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LIMITES MORAIS NO USO DAS INFORMAÇÕES GENÉTICAS

4. BIOÉTICA

4.3 LIMITES MORAIS NO USO DAS INFORMAÇÕES GENÉTICAS

Na esteira da bioética, o composto moral torna-se o pilar para o uso do Projeto Genoma Humano (PGH), tornando-o producente e respeitoso aos direitos humanos. A bioética é considerada um importante fator na busca pela eficiência do PGH, isso para que haja maior reponsabilidade em seu uso, dado o espectro bioético para delinear os limites morais que a sociedade pode estabelecer aos empreendimentos de âmbito científico vinculados ao genoma humano, sobretudo quanto ao uso das informações genéticas de um indivíduo. Precisamente, isso significa estabelecer o potencial de nocividade do PGH ao ser humano419.

Nesta senda e, em decorrência das diversas situações de abertura trazidas pelo PGH, capazes de gerar uma multiplicidade de problemas de natureza ética, torna-se necessária a discussão não apenas por profissionais da área da medicina, mas também da biologia, da química, do direito, da economia, da administração etc. É necessário que sejam lançadas luzes de aporte à bioética, de modo a conferir maior visibilidade dos acontecimentos para todos os setores da sociedade, sujeitos aos efeitos dos progressos genômicos.

A Declaração Universal sobre Genoma Humano e os Direitos Humanos (1997)420 da Unesco, em seu artigo 1 refere o genoma humano como um legado da humanidade; trata-se de patrimônio comum da humanidade421. Entretanto, a Declaração também destaca que tal

418 GUATTARI, F. - As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990. p. 37-

38.

419 SCHRAMM, F. R. Op. cit., 2000, p. 3. 420 Idem, p. 7.

421 O artigo citado no parágrafo apresenta-se na íntegra no terceiro capítulo do presente estudo, precisamente no

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patrimônio comum da humanidade apoia-se em um viés simbólico. Logo, a imprecisão contida no preceito simbólico permite um prolongamento interpretativo da norma, levando-a, até mesmo, a uma dualidade interpretativa do genoma humano: além de patrimônio universal, pode ser considerado também um patrimônio individual, pois cada pessoa possui a propriedade de seus genes e das informações deles, constituindo um bem privado e inalienável da personalidade. Como deve ser entendida tal dualidade?

Em um primeiro momento, pode-se dizer que o genoma humano é um legado da humanidade, devendo ser respeitado como a humanidade de todos. Num segundo momento, pode-se dizer que se trata de um legado da humanidade, devendo ser respeitado como a humanidade de cada indivíduo. Isso provoca dúvidas sobre como interpretar a humanidade ressaltada no artigo 1.

“Com efeito, cada indivíduo pode legitimamente considerar que seu genoma lhe pertence, logo que é uma propriedade comum da humanidade “em termos”, visto que nas sociedades democráticas e liberais vale o lema “eu pertenço sobretudo a mim mesmo, e meu genoma, que é parte integrante de mim mesmo, também”. Porém, devido às necessárias limitações que o viver em sociedade impõe a seus cidadãos, o indivíduo pode fazer o que quiser de si, inclusive de seu genoma, também "em termos", se seus atos podem acarretar consequências sobre seus descendentes e os outros, uma vez que a própria moral liberal reconhece esta limitação da autonomia individual422”.

Decerto, mesmo em tal interpretação dual do genoma humano, há esteio argumentativo no artigo 1 para definir que o código genético constitui uma característica natural do ser humano. Nesta seara argumentativa, há a possibilidade de interpretação reducionista do ser humano ao seu código genético. O processo interpretativo reducionista abrange diferentes segmentos, como o natural (biológico), o cultural, o ético e o jurídico. Assim, torna-se complexo compreender qual base interpretativa delimita moralmente o uso do PGH.

“Os genes são certamente importantes para determinar a identidade biológica do indivíduo humano, mas não são tudo para determinar a identidade de um indivíduo, visto que determinam uma limitação do possível, mas dificilmente determinam, sozinhos, um destino423”.

Configurar o ser humano por sua informação genética gera “a ideia reducionista e equivocada de que os genes não só podem tudo, como são oráculos infalíveis e funcionam sempre sem interação ambiental424”. Trata-se de um equívoco que pode resultar em

422 SCHRAMM, F. R. Op. cit., 2000, p. 3. 423 Idem, p. 4.

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interferência negativa na vida dos indivíduos que consintam a consulta de suas informações genéticas por terceiros.

Dessa maneira, o código genético para um indivíduo oferece peso ímpar às suas informações genéticas, diferentemente de uma caracterização usual na sociedade, como, alto, baixo, narigudo etc. Muito embora a ciência possa revelar informações sobre possíveis doenças futuras e, com isso, gerar estigmas a determinado indivíduo, reduzir o indivíduo à sua informação genética também pode significar o esquecimento de que esse indivíduo é um cidadão e deve ter a sua liberdade e a sua dignidade humana preservadas. Esse reducionismo biológico pode resultar num efeito discriminatório na vida dos indivíduos, oferecendo margem a abusos, como, por exemplo, no ambiente de trabalho ou por parte das seguradoras, ou ainda, mais drasticamente, com finalidades de políticas públicas para a prática da repressão ou da eugenia e do uso do aborto.

Sobre o assunto, Zatz destaca:

“As novas tecnologias que vêm sendo introduzidas permitirão, em pouco tempo, a identificação de centenas de genes “patológicos” em uma única reação. É inquestionável que as companhias de seguro-saúde e seguro de vida teriam o maior interesse em obter essas informações, isto é, saber que doenças teremos risco de desenvolver e a data prevista da nossa morte. E os nossos empregadores também não teriam interesse em obter tais informações sigilosas? A questão é: seremos capazes de manter o caráter confidencial de nosso perfil genético? Poderemos não concordar em nos submeter a um teste de DNA? Para aqueles que acreditam que implementar um banco de DNA da nossa população ainda é uma realidade distante, basta lembrar que recentemente se propôs que todos os recém-nascidos em São Paulo tivessem uma amostra de DNA coletada (a partir de sangue do cordão umbilical) para se obter uma impressão genética de cada um. Para encobrir os interesses comerciais (já que haveria um custo para cada exame), o motivo alegado foi evitar a troca de crianças em maternidade. E se essa coleta fosse obrigatória?425”.

Drell apud Cardoso, cientista vinculado à descoberta do genoma humano, ressalta a importância do comportamento ético em seu uso: “Uma das maiores preocupações éticas em relação ao Projeto Genoma é a divulgação dos dados genéticos individuais para seguradoras de saúde e empregadores. [...] O problema será a interpretação errônea de testes de DNA426”.

Com efeito, o que cria a limitação nesse ambiente informacional genético são as fronteiras ofertadas pela bioética, que não o considera apenas como um ser biológico. A bioética oferece um ideal moral para as ações científicas no âmbito do PGH que, por conseguinte, estende-se às normatizações pertinentes ao assunto, combatendo o abuso no tocante ao uso das informações genéticas. Devem as normatizações abarcar a plenitude do ser

425 ZATZ, M. - Projeto Genoma Humano e Ética. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, v. 14, n. 3, p. 47-52,

2000. p. 48.

426 CARDOSO, C. M. - Ciência e Ética: alguns aspectos. Revista Ciência e Educação, v. 5, n. 1, p. 1-6, 1998. p.

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humano, evitando possibilidades interpretativas reducionistas e promovendo a condução correta da bioética ante o PGH427,428.

É por meio da conduta ética que o homem se torna um fim e não um meio no uso do PGH. Para tanto, a harmonização de critérios morais de escolhas deve apoiar-se numa trilogia bioética, estabelecida por decisões entre o médico, o paciente e a sociedade. A eleição dos critérios bioéticos de proteção à vida está calcada no diálogo entre a ciência e a sociedade, levando em conta valores econômicos e socioculturais. A bioética não depende só de diálogos, mas necessita, também, do apoio da normatização para oferecer eficiência aos seus preceitos de conduta ética, valendo-se, assim, do biodireito.