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3. RELIGIÃO, SOCIEDADE E CIÊNCIA

3.3 DISCRIMINAÇÃO

A discriminação pode ser considerada através de duas interpretações, uma tendo-a como positiva e a outra, não. A discriminação positiva vincula-se à diferenciação entre seres humanos, voltada a favorecer determinado grupo de pessoas com certa vulnerabilidade na interação com a sociedade (portadores de deficiência física, da terceira idade, crianças, entre outros). Estes indivíduos, em especial, necessitam de uma discriminação positiva para a proteção de suas vidas. Todavia, existe a discriminação negativa, que fere o princípio de justiça, pilar da ordem social, que prima pela manutenção da igualdade de dignidade humana358. Tal discriminação resulta em desvalorização ou isolamento daqueles a que se destina359.

356 Idem, p. 210.

357 FACHIN. Op. cit., 2001, p. 214.

358 BESSA, M. R. R. - A densificação dos princípios da bioética em Portugal Estudo de caso: a atuação do CNECV. Porto: Faculdade de Direito da Universidade do Porto. 2013. Dissertação de Mestrado em Direito:

Ciências Jurídico-Políticas.

359 MYSZCZUK, A. P.; MEIRELLES, J. M. - testes genéticos, eugenia e contrato do trabalho: análise à luz da

Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Genoma Humano e da Constituição Federal de 1988. Anais.

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Para Bobbio360, a igualdade entre indivíduos é um princípio que, quando não respeitado, traduz-se na prática da discriminação danosa ao ser humano (discriminação negativa), a qual se apoia em três aspectos distintos. O primeiro, calcado em características discriminatórias dos tipos cor da pele ou gênero. O segundo, estabelecido por aspectos culturais e sociais discriminatórios, tais como religião, classe social ou nacionalidade. O terceiro, gerado por situações jurídicas discriminatórias, como situação de estado jurídico ou civil.

Camargo complementa:

“[...] a pessoa humana, pela condição natural de ser, com sua capacidade de inteligência e possibilidade de exercício involuntário do Estado na realização de sua liberdade, se destaca na natureza e diferencia-se do ser irracional. Essas características mostram um valor social diferenciado e fazem do homem não somente um ser existente, e sim indivíduo de domínio próprio sobre sua vida, sendo a raiz da dignidade humana. Assim, todo ser humano, pelo simples fato de existir e poder exercer sua vontade, traz status superior à raça humana, se comparado aos demais seres vivos361”.

O domínio sobre a própria vida faz com que o ser humano, por sua racionalidade, exerça suas vontades, as quais podem repercutir socialmente de forma boa ou ruim; neste último caso encontram-se os comportamentos discriminatórios negativos.

Coutinho assim explica o ato de discriminar:

“O ato ou ação de discriminar, isto é, de distinguir, de desigualar, de fazer diferença, de segregar, pôr à parte por intolerância, xenofobia ou preconceito, seria discriminação, um fenômeno eminentemente social, que guarda conotação de desvalor, por provocar desigualdades entre pessoas ou grupos sociais. A discriminação estaria fundada em ideias preconcebidas que resultariam por levar à posição de inferioridade as pessoas ou grupos atingidos. Nesse sentido, entende-se discriminação como um tratamento desequiparador que decorre de preferência ilógica, fundada em características de sexo, raça, cor, etnia, religião, origem e idade362”.

Na contemporaneidade, este espectro discriminatório se ampliou, pois a discriminação genética foi incorporada, tornando-se prática negativa e lesionando o princípio de igualdade.

Segundo Oliveira e Hammerschmidt,

“Os avanços da investigação genética permitem antecipar, em menor ou maior medida, a probabilidade de que uma pessoa desenvolva determinada enfermidade. O uso que a sociedade pode fazer, da referida informação, abre muitas portas, as quais em sua maioria são positivas, como o é, a possibilidade de identificação, prevenção e cura de enfermidades hereditárias, porém outras são de caráter negativo, com a

360 BOBBIO, N. - Era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1988. p. 48.

361 CAMARGO, C. - Culpabilidade e Reprovação Penal. São Paulo: Sugestões Literárias: 1994. p. 27-28. 362 COUTINHO, M. L. - Discriminação no trabalho: mecanismos de combate à discriminação e a promoção de

igualdade de oportunidades. Brasília: OIT, 2005. Disponível em

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possível discriminação pelo seu uso, a chamada discriminação genética. Nessa linha, diz-se que algumas discriminações atentam não somente contra o princípio da igualdade, mas também contra o da dignidade363”.

Assim, a potencialidade da ciência genômica em eleger diferença necessita de supervisão, a fim de que não se torne um meio de exclusão gerador de discriminação negativa.

Para Fachin, a diferenciação do ser humano pode ocorrer quando “a eleição dos dotados em grau melhor, ou a exclusão dos malformados, sugere o controle que remete a uma suposta qualidade das raças, sendo a seleção de embriões um exemplo364”.

Dessa maneira, a discriminação genética cinge-se ao reconhecimento dos direitos vinculados à raça humana. Tanto que a Declaração Universal sobre o Genoma e os Direitos Humanos, estabelecida pela Unesco em 1997, institui proibição à prática discriminatória com base em características genéticas (artigo 6)365.

A Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, proclamada pela UNESCO em 2004, inscreve em seu artigo 7 a necessidade de coibir a prática discriminatória de ordem genética, evitando a estigmatização de um indivíduo ou de grupos (familiares ou

não)366 367. Ainda, a Convenção sobre Direitos do Homem e a Biomedicina, proferida pelo

Conselho da Europa em 1999, destacou em seu artigo 11 a proibição à discriminação feita em virtude de patrimônio genético368.

Todo ordenamento normativo internacional visa coibir a prática discriminatória negativa com base nas informações genéticas do ser humano. Isso significa um pleno reconhecimento dos Estados membros da Unesco de que as informações genéticas podem gerar efeito discriminatório, gerando diferenciação de indivíduo ou de grupos (familiares ou não), a qual pode resultar em injustiça social369.

363 OLIVEIRA; HAMMERSCHMIDT. Op. cit., 2008, p. 186. 364 FACHIN. Op. cit., 2001, p. 215.

365 UNESCO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA - Declaração Universal Sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos. Tradução Regina Coeli. 1997. [Em

linha]. [Consult. 10 de maio de 2015]. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001229/122990por.pdf.

366 UNESCO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA - Declaração Internacional Sobre Dados Genéticos Humanos. Tradução Comissão da UNESCO Portugal. 2004.

[Em linha]. [Consult. 1 de maio de 2015]. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_inter_dados_genericos.pdf.

367 Ambos os artigos citados no parágrafo apresentam-se na íntegra no terceiro capítulo do presente estudo,

precisamente no subitem “3.4 Normatização Internacional”.

368 SILVA, M. P. - Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina Anotada. Lisboa: Edições Cosmos,

1997. p. 11.

369 MIRALLES, A. A. - El proyecto genoma humano: algunas reflexiones sobre sus relaciones con el derecho.

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Logo, quando se elege uma diferenciação genética, colocada de maneira rigorosa, pode-se criar efeito discriminatório, não só em termos de seleção de embriões, pois se pode eleger diferenciação também por meio de exame de sequenciamento genético.

Em um exame de sequenciamento genético podem surgir diferentes tipos de efeito discriminatório, como, por exemplo:

a) em indivíduo propenso a desenvolver algum tipo de doença, sofrendo ele diferenciação mesmo antes de desenvolver a doença contida em seu genótipo; b) em feto propenso a desenvolver alguma síndrome ou doença incurável, sofrendo

ele diferenciação que culmina num aborto eletivo por informação genética, suprimindo sua possibilidade de nascer.

Nas conjecturas citadas, são forjados ambientes para a criação de castas sociais devido à predisposição genética370. Tal fato corrobora a diferenciação ou a preferência entre seres humanos, gerando desigualdade social.

Coutinho esclarece:

“Somente quando a preferência por pessoas ou grupos sociais é fundada em critérios irrelevantes que impedem a igualdade de direitos de se confirmar, essa situação configura-se antijurídica, porque vai de encontro aos valores constitucionais. A discriminação, assim entendida, é uma conduta que interfere de forma negativa nos direitos das pessoas, impedindo-as, por razões injustificadas, de exercer plenamente o direito à igualdade de oportunidades371”.

Decerto, caso não se use a informação genética como ferramenta na busca pelo bem- estar humano, para debelar doenças, esta se tornará um banco de dados perigoso, a servir como um ambiente fecundo para a prática discriminatória. Um banco de dados genético de determinado conjunto de indivíduos pode afetar individualmente a vida de cada indivíduo, com possibilidade de disseminação de dados via tecnologia da informação.

“A informação genética oriunda dos dados genéticos, dados proteômicos e mostras biológicas humanas constitui uma informação que, indo além do conhecimento, desnuda a pessoa humana, porque revela o mais íntimo de sua essência: a constituição genética ou genoma individual sua e de sua família372”.

Esse desnudamento da intimidade humana, gerado pelas informações genéticas, amplia a esfera da prática discriminatória, repercutindo não só no ambiente das relações sociais, como também no ambiente das relações profissionais.

No ambiente empregatício do passado (e, por vezes, ainda no do presente), algumas das determinantes da escolha de candidato a emprego eram: cor da pele, sexo, etnia, religião

370 OLIVEIRA; HAMMERSCHMIDT. Op. cit., 2008, p. 189. 371 COUTINHO. Op. cit., 2005, p.13

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ou número de filhos. Atualmente, acrescenta-se como determinante do recrutamento do candidato a emprego suas informações genéticas, interpretadas até como um curriculum vitae, que pode levar à exclusão da prática profissional373.

Neste contexto empregatício, a eleição feita pela empresa do perfil de bom candidato, que tenha as qualidades genéticas tidas como perfeitas, pode gerar interpretação de inaptidão aos demais candidatos. Em ambiente extremo, o perfil de bom candidato poderia resultar na eleição de indivíduos do tipo hiperprodutivos, e isso geraria uma seleção que implicaria um ostracismo profissional para pessoas com saúde no presente, mas com perfil genético de doença para o futuro.

Para Hammerschmidt, diferenciar geneticamente candidatos a emprego é relevante para o empregador, já que reduz

“[...] os custos derivados de enfermidades potenciais futuras de seus trabalhadores, tanto no que se refere à atividade produtiva em si mesma, quanto às responsabilidades por acidentes originários de seus trabalhadores, além da repercussão contributiva por baixas trabalhistas e aposentadorias antecipadas por enfermidade374”.

Neste ambiente de diferenciação há nitidamente uma conjuntura propícia à discriminação genética entre um trabalhador tido como enfermo e outro tido como são, conforme explicam Myszczuk e Meirelles375:

“As informações genéticas da pessoa do trabalhador não podem estar indiscriminadamente disponíveis ao empregador. A obtenção destas informações suscita problemas tanto em reação ao acesso, como para sua utilização. Há que se saber quem, sob quais circunstâncias e com quais objetivos pré-fixados poder-se-á realizar exames genéticos, obter-se amostras biológicas, permitir-se o acesso à informação resultante da análise genética, determinar-se para quem estes resultados poderão ser comunicados e quais medidas de proteção às informações serão adotadas376”.

Goulart et al. sintetizam assim a problemática da discriminação genética:

“É preciso fazer uma reflexão sobre como essas informações do genoma humano serão utilizadas. Se para um melhor aprimoramento da medicina e, com isso, uma melhora no diagnóstico e tratamento da população, ou se essas informações serão usadas como uma forma de discriminação da população em geral, podendo até provocar uma nova eugenia. O grande desafio é decidir o que a humanidade pretende em relação a este gigantesco salto que, se por um lado acena com possibilidades terapêuticas inimagináveis, por outro exibe um terrível potencial de desestruturação social, provocando mudanças extraordinárias em sua organização e possibilitando a ação de verdadeiros marginais da ciência, que poderão criar legiões de seres humanos com os mais diversos objetivos, nem todos dignos377”.

373 MYSZCZUK; MEIRELLES. Op. cit., 2009, p. 1184.

374 HAMMERSCHMIDT, D. - Intimidade genética & direito da personalidade. Curitiba: Juruá, 2007, p. 175. 375 MYSZCZUK; MEIRELLES. Op. cit., 2009, p. 1184.

376 Idem, p. 1.184.

377 GOULART, M. C. V.; et al. - Manipulação do genoma humano: ética e direito. Manipulation of the human

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Por certo, a ciência genômica não prima pela prática da discriminação negativa, porém tem potencial para tanto. Tal fato vincula a ciência genômica à insegurança, sobretudo a insegurança sobre a forma de manuseio da informação genética, havendo assim um receio intrínseco de seu potencial para a prática discriminatória, seja nas relações pessoais, seja nas relações profissionais378.

Contudo, como se demonstrou, em que pesem os diferentes matizes religiosos, não se vê com acentuada densidade uma discriminação no aceite dos avanços trazidos pelo estudo do genoma humano.

3.4 ANÁLISE DO CAPÍTULO

Criar explicações sobre a vida é algo complexo, pois transpassa a completude física do homem e abrange também sua racionalização, a qual rege seus diferentes comportamentos na incessante busca pela autopreservação na Terra. A racionalização humana engloba tanto preceitos de ordem científica como de ordem espiritual. Nesta esteira é que se estabelecem os saberes da matéria envoltos nas descobertas científicas, assim como os saberes do espírito vinculados às religiões.

Os saberes científicos foram destacados no capítulo anterior, quando tecido o relato sobre a evolução científica até o alcance do PGH. Mesmo havendo uma tendência de ceticismo religioso devido à racionalização científica, o homem não abandonou por completo seus saberes espirituais vinculados às religiões. As descobertas científicas foram fruto de avaliação pelas religiões. E, como não poderia deixar de ser, o PGH também o foi.

Este capítulo abordou posicionamentos acerca do uso científico do genoma humano, elegendo, para tanto, pareceres das três principais religiões monoteístas do mundo, a saber, o Cristianismo, o Islamismo e o Judaísmo. No cômputo geral, todas as religiões, mesmo com doutrinas distintas, são favoráveis às ações para a preservação da vida, revelando-se abertas ao uso do genoma humano como ferramenta para a prevenção e a cura de doenças. Todas se posicionam contra a eugenia, a clonagem humana e a discriminação em contexto genético. Ainda, as religiões se posicionam contra a prática do aborto – no contexto do Catolicismo, sem exceções, e no contexto do Islamismo e Judaísmo, aberto a exceções em circunstâncias de risco para a mãe. No Judaísmo o aborto não é considerado homicídio. No caso da inseminação artificial, as religiões se mostram favoráveis, desde que o material genético provenha de indivíduos casados.

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Refutadas pelas religiões, a eugenia e a discriminação são efeitos que podem surgir em ambiente de informações genéticas. A eugenia consiste num processo de seletividade humana outrora combatida, com vínculo nos preceitos do nazismo e do apartheid, que passou a ter campo fecundo na engenharia genética, repaginando-se com a nova denominação de eugenia liberal.

O ideário de aperfeiçoamento genético, por meio da instrumentalização do ser humano ainda não nascido, encontrou na engenharia genética terapêuticas diversas, tais como: tratar ou evitar doença com antecedência, combater uma malformação, determinar características físicas e usar nova concepção de feto (células tronco) para salvar uma vida em risco.

Seu lado positivo seria a possibilidade de preservação da espécie humana, através da medicina preventiva. Já seu lado negativo seria a interferência para se criar seres humanos perfeitos geneticamente, tal qual uma mercadoria com qualidade, e, ainda, para se eliminar defeitos genéticos, ao se evitar conceber filhos ou fazer aborto devido a genes defeituosos ou quando portadores de alguma síndrome incurável. A negatividade da eugenia liberal repercute como postura discriminatória negativa, pois o gene passa a ser fator de triagem humana, desfavorecendo os portadores de genes deletérios. Pode-se destacar também como situação de discriminação negativa a não contratação de empregado por informações genéticas que indiquem doença no futuro.

Especialmente no caso do ambiente empregatício, a busca por um empregado de gene perfeito, ou a estruturação de um padrão genético predeterminado de empregado, pode engendrar discriminação no mercado de trabalho se o indivíduo não possuir as características ideais. Assim, o candidato a emprego com características genéticas não satisfatórias pode ter sua atuação profissional afetada negativamente pelo resto de sua vida, tornando-se refém de sua carga genética desfavorecida.

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