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O discurso dos alunos nos textos

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CAPÍTULO II – JOVENS ALUNOS TRABALHADORES DO COLÉGIO

2.3 O discurso dos alunos nos textos

Considerando que o texto, como linguagem escrita, “é uma mediação segunda em relação à fala e, portanto, mais ‘técnico’, mais ‘fechado’ quanto às regras de sua produção: enfim duplamente simbólico” (Hansen, 1989: 125) e que a relação pensamento e expressão escrita não é direta, de forma que o saber pensar não se vincula, necessariamente, a uma escrita conforme o modelo estabelecido pelo sistema lingüístico, busca-se verificar como o discurso do jovem fala por ele, considerando-o “sujeito do discurso e no discurso”. Essa é a perspectiva de Hansen (1989: 122) que declara:

Pensamos que o discurso do aluno é intervenção, tomada de posição e que é, antes de tudo, um feixe de relações simbólicas extremamente complexas, um campo de posições e funcionamento de formações imaginárias que, recortando-se socialmente, remetem-nos – enquanto leitores – à sua inserção em uma situação e posição práticas.

Na análise investigativa, interessa compreender que o jovem escreve de um lugar determinado, indicando as relações que o envolvem e aos objetos de seu discurso, que se configuram, não como relações estáticas e deterministas, mas se articulando continuamente numa relação entre a situação – seu lugar na prática cultural que veicula – e a posição – que confirma ou nega as formações imaginárias, gestadas entre a intervenção e o simbolismo e que acabam por representar a situação no discurso. Desse modo, concebe-se um espaço de produção, ainda que contraditório, não considerando o aluno como ser meramente passivo nesse contexto – unicamente reprodutor do pensamento dominante – mas como sujeito que ocupa determinado lugar no sistema produtivo, e cuja linguagem se constitui em uma forma de intervenção, que continuamente articula sua situação/posição, representada no seu cotidiano.

Tais princípios de análise devem ser considerados no contexto de intertextualidade, em um processo que promove a construção da linguagem textual do aluno, delineando seu discurso como uma interseção de discursos constituídos culturalmente e que são apropriados para articulação da formação imaginária própria. Nesse processo dinâmico, as articulações imaginárias produzem-se tomando por base todas as relações concretas – sua situação escolar, sua situação em relação ao tema, ao modelo imposto, etc. – que ao mesmo tempo se fundem e são explicitadas como um sistema de valores, o qual para ser considerado coerente deve apresentar certa unidade.

Tendo em mente essas considerações, a análise de conteúdo dos textos foi efetivada tomando por base as questões privilegiadas nos discursos dos alunos, a análise revela que estes jovens buscam uma intensa afirmação no mundo do trabalho e travam verdadeira luta na tentativa de conciliar a escola, as atividades de trabalho e o lazer. Marina, aluna do segundo ano, relata assim sua rotina semanal:

Nestes dias de hoje as coisas andam cada vez mais complicadas. Para ter que conseguir alguma coisa, precisa se lutar e correr atrás de seus próprios objetivos (…) Por exemplo, eu trabalho de segunda a sexta,

das oito às dezoito horas e vou direto para a escola, e sábado das oito às treze, indo direto para o curso de computação, onde entro às catorze e saio às dezoito horas, e domingo trabalho na feira hippie sobrando somente um pouco da noite de sábado para divertir e estudar.

Ao expressar-se sobre sua rotina de vida, a jovem manifesta lúcida compreensão de suas condições de vida, das dificuldades presentes em seu enfrentamento diário, em um discurso permeado pela incerteza e pela ansiedade causada diante dela. Manifesta, ainda, a importância que dá ao lazer, espaço privilegiado de sociabilidade, embora bastante limitado. Nesse contexto, o tempo assume uma dimensão própria, algo de adverso, sempre marcado pelo trabalho, e é expressado na rotina intensa de quem não encontra outra alternativa, senão continuar. A mesma situação é relatada por dois alunos:

O tempo é o maior inimigo e assim para uns que precisam trabalhar para conseguir dinheiro para sustentar uma escola ou família, é difícil arrumar tempo para estudar e obter boas notas e bom aprendizado. (José Luiz, segundo ano)

Não podemos nos dias atuais deixar de trabalhar o dia todo. E nem [pensar em] futuro sem estudo (se é que adiantará alguma coisa), mas quando buscamos a realização de algum sonho ou melhoria na vida, não há nada que supere o estudo, o conhecimento e assim, mesmo sendo difícil ou cansativo não há outra forma a não ser obter as ferramentas que o mercado de trabalho exige. (Simone, segundo ano)

Articulando o discurso social de valorização da educação escolar com as relações que permeiam sua prática de jovem trabalhador e, ao mesmo tempo de aluno, passam a identificar na escolarização o caminho que lhes é possível trilhar para alcançar a ascensão social desejada, associando-a diretamente à preparação para o trabalho. Marcos (primeiro ano) assim se manifesta:

É na escola que eu vejo o meu futuro, minha única oportunidade de ingressar num emprego à altura. Na escola é que eu descubro meus conhecimentos, minhas reações e como devo agir perante a empresa e principalmente, perante o ambiente de trabalho.

No imaginário do aluno, o desejo de realizar suas aspirações e os sonhos de consumo em uma sociedade em que o tempo é precário, torna válida a luta empreendida no cotidiano. O trabalho, assumido precocemente, norteia um modo de viver essencialmente voltado para o desejo de usufruir de melhores condições de vida; no entanto, a satisfação desse desejo parece ser continuamente adiada ante a certeza da impossibilidade, no momento, de realizá-lo, o que configura uma certa tensão, expressa pela urgência de realizar o máximo possível, sem perda de tempo. Alda (segundo ano) descreve seus sentimentos:

eu me envolvo muito com o que eu faço, ou seja, com a profissão que eu exerço, com o dinheiro, com sonhos de conseguir tudo que eu quero e por ser muito otimista e impaciente quero as coisas de imediato. Trabalho desde meus doze anos e desde então me preocupo muito com isso, não que eu deixe de aproveitar minha juventude, mas a gente esquece um pouquinho dela.

Cursando o ensino médio, as relações entre escola e trabalho podem não estar claras para muitos, como observado nas respostas dos questionários. Entretanto, Márcio, aluno do segundo ano, consegue relatar, de forma clara, o processo pelo qual a escola contribui para a reprodução do trabalhador para o capital, com a formação de subjetividades apropriadas à convivência com a submissão e a hierarquia no trabalho produtivo:

É difícil progredir se não conseguimos nos relacionar bem com os outros. Isso é particularmente verdadeiro no campo profissional: todos os dias nos relacionamos com colegas de trabalho, sejam eles superiores ou subordinados. Com a escola ou o estudo você poderá aprender a construir relacionamentos melhores em seu local de trabalho, reduzindo a tensão e facilitando a sua ascensão profissional. Na escola você encontra técnicas e aprendizados fascinantes para usar no dia-a-dia (...) É muito difícil encarar o trabalho e a escola, mas precisamos dos dois para alcançar o objetivo de nossas vidas.

Ao admitir que a rotina de trabalho interfere no rendimento escolar, o aluno constata o desafio que lhe é imposto. Continuamente, a rotina fatigante a que é submetido se reflete no processo escolar, e a forma como a escola responde a essa situação tem mostrado ser uma prática paternalista e, em certa medida, assistencialista. Entretanto, não parece ser esse o procedimento esperado pelos alunos. Os textos expressam a apreensão que o aluno tem das relações estabelecidas entre a escola, com os professores e profissionais envolvidos, com o trabalho – relações tornadas concretas no cotidiano diante de si próprio, o aluno que trabalha – e expõe claramente o seu descontentamento. Tomando por base essa questão, Júlio (primeiro ano) relata:

Hoje eu tenho dezenove anos, tenho uma profissão graças à Deus, mas mesmo assim não é fácil. Eu trabalho de segunda à sábado, das oito às dezoito horas, quando não faço horas extras. Sem falar que quando eu não vou à escola por motivo de trabalho, geralmente levo uma declaração [e] os professores ficam em cochicho dizendo que eu falsifiquei; eles nunca acreditam que eu estava mesmo trabalhando, é o que mais me irrita...

A heterogeneidade da vida cotidiana desse jovem, que se refere à forma rotineira das ações imediatas e espontâneas vividas no dia-a-dia, entre o mundo do trabalho e a vida privada, produz contradições que o jovem trabalhador

enfrenta sem uma clara compreensão do processo. Ao mesmo tempo que valoriza o cotidiano intenso que empreende, como um saber arduamente desenvolvido nos grupos sociais em que transita, como propõe Marta (aluna do terceiro ano), constata a situação de desvantagem a que é submetido, o que é expresso no texto de Kátia (do segundo ano):

é bom saber dividir parte por parte de sua vida: hora do namoro, do trabalho e do estudo, e levar a sério, porque o tempo é passageiro, não espera por ninguém. (...) nunca devemos deixar nos abater por isso, o estudo e o trabalho se torna uma rotina muito valorizada na vida de quem está vivendo

A maioria dos estudantes que trabalham não têm um bom rendimento no colégio, pois além de irem cansados e sem disposição para a aula, quase não sobra tempo para estudar. Num vestibular a maioria dos aprovados são pessoas que têm todo o tempo dedicado aos estudos, tendo assim mais chances de passar em vista daqueles que estudam e trabalham.

Observa-se, em alguns textos, a manifestação de questões articuladas coletivamente que podem auxiliar o confronto crítico das condições de vida que lhes são impostas. Nessa perspectiva, o pensamento expresso pelo jovem Marcelo (aluno do terceiro ano) parece reivindicar ações públicas que possam se constituir em alternativas para o alcance de seus objetivos.

Os direitos são abrangentes à juventude, mas nunca são cumpridos; o ensino é falho, o que faz um futuro profissional inadequado. Os jovens que sempre estão trabalhando em serviços pesados e que sua remuneração é baixa, não têm tempo para qualquer tipo de programa… Enfim, essa classe que já vem sofrendo pela discriminação, luta para manter o sustento, tentando uma vida melhor com mais instrução, a qual busca nas escolas, que em parte não são preparadas.

A impossibilidade de viver uma juventude idealizada cede lugar a um certo amadurecimento precoce, sustentado pela exigência de dar respostas imediatas às necessidades individuais. A busca da autonomia revela-se como um objetivo a ser alcançado e se vincula à tentativa de alcançar a significação do cotidiano, como é o caso de Luana (aluna do segundo ano):

Hoje tenho dezessete anos, estou passando uma fase de decisões, complicadas por sinal. Às vezes paro para refletir e acho que sou uma vencedora, não que isso signifique que vou parar por aqui, mas que consegui subir uns dos degraus da longa escada. Tenho consciência de tudo que já decidi e tive que renunciar. Esta autoconsciência é a base da minha capacidade para orientar-me na vida. Ser jovem, não é fácil. Mas estou sempre procurando um sentido, uma direção, um caminho novo.

O trabalho, sempre reconhecido como importante no contexto de vida desses jovens, por permitir o acesso aos bens de consumo, é percebido também como opressor, coercitivo, marcando o cotidiano com elementos que lhe são corporificados, parecendo modelar a sua própria subjetividade. João Carlos (segundo ano) expressa, de forma clara, a reação ao caráter exploratório da atividade produtiva a que se submetem.

Em nosso serviço temos que enfrentar os nossos patrões mal humorados com problemas pessoais e estressados, com isso ficamos também mal humorados não desenvolvendo bem em nossas atividades escolares e do trabalho, tornando assim uma grande muralha sobre nós.

Quase sempre as dificuldades expressas pelos alunos são associadas a uma situação particular, não superando o pensamento individualizado e não conseguindo chegar ao entendimento de que as condições de sua vida não o atingem apenas individualmente, mas a todo um coletivo representado pelos jovens trabalhadores que têm uma história de vida similar à sua. Desse modo, as adversidades são alçadas a uma dimensão moralizante, quase mistificadora, com a promessa de recompensas futuras, como assinala Kátia (segundo ano):

Realmente sem esforço não podemos chegar a lugar algum. O esforço é o grande mérito do ser humano. Atualmente o mercado exige profissionais qualificados, com curso superior, curso de informática e falando outra língua além do português correto. (...) sem esforço não podemos ir muito longe na vida, e as dificuldades mais adiante serão recompensadas.

No entanto, o tempo de juventude é considerado por muitos como especial, e, contraditoriamente é apontado como fruição, lazer, entremeado de obstáculos diante da realidade. É assim que Paula (segundo ano) relata o desapontamento que sente e a falta de alternativas para jovens como ela:

Nossa juventude é um tempo que a gente quer que tudo do bom e do melhor nos aconteça. Vivemos cada momento como se fosse o último, cada vez mais queremos que ela não se acabe, mas chega um tempo que a gente tem que pensar na vida e vemos que as coisas são diferentes do que a gente pensa, e aprendemos a enfrentar os desafios que a vida nos reserva.

As questões apontadas acima fazem parte de uma construção complexa. A constituição de sua autonomia, base para a identidade desse sujeito, cuja compreensão do mundo se dá com base na sua vida cotidiana, na sociabilidade que lhe é possível, ocorre paulatinamente, permitindo que os significados

concretos da realidade objetiva sejam articulados. A compreensão desse processo, entretanto, carece de uma investigação mais aprofundada, o que determinou uma aproximação maior das histórias de vida de alguns alunos, que são relatadas no Capítulo III. Ao tratar as informações obtidas, busca-se compreendê-las tomando por base a situação emprego ou desemprego do jovem, como o elemento que, de certa forma, parece aglutinar aspectos reveladores de condições objetivas e subjetivas, que apresentam um significado importante nas histórias estudadas. As seis histórias discutidas são de jovens inseridos no mercado de trabalho, e quatro deles – Luzia, Luiz Carlos, Cristina e João Marcos – encontram-se, no momento, trabalhando e dois deles – Anete e Paulo – desempregados, sem trabalho.

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