• Nenhum resultado encontrado

6.1 O processo de constituição das representações sociais dos

6.4.1 Sou doente porque sou obeso/a

No bojo dessa lógica argumentativa, pode-se afirmar que o estado de saúde de uma pessoa em situação de obesidade está vinculado diretamente ao patológico, mesmo havendo uma normalidade fisiológica e/ou psicológica em seu corpo, ou quando o sujeito se sente bem, e não doente. No âmbito dessas

representações, a compleição corporal, em si, já se constitui uma desordem patológica, como é possível observar nos relatos abaixo:

“Não sou saudável! Tenho muita dor no corpo, muita dor nas costas, muita dor no joelho, minha coluna deu um desvio assim (mostra uma curva para esquerda) que nem o doutor falou, o ortopedista falou que não tem o que fazer, não tem cirurgia, não tem nada, é só emagrecer, por isso ele me encaminhou para cá! A minha diabetes está controlada, 109, não passa disso, mas estou tomando remédio!”. (E2).

“Doente. Falta de ar por tudo”. (E3).

“Meio doente. [...] eu tenho muita dor na coluna, minha perna também dói muito, também tenho problema no rim, problema no fígado, por isso que eu estou querendo fazer (a cirurgia)! O problema maior é para minha saúde. Então, por isso é que eu acho que eu sou doente. Eu ando bastante, eu quase não paro, mas aí começou essa dor na perna e essa carne aqui (apontando para a extremidade do pé) é adormecida, eu quase não sinto ela, dói os dedos e a sola (do pé) e eu não tinha isso”. (E5).

“Sim (enfática)! Indiretamente, sim! Porque a pessoa obesa vive cheia de limitação”. (E7).

“Eu sou uma pessoa doente, porque a gordura é doença, né? Eu penso assim, porque a gente faz de tudo para emagrecer e não consegue! Para mim é uma doença!”. (E8).

“Eu acho que sim! Talvez seja por causa disso que a obesidade é considerada uma doença e que as pessoas tão mudando um pouco a maneira de pensar sobre as pessoas que são obesas, porque antes as pessoas só relacionavam a obesidade à alimentação, ao comer demais”. (G8).

Nos relatos acima, todos/as consideraram a obesidade como doença corroborando com o discurso médico no âmbito do qual formaram seu campo representacional; mantendo-o, assim, culturalmente enraizado.

Estar doente, vulgarmente, pode significar ser tóxico ou indesejável, ou ainda ser socialmente depreciado, pois o projeto reflexivo de construção da identidade no qual o corpo desempenha um papel central, pode estar comprometido na sua singularização. (CUNHA, 2014). O que seria desejável, segundo Canguilhem (2009, p. 144), é uma vida longa de experiências das sensações agradáveis, a capacidade de relacionar-se trocando vivências e sentimentos, é a possiblidade

eficiente de utilizar de sua capacidade física e mental, é a ausência de dor ou sofrimento, é um estado no qual o corpo sente o mínimo de desconforto e se percebe enquanto um “ser no mundo”.

Para Soares Neto (2005), a partir da replicação destes discursos

sobre ser doente, os sujeitos tornam-se os próprios agentes de regras da saúde:,

consciente ou inconscientemente; também dos comportamentos, dos desejos e da beleza. Foucault (2009; 2006), diante disto, afirma que o poder exercido pelos discursos da verdade não é externo, repressor ou violento, mas sutil, pois produz sob panos as subjetividades, isto é, produz o próprio sujeito.

Por meio da temática do biopoder (FOUCAULT, 2009; 2006), é possível compreender as duas linhas de forças envolvidas na produção de subjetividades que, diretamente, se interligam de forma a haver uma perfeita complementação: de um lado da linha, o poder totalizante, o qual cria aparatos estatais capazes de governar populações, tendo o combate a obesidade uma meta da saúde60, ou seja, um ato de biopolítica61, na medida em que a vida, efetivamente, se tornou uma preocupação política, ou seja, um alvo privilegiado do poder; na outra ponta da linha, encontram-se as técnicas individualizantes, consistentes em saberes e práticas destinados a dirigirem os sujeitos de modo permanente e detalhado, direcionando o sujeito no que, como e quando deve comer, quantos minutos diários de atividade física deve praticar, os exames de sangue, imagem, cardiológicos e demais “check ups” periódicos que devem ser realizados para manter-se dentro da “normalidade” esperada62. Em outras palavras, a biopolítica pode ser encarada como um ato de medicalização social dos sujeitos em sociedade, independentemente da compleição corporal. (NEVES e MENDONÇA, 2014).

60 Como visto no capítulo “o Sistema Único de Saúde (SUS) as políticas públicas de atenção ao indivíduo em situação de obesidade”, presente neste trabalho.

61 Para Foucaul (2004a), a biopolítica, seria uma nova (ou outra) tecnologia de poder; ela desenvolve mecanismos com funções diferentes dos mecanismos disciplinares. Ela produz previsões, estimativas, estatísticas, demografias e medições globais. Trata-se, portanto, não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal indivíduo (gordo, por exemplo), enquanto indivíduo, mas, essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais, desses fenômenos no que eles têm de global, ou seja, a gordura como algo que afeta a vida, o homem como espécie, como ser biológico. Na biopolítica, é preciso baixar a morbidade e, para isso, é preciso aumentar a longevidade e estimular novas formas de viver. É preciso criar dietas, medicamentos e protocolos de exercícios visando o emagrecimento.

62 Apoiando-se em Foucault, o conceito de biopoder mostra-se relevante para a compreensão da sociedade atual, pois permite evidenciar a ação dessas duas linhas de forças, tendo em vista a importância assumida pela ciência médica e pela biotecnologia nas últimas décadas, cujos saberes e técnicas de manipulação da vida conheceram um vertiginoso desenvolvimento. (FURTADO e CAMILO, 2016).

Deleuze (1992, p. 221) também se tornou relevante neste ponto da análise, na medida em que a “Sociedade de Controle” auxilia a pensar em como o processo de regulação ininterrupta e ‘naturalizada’ transcende a vida das pessoas de uma maneira em geral, mas, sobretudo, aquelas em situação de obesidade. Tal regulação, protagonizada pelo discurso científico e estimulada pela mídia e indústria cultural da magreza, legitima o corpo gordo como um corpo marcado pela falência moral, e que, portanto, deve ser corrigido, alterado e aperfeiçoado. (MATTOS, 2007). Há nestes discursos, portanto, uma tentativa de (re)formulação teórica sobre as normas biológicas, desconsiderando-se as diferenças estéticas como diferenças socioculturais. Como consequência, cita o preconceito, o estigma, a exclusão; afinal, o corpo obeso torna-se, para Foucault (2009; 2006), um perigo político/biológico que deve ser erradicado. Assim, o sujeito em situação de obesidade é “convocado”, através de mecanismos regulamentadores já citados, a mudar de vida, caso contrário, será eliminado da sociedade.

Por ora, nesse contexto empírico, é fato que as pessoas em situação de obesidade internalizaram, de certa forma, o discurso médico-científico sobre sua situação, embora não tenham total certeza se a obesidade é, de fato, uma doença, percebe-se, no entanto, que há um descontentamento discursivo fortemente influenciado pelo conhecimento engendrado deste discurso e reproduzido socialmente.

Além disso, como será visto a seguir, quando questionados/as sobre o estar doente frente ao próprio corpo, para alguns/as, há uma vinculação com outros agravos de saúde não, necessariamente, possuindo relação direta com a obesidade em si. Embora a ciência médica afirme, veementemente, que esse estado corporal se apresenta como a porta de entrada para todos os males futuros, para os/as participantes, é uma dúvida compartilhada que paira sobre algumas destas vidas.