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O discurso como medium intranscendível de toda possibilidade de legitimação procedimental

Capítulo I – A linguagem e o discurso na teoria do agir comunicativo

2. O discurso como medium intranscendível de toda possibilidade de legitimação procedimental

Até o momento, analisamos um aspecto do agir comunicativo que é a linguagem entendida como medium instransponível de todo sentido e validade. Buscamos explicar o conceito de competência comunicativa, a relação entre agir comunicativo e a teoria dos atos- de-fala, o conceito de entendimento como gerador do consenso e as pretensões de validade. Agora, passaremos ao segundo grande aspecto do conceito de agir comunicativo que é o discurso.

Com efeito, a argumentação ou discurso argumentativo não é um jogo lingüístico entre outros, no qual se possa entrar ou não, à vontade. Ele é uma forma de comunicação pública intranscendível, ou seja, sem ela não é possível ocorrer nenhuma forma de interação humana. O discurso é um tipo de comunicação porque também é mediado pelos sinais da linguagem, de modo que a compreensão de algo como algo, também do argumentar como argumentar é impensável sem a mediação da linguagem sempre pública. Mas o discurso, mesmo aquele realizado por um sujeito solitário, é a forma pública intransponível de todo pensar, porque ao argumentar com pretensões de validade, nós, na resolução das pretensões problematizadas, sempre nos referimos a uma comunidade, em princípio ilimitada, de argumentação. Isso vale até para o pensar realizado solitariamente, pois ele só pode reivindicar validade porque já possui uma estrutura discursiva, isto é, porque levanta a pretensão de poder defender o conteúdo pensado com boas razões diante de si mesmo e diante de todo e qualquer possível interlocutor, real ou imaginário. Reivindicar validade significa, pois, levantar pretensões diante de uma comunidade, em princípio ilimitada, que só podem ser satisfeitas por razões válidas intersubjetivamente.

A racionalidade de uma pessoa é medida em função de que ela se expresse racionalmente e que possa dar conta, por meio de uma atitude reflexiva, de suas manifestações. Uma pessoa se expressa racionalmente enquanto se guiar, realizativamente, por pretensões de validade. Dizemos não somente que ela se comporta racionalmente senão que ela mesma é racional quando consegue fornecer explicações sobre o seu agir mediante pretensões de validade. Denominamos este tipo de racionalidade como responsabilidade ou como capacidade de dar conta dos seus próprios atos. (HABERMAS, 2002c, 102)

O pensar tem que ser entendido, na sua estrutura, como auto-entendimento argumentativo com pretensão intersubjetiva de validade. Por isso, o pensador solitário terá que considerar, em princípio, no seu ato de pensar, no qual ele não pode enganar-se a si mesmo, as possíveis objeções de todos os possíveis parceiros do discurso. Assim, a validade do seu discurso solitário exige e implica a justificação intersubjetiva de uma comunidade de argumentação, que ele interioriza num diálogo de si, consigo mesmo, mas cuja validade é pública.

E o discurso é a forma intransponível de todo pensar, porque representa a instância última, tanto filosófica quanto científica ou política, na qual e diante da qual tem que justificar a responsabilidade comum dos homens pelo seu próprio pensar e pelo seu próprio agir, pelas suas teorias científicas e por toda fundamentação científica ou filosófica e, em geral, por todas as pretensões possíveis que possam ser levantadas no mundo da vida. Nenhuma fundamentação da ciência ou da ética, da semântica ou da pragmática, da racionalidade lógico- matemática ou de qualquer outra racionalidade, é possível sem passar pela mediação do discurso e pelo discurso concebido em toda sua radicalidade, isto é, com tudo o que ele implica. Nesse sentido, o discurso é metodologicamente intranscendível. Eu posso recusar-me a pensar ou discutir isso ou aquilo, mas não posso recusar-me a pensar em geral, assim como eu posso recusar-me a falar sobre isso ou aquilo, mas não posso recusar-me a falar em geral. Isso tornaria impossível a realização da vida humana naquilo que lhe é específico e imprescindível.

E, se o discurso é intranscendível e está necessariamente presente até no ato do pensar solitário com pretensões de validade, então temos que dizer kantianamente: as condições de possibilidade do discurso argumentativo sensato serão, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade dos objetos de tal discurso. Para a filosofia, isso significa: nenhuma corrente ou crítica filosófica poderá considerar-se suficientemente legitimada, se na sua justificação não incluir as condições de possibilidade do próprio discurso. Isso é a auto-implicação das condições de possibilidade do próprio discurso na discussão ou justificação de um objeto ou tema qualquer. É a descoberta desse ponto arquimédico, o discurso, que possibilitará um programa conseqüente para a teoria do agir comunicativo inscrito num novo paradigma, o paradigma da linguagem, sem precisar de pressupostos metafísicos (sobretudo a doutrina dos dois mundos), como no caso de Kant.

E a fundamentação pragmática da filosofia ou o modo filosófico de dar conta dos pressupostos do próprio discurso só poderá acontecer por estrita auto-reflexão sobre o mesmo discurso, a única que possibilita explicitar, reconhecer e tomar consciência do que já sempre estava pressuposto implicitamente ao argumentar com sentido. Habermas identifica três formas distintas de auto-reflexão. O termo pode referir-se à “reconstrução racional das condições subjetivas necessárias para a obtenção de resultados epistêmicos ou à análise e dissolução dos auto-enganos eticamente relevantes ou ao descentramento da própria perspectiva que é exigida dos participantes de um discurso prático”. (HABERMAS, 2002c, 182) Com efeito, se o discurso argumentativo está necessariamente presente até no ato solitário do pensar, com pretensões de validade, então, por meio da auto-reflexão comunicativa, e não por mera introspecção psicológica, qualquer um dos membros da comunidade de comunicação poderá descobrir não só as condições de possibilidade do discurso, mas também que essas condições são intransponíveis e incontestáveis e, portanto, formais e universais. Elas estão sempre presentes em todo discurso e, portanto, são elas que possibilitam a tematização de qualquer objeto do discurso. Elas não poderão ser negadas sem cair em contradição performativa, porque elas estarão necessariamente presentes, mesmo na tentativa de negá-las, como condição do sentido dessa negação. Por outro lado, elas tampouco poderão ser provadas dedutivamente sem envolver petitio principii, porque toda prova já supõe, de novo, essas condições.

O processo de estrita auto-reflexão mostra que as condições de possibilidade do discurso coincidem com as condições de possibilidade do objeto do discurso. Por isso, elas terão de ser co-afirmadas implicitamente na tematização desse objeto, isto é, o critério último será a consistência pragmática entre o objeto do discurso e as condições de possibilidade do mesmo discurso, pressupostas necessariamente no ato performativo do mesmo discurso. O critério último de toda fundamentação pragmática é a necessidade de evitar a autocontradição performativa.

O que é a autocontradição performativa? Ela ocorre quando o sujeito emite uma proposição, no sentido pragmático, cujo conteúdo semântico nega o próprio ato de emissão. É uma contradição que aparece no próprio ato-de-fala. Habermas redescobre, aqui, uma antiga e elegante forma de argumento indireto: a tentativa de demonstrar a não validade de um

princípio, reduzindo-o ao seu contrário, leva a uma contradição performativa. Esse tipo refinado de reductio ad absurdum é modernizado através da contradição performativa.

... cabe sobretudo a K. O. Apel o mérito de haver desobstruído a dimensão entrementes soterrada da fundamentação não-dedutiva das normas éticas básicas. Apel renova o modo da fundamentação transcendental com os meios fornecidos pela pragmática lingüística. Ao fazer isso, utiliza o conceito da contradição performativa, que surge quando um ato-de-fala constatativo ‘Cp’ se baseia em pressuposições não-contingentes cujo conteúdo proposicional contradiz o enunciado asserido ‘p’. (HABERMAS, 1989a, 102)

Quem discursivamente nega o discurso, que está em curso, entra em contradição: o ato- de-fala desmente o conteúdo falado. Na terminologia de Habermas: o princípio ‘D’, o princípio do discurso, não pode ser negado sem autocontradição. Logo, o princípio ‘D’ é válido.

De maneira análoga, Apel descobre agora uma contradição performativa na objeção do ‘falibilista conseqüente’ que, no papel do céptico ético, contesta a possibilidade da fundamentação de princípios morais (...) Apel caracteriza o estado da discussão por meio da tese do proponente, que afirma a validade universal do princípio da universalização e pela objeção do oponente (...) infere que as tentativas de fundamentar a validade universal de princípios são desprovidas de sentido: tal seria o princípio do falibilismo (f). Mas o oponente comete uma contradição performativa no caso em que o proponente pode comprovar-lhe que, ao engajar-se nessa argumentação, ele faz certas pressuposições inevitáveis em todo jogo da argumentação voltado para o exame crítico e cujo conteúdo proposicional contradiz o princípio (f). Tal é efetivamente o caso, pois o oponente, ao apresentar sua objeção, pressupõe inevitavelmente a validade pelo menos daquelas regras lógicas que não podem ser substituídas, caso compreenda o argumento apresentado como uma refutação. Mesmo o criticista, ao participar de uma argumentação, já aceitou como válido um acervo mínimo de regras irrecusáveis da crítica. E essa constatação é incompatível com (f). (HABERMAS, 1989a, 102-103)

A partir do princípio do discurso, que se realiza no próprio processo do discurso, Habermas justifica, então, o princípio ‘U’, o princípio da universalização, que é, de uma forma muito próxima, a transformação do imperativo categórico de Kant. Segundo o princípio da universalização, na roda do discurso somente valem razões que possam ser universalizadas por todos. Habermas inicia a exposição do princípio da universalização da seguinte forma:

A fundamentação exigida do princípio moral proposto poderia, por conseguinte, assumir a forma de que toda argumentação, não importa o contexto em que é levada a cabo, se baseia em pressuposições pragmáticas, de cujo conteúdo proposicional pode- se derivar o princípio de universalização ‘U’. (HABERMAS, 1989a, 104)

Com a fundamentação destes dois princípios, ‘D’ e ‘U’, obtida através da contradição performativa, Habermas julga ter feito uma passagem legítima das proposições descritivas para as normativas, evitando a falácia naturalista. A objeção levantada contra a ética do discurso é que estes dois princípios, ambos formais e procedimentais, não bastam. Para definir o que é o bem para o indivíduo ou para a sociedade, durante o processo do discurso, seria necessário utilizar, pelo menos, um terceiro princípio que consiste nas razões que são postas no discurso. As razões apresentadas precisam ser razões e não apenas bobagens. Ora, isso não é mais algo formal e meramente procedimental.

Habermas concede expressamente a necessidade de serem apresentadas razões (Gründe), mas não admite que elas se constituam num terceiro princípio. (HABERMAS, 1989a, 78-83) Não admite, por igual, que isso o faz abandonar o modelo formal da ética kantiana e o modelo procedimental da própria ética do discurso.