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2. PROJETO GENOMA HUMANO

2.3 MEDICINA PREVENTIVA

Conforme Arouca257, a antecipação à doença está diretamente relacionada à sabedoria para dela prevenir-se. Trata-se de um saber no âmbito da medicina de igual importância ao saber da cura. Claramente, segundo o autor, o médico tem seu compêndio do saber terapêutico acerca da cura, todavia, deve saber fazer uso da comunicação com o paciente e das ferramentas como exames laboratoriais para fazer frente ao saber da prevenção. Assim, o médico pode obter informações singulares quando realizada a atuação preventiva, alcançando o prolongamento da vida do indivíduo assistido através de aconselhamento preciso.

Arouca sintetiza a situação:

“A Medicina Preventiva como formação discursiva emerge em um campo formado por três vertentes: a primeira, a Higiene, que faz o seu aparecimento no século XIX, intimamente ligada com o desenvolvimento do capitalismo e com a ideologia liberal; a segunda, a discussão dos custos da atenção médica, nas décadas de 1930 e 1940 nos Estados Unidos, já sob uma nova divisão de poder internacional e na própria dinâmica da Grande Depressão, que vai configurar o aparecimento do Estado interventor; e a terceira, o aparecimento de uma redefinição das responsabilidades médicas surgida no interior da educação médica. (...) A Medicina Preventiva é uma nova atitude incorporada à prática médica, e essa atitude deve ser desenvolvida durante o processo de formação do médico, através de meios e pessoal específicos. Assim, esse movimento encontra seu lugar natural dentro das escolas médicas onde profere seu discurso para a mudança, enfrentando a longa luta de

256 BIANCHI, D.; et. Al., - DNA Sequencing versus Standard Prenatal Aneuploidy Screening. N Engl J Med, n.

370, p. 799-808, 27/02/2014.

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preparar novos médicos com a nova atitude preventivista que possa mudar o atual panorama da atenção médica258”. (Grifos do autor)

Como se vê, a Medicina Preventiva permite um cuidado acurado, e também propicia a diminuição de custos com tratamentos médicos, pois o gasto é maior no tratamento da doença já instalada. Quanto à redefinição da postura médica como preventivista, esta cada vez mais se apoia nos conhecimentos científicos, que servem de ferramenta para evitar ou abrandar doenças, com destaque para os exames laboratoriais como o sequenciamento genético.

O conhecimento genético obtido em exames laboratoriais faz parte da medicina preventiva, mobilizando a capacidade de prognósticos sobre diferentes doenças (monogenéticas, multifatoriais ou poligênicas), o que permite, no caso de se detectar alguma doença, a adoção de terapêutica voltada a seu combate total ou a sua amenização259.

Segundo Campana et all,

“Devido ao crescimento das pesquisas na área médica, com base cada vez mais na genética, o uso dos testes laboratoriais será mais frequente e abrangerá todas as fases da cadeia de saúde: prevenção, diagnóstico, prognóstico e acompanhamento terapêutico. (...) A educação orientada aos médicos referente à solicitação dos exames também será cada vez mais abrangente. O aumento dos novos testes disponíveis ocorrerá de forma acelerada. As técnicas moleculares dominarão a medicina laboratorial, serão automatizados, com preços acessivos e orientados à medicina personalizada. (...) A medicina personalizada também é uma das tendências da assistência médica no mundo. Podemos defini-la como a utilização da genética e das características individuais como direcionadora dos métodos diagnósticos e terapêuticos. Os principais exemplos da medicina personalizada referem-se aos testes genéticos que designam escolhas terapêuticas individuais. Os testes genéticos já validados devem ser submetidos a estudos de sensibilidade, especificidade e valores preditivos em relação aos genótipos (validação analítica) e resultados assistenciais (validação clínica), assim como deve ser definido o custo- benefício de cada um desses ensaios, direcionando, principalmente para a população-alvo, implicações sociais, fenotípicas e de resultados financeiros260”. Agostinho de Almeida Santos apud Barbas menciona a relação do PGH com a medicina preventiva:

“[...] prever quando e como se verificará a eclosão sintomática de uma determinada afecção, com larga e proveitosa antecipação. Tal perspectiva atraente fundamentar- se-ia numa avaliação genética que visa decifrar as mensagens adulteradas e com expressão tardia contidas no genoma de cada indivíduo261”.

Ter o aproveitamento do PGH como ativador da medicina preventiva significa inseri- lo no contexto da legislação da saúde. Na esfera legal brasileira, não há menção direta acerca

258 Idem, p. 132.

259 DAVIES, K. Op. cit., 2011, p. 104.

260 CAMPANA, G. A.; OPLUSTIL, C.P.; FARO, L. B. - Tendências em medicina laboratorial. J Bras Patol Med Lab, v. 47, n. 4, p. 399-408, Agosto/2011. p. 402-406.

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da terminologia medicina preventiva, porém esta se encaixa na subjetividade dos artigos acerca do direito à saúde da Constituição, in verbis:

“Constituição brasileira: Artigo 196 A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco

de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços

para sua promoção, proteção e recuperação. Artigo 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Artigo 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades

preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da

comunidade. Artigo 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada. Artigo 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse

para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos,

imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; V -

incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação; VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de

seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. (Grifos do autor)262”.

Já no doutrinamento jurídico português existe tal menção direta à medicina preventiva, mais especificamente em seu Capítulo III, a saber:

“Constituição portuguesa: Artigo 64 - 1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover. 2. O direito à protecção da saúde é realizado: a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito; b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a protecção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável. 3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado: a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da

medicina preventiva, curativa e de reabilitação; b) Garantir uma racional e eficiente

cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde; c) Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos; d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando- as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade; e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico; f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência. 4. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada263”. (Grifo do autor)

262 BRASIL - Constituição da República Federativa do Brasil. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 47.

263 PORTUGAL - Código do Trabalho Português. 2009. [Em linha]. [Consult 28 de abril de 2015]. Disponível

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Nesta conjuntura legal em prol da saúde, tanto no Brasil quanto em Portugal, não resta dúvida sobre o quão importante é a adoção do exame de sequenciamento genético como ativador da medicina preventiva, assessorando no diagnóstico precoce, até mesmo de um feto. Apesar dos louros desta vertente da medicina preventiva, cabe observar que ela também produz efeitos negativos.

Assim, a identificação do material genético viabiliza benefícios significativos para a sociedade, mas também suscita dilemas éticos, porquanto “permite acessar a coleção de moléculas essenciais à vida”, mais precisamente, permite “o desvelamento dos segredos do processo de vida, das componentes bioquímicas dos sentidos e da memória, do desenvolvimento e do envelhecimento, das semelhanças e das diferenças264”, e demanda, por sua vez, definições daquilo que é possível e daquilo que é permitido em relação à realização do exame de sequenciamento genético e suas reverberações.

Nesse sentido, o primeiro dilema ético está associado à valia do uso da informação, já que a ação de prevenção de doença só ocorre se houver a possibilidade de adoção de terapia. Em contrapartida, se não houver tal possibilidade, resta uma informação de ordem de medicina preventiva sem valia, que pode causar sentimentos de indignação, dor, sensação de impotência, entre outros sentimentos similares, no “possível” doente.

Eis algumas situações que levam a pensar sobre o assunto:

a) quando há indicação de uma doença degenerativa, como, por exemplo, coreia de Huntington, sem cura e que leva à morte, esta não trará ao seu “possível” portador (e familiares) nada além de sentimentos negativos;

b) quando há indicação de uma síndrome incurável em um feto, como, por exemplo, síndrome de Bartholin-Patau, tal informação pode lev ar a mãe a fazer um aborto; e

c) quando há indicação de casais que tenham probabilidade de reproduzir crianças que podem vir a ter doenças letais, esta informação os levará a não ter filhos.

O segundo deles está associado à exploração financeira, já que com a indicação de “possível” doença restam previstas as despesas do futuro paciente, seja com consultas médicas, seja com exames laboratoriais, seja com remédios. Aqui também é possível colocar em pauta algumas situações:

264 J. N. Z. - O Genoma Humano e a Contratação Laboral: Progresso ou Fatalismo? Oeiras: Celta Editora,

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a) quando há possibilidade de doença como o diabetes ou alguma cardiopatia, caso em que o “possível” doente terá de fazer manutenção da doença mesmo antes de ela se instalar verdadeiramente, por meio de consultas médicas e exames;

b) quando há possibilidade de um câncer265, caso em que se pode escolher como medicina preventiva a retirada do órgão possivelmente fadado a desenvolver a doença, levando não só a despesas com consultas médicas, remédios e exames, como também no tocante à cirurgia.

O terceiro deles está associado ao potencial discriminatório no uso da informação, já que, em consonância com Barbas266, o ser humano se torna prisioneiro do seu genoma. Tal aprisionamento significa que a informação sobre possível doença pode afetar o bem-estar social e profissional do indivíduo e ocasionar efeitos discriminatórios.

Aqui também é possível elencar algumas situações passíveis de discriminação: a) quando familiares e amigos passam a tratar de forma diferente o “possível”

doente, com pena ou excesso de ajuda, sempre a poupá-lo dos afazeres domésticos ou eliminando-o de participação em atividades lúdicas;

b) quando a informação de síndrome, como Down e Patau, é obtida em exame de sequenciamento genético de feto, fazendo surgir o desejo nos pais de abortá-lo; c) quando uma seguradora tem a informação sobre “possível” doença crônica num

indivíduo, como asma, diabetes ou doenças cardiovasculares, de antemão ela saberá que terá gastos frequentes com este segurado, desejando assim que haja acréscimo no valor do seu seguro; e

d) quando o empregador tem a informação de que um candidato a emprego ou um empregado possui possibilidade de desenvolver qualquer doença, sobretudo as crônicas, ele obstará a contratação ou a manutenção de contrato de emprego,

265 “A atriz Angelina Jolie declarou que passou por uma dupla mastectomia preventiva, uma cirurgia para a

retirada dos seios. A revelação foi feita em um artigo intitulado ‘My Medical Choice’, publicado no jornal americano ‘The New York Times’ nesta terça-feira (14).

“Minha mãe lutou contra o câncer por quase uma década e morreu aos 56”, diz a atriz no começo do texto. “Ela viveu o suficiente para conhecer seus primeiros netos e segurá-los nos braços. Mas minhas outras crianças nunca terão a chance de conhecê-la e sentir quão amável e graciosa ela era”, afirma.

Angelina, de 37 anos, diz que descobriu ter um “defeito” no gene chamado BRCA1. Os médicos disseram que ela tinha 87% de chances de desenvolver um câncer de mama, e 50% de ter um câncer no ovário.

“Quando soube que essa era minha realidade, decidi ser proativa e minimizar o risco o quanto podia. Tomei a decisão de ter uma dupla mastectomia preventiva”, diz a atriz. “Comecei com os seios, já que meu risco de câncer de mama é mais alto que meu risco de câncer no ovário, e a cirurgia é mais complexa”, afirma. HOSPITALDASCLINICAS - Com receio de cancer angelina jolie faz cirurgia para retirar os seios. [Em linha]. [Consult. 12 de maio de 2015]. Disponível em http://www.hospitaldasclinicas.com.br/com-receio-de-cancer- angelina-jolie-faz-cirurgia-para-retirar-os-seios.

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evitando atrasos, faltas e gastos extras com substituições temporárias e com seguro.

Decerto, o universo de estudo vinculado ao uso do exame de sequenciamento genético, enquanto ativador de medicina preventiva, é um palco variante, visto que esse cenário comporta evidentes dicotomias: tanto situações positivas quanto situações negativas. Dessa maneira, para melhor aparelhar o uso de tal ferramenta, é válida a realização de uma incursão nos meandros do alicerce jurídico concernente aos direitos fundamentais, para fins de averiguar a possibilidade de promoção de sua positividade e da diluição de sua negatividade. Pode-se dizer que o amparo legal deve ocorrer tal qual o processo de homeostase no corpo humano, pois as normatizações necessitam de adaptação às transformações sociais decorrentes do uso do exame de sequenciamento genético.

Considerando as demandas que podem despontar nesse novo contexto, pautado por questões genômicas e seus desdobramentos, há a necessidade de direcionar o olhar para as normatizações existentes sobre o assunto. Ademais, outras questões, subjacentes ao domínio juscientífico, a exemplo das questões valorativas de cunho social, ético e político, também fazem parte da agenda de debates sobre as dimensões das mudanças trazidas pelos novos cenários.

Impende refletir sobre a imbricação entre técnica, ciência e ética, de modo que o progresso científico não viole valores caros às sociedades contemporâneas, como a dignidade da pessoa humana. Tal reflexão exige um esforço normativo a fim de que os contributos técnicos, científicos e éticos restem alinhados aos direitos fundamentais já consagrados nos âmbitos global e locais.