a família apresentou, claramente, demonstrações de preocupação, solidariedade, afeto e companheirismo frente ao sujeito obeso:

“A minha família... eles nunca me falaram ‘você tá gorda’. Mas sempre falaram para eu me cuidar. Quando eu falei para eles que eu vinha aqui para a primeira reunião para fazer redução do estômago, minha irmã falou: ‘tenta regime, tenta fazer tudo certinho para não chegar a fazer a redução. Não é porque você está um pouquinho fora do peso que você vai fazer uma coisa que é perigosa, pensa nos filhos’. Da parte da minha família nunca me trataram diferente”. (E2).

“Eu sempre tive incentivo de uma irmã minha que mora lá em Joinville. Ela falou que se eu precisar, o dia que eu fizer a cirurgia, que ela vem ficar comigo. E é interessante que depois de 2014, que eu tinha a minha filha já com 4-6 anos, ela começou a falar: ‘mãe, vamos fazer exercício! Mãe, eu não vou comer mais isso!’. Ela parou de comer tanto doce, ela quis cuidar dela e de mim também, nós duas, junto. [...] O meu filho e a minha nora me

incentivam bastante, minha filha de 10 anos, esses me ajudam muito nessa parte. Minha nora já veio comigo numa reunião (referindo-se ao ambulatório, em um dia que familiares foram convidados a participar da reunião em grupo) e me ajudou [...] deu uma dica. Ela me incentiva muito [...]. Meu filho diz que eu estou bonita [...] isso me faz bem!”. (E9).

O relacionamento afetivo do cônjuge também exerceu um papel importante para o acolhimento, fornecendo um suporte emocional:

“Meu marido ajuda muito em casa. Ele tinha colesterol e diabetes alterado também. Aí, junto, nós mudamos muito a nossa alimentação, mudou sal, mudou a carne, até comprei aquela grelha para assar”. (E5).

Corroborando com os relatos, Sarti (1999) comenta que em toda experiência de dor (fisiológica e/ou emocional, internalizada ou externalizada), especialmente, no tocante ao tema obesidade70, é fundamental considerar a importância da família, pois dela vem as primeiras referências de significado que estruturam as experiências vividas. Isto é mais evidente nas situações com crianças pequenas, por não se expressarem verbalmente, mas pode ser igualmente relevante em todas as fases da vida, mesmo na adulta, pois todos inserem-se numa realidade social, arquitetando a trama das relações que fazem da dor uma experiência com um significado a ser buscado/compartilhado/amenizado.

Desta forma, a dor como realidade social, segundo Sarti (2001), é simbolizada, mediante os distintos lugares sociais dos indivíduos. Dentro de uma mesma sociedade, os sujeitos são portadores de condições sociais diferenciadas, de acordo com as diferenças sociais, entre elas, as de gênero, de classe e etnia ou, mesmo, de aparência corpórea e isso, (des)qualifica a realidade da dor.

E assim, pode haver maior ou menor tolerância à ela, conforme aquilo que do indivíduo se espera, segundo seu lugar social e, segundo as expectativas de quem o cerca (baseada nas expectativas/normativas culturais hegemônicas). Isto

70 Pois, conforme verificado em várias passagens deste trabalho, os sujeitos em situação de obesidade, sofrem, constantemente, dores fisiológicas e emocionais provocadas pela condição em si, mas sobretudo, pelas relações sociais da diferença e do estigma.

pode ser observado no relato a seguir, em que o sentimento de compaixão diante da dor do outro pode ser manifestada como evidência de uma desigualdade, revelando uma distinção social entre quem sofre e os que não sofrem, como sugeriu Hannah Arendt (1971 apud AGUIAR, 2004) sobre a questão social. É possível inferir, portanto, que não há a real compreensão deste discurso, por parte dos/as participantes deste estudo, enquanto uma tentativa de normatização dos hábitos:

“A família da gente acaba sendo a base, acaba sendo um reflexo. Mas há uma cobrança, há uma preocupação: ‘nossa, você engordou demais’, ‘nossa, tem que parar de comer’. Até na hora de servir em casa: ‘oh, não está comendo demais? Não está repetindo muito?”. (E7).

Quando o sujeito que sofre percebe esta manifestação de desigualdade, há nele um sentimento de mais dor, ou mais frustração, perda de referência; sobretudo quando ela vem de quem menos se espera: a família. É o que tratará o subcapítulo a seguir.