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Escola: desafios enfrentados na atualidade

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CAPÍTULO I – FUNDAMENTOS TEÓRICOS PARA A COMPREENSÃO

1.4 Escola: desafios enfrentados na atualidade

Nos dias atuais, a educação tem sido intensamente pressionada a oferecer respostas para promover a formação do novo trabalhador, o colaborador versátil, capaz de se adequar rapidamente às condições de trabalho conforme lhe são apresentadas. “A esta altura dos acontecimentos, ninguém duvida que temos de educar ‘para a cultura do trabalho’; o que em bom português, quer dizer ‘educar para a cultura do mercado’” (Gentili, 1999: 158). Vista desse modo, a educação subordina-se à condição de rentabilidade e passa a ser tema de interesse de economistas e empresários, os quais a consideram fator de incremento da produção.

A chamada educação para a empregabilidade – que busca oferecer educação à classe trabalhadora no intuito de (con)formação dos cidadãos, não mais trabalhadores, justificando a exclusão pela incompetência – expressa claramente a ideologia desses setores. Gradativamente, porém, as promessas de empregabilidade têm sido desmistificadas pelos altos índices de desemprego e de empobrecimento da população mundial, desnudando a polarização econômica que, a olhos vistos, se acentua, mesmo nos países desenvolvidos, como alerta Dowbor (1999: 11):

A realidade é que enquanto o planeta encolhe e tudo se torna mais próximo, e as populações se encavalam nos espaços urbanos, o precipício econômico e social entre essas populações aumenta rapidamente. Esta proximidade e convívio íntimo entre riqueza e miséria, luxo e privações, constitui uma mistura explosiva e insustentável a médio prazo. O equilíbrio do terror já não é mais entre as potências, se manifesta na porta das nossas casas.

O enfoque economicista que é atribuído à educação constitui tema constante das produções do campo educacional nos últimos anos14, bem como das discussões dos estudiosos e profissionais que se preocupam com a questão da democratização da educação no Brasil. Importa salientar que, como prática

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Uma produção relevante no campo de estudos trabalho e educação está disponível, podendo-se destacar: Gentili (1998); Silva e Gentili (1996, 1999); Gentili e Frigotto (2000); Frigotto (1995, 1998); Kuenzer (1997, 1998a , 1998b); Machado (1994); Arroyo (1998); Franco (1998); Salm (1999); Paiva (1993), Paro (1999) e Nosela (1998).

social, a educação não pode ser dissociada dos elementos que historicamente constituem a sociedade. Nesse sentido, Gentili (1999: 158) esclarece:

Com relação a se a educação e o mercado devem encontrar pontos de interseção e cooperação, é uma evidência que, em nosso caso ao menos, não aspiramos a por em dúvida. Contudo uma coisa é isto e outra muito diferente é a pretensão política que orienta a nova retórica da qualidade no campo educacional. Ou seja, subordinar a educação ao mercado, convertendo-a em mais um instrumento da complexa maquinaria de dualização e polarização social que caracteriza o projeto neoconservador. (grifos no original)

Nas sociedades, sempre existiram, diferentes processos de preparação para integração social. No modo de produção comunal, a educação dava-se no próprio processo de trabalho, atendendo aos imperativos que se apresentavam para satisfação das necessidades. A fixação do homem à terra, momento histórico do surgimento da propriedade privada, constitui o marco inicial da divisão dos homens em classes. As relações entre proprietários e não-proprietários configuravam a divisão da sociedade em classes, mediada pela atividade eminentemente agrícola. Na Antigüidade, os escravos eram responsáveis por sua própria sobrevivência e de seus senhores, como ocorria com os servos no feudalismo. O processo de trabalho, então, envolvia a aprendizagem necessária aos membros da comunidade. As famílias, vivendo coletivamente, dividiam o espaço de moradia e desenvolviam intensa sociabilidade na rotina de trabalho e no tempo livre, em especial nas festas e nas atividades religiosas. Apenas aos nobres e senhores, classes ociosas que viviam do trabalho alheio, era possível uma educação mais sistematizada, constituindo-se, assim, como as atividades esportivas e militares, em ocupação digna (Saviani, 1994).

As profundas modificações sofridas pelo processo de trabalho, desde o tipo mais simples de produção para a subsistência das comunidades primitivas até a produção mecanizada, na manufatura e, posteriormente, na indústria, foram acompanhadas por grandes mudanças nos modos de educar as novas gerações. A educação, que não mais atendia à formação necessária às novas formas de produção, transformou-se e o avanço do processo urbano e industrial passou a exigir a expansão da escola, assim como o desenvolvimento da ciência destinada a atender às demandas do processo produtivo. Constituindo-se na aplicabilidade da ciência à atividade produtiva, a maquinaria requer um mínimo de instrução

para sua operação. A escrita, em forma de um currículo escolar básico, é então exigida como requisito de uma sociedade em que as relações passam a ser regidas pela formalidade contratual (compra e venda da força de trabalho). De acordo com Saviani (1994: 157),

A escola está ligada a este processo, como agência educativa ligada às necessidades do progresso, às necessidades de hábitos civilizados, que corresponde à vida nas cidades. E a isto também está ligado o papel político da educação escolar enquanto formação para a cidadania, formação do cidadão. Significa formar para a vida na cidade, para ser sujeito de direitos e deveres na vida da sociedade moderna, centrada na cidade e na indústria.

Enguita (1989) observou o isomorfismo existente entre as relações sociais da escola e as do processo produtivo, especificamente na produção industrial capitalista. Nesse processo, a escolarização cumpre o objetivo de preparar para as relações de trabalho, visto que as relações familiares não são apropriadas a esse objetivo. Segundo o autor (1989: 161),

A socialização familiar podia ser adequada e suficiente para preparar o camponês para a aceitação das relações de dependência pessoal e de serviços mútuos com o senhor feudal, mas não o seria para a inserção na organização impessoal e regulamentada da empresa moderna. É aí, justamente, onde intervém a escola.

Desde a infância e por anos a fio, práticas ideológicas são impostas às crianças e jovens, promovendo a criação de hábitos e atitudes favoráveis à inserção não-conflitiva no trabalho capitalista. Na organização do trabalho escolar identificam-se estratégias para a reprodução dos processos de alienação dentro da escola, conforme Enguita salienta (1989: 150):

Práticas escolares com dimensões ideológicas são a estruturação da jornada do aluno, a definição do que é conhecimento, os padrões de interação, a distribuição de recompensas, o trabalho individual, o estímulo à diligência, a deferência para com a autoridade do professor, a divisão entre trabalho manual e intelectual

Trata-se de formas estruturadas das rotinas escolares que, segundo Enguita, constituem o núcleo fundamental da socialização e da aprendizagem. Nessa perspectiva, a escola coloca-se como a instituição social que exerce maior influência na formação da pessoa. Por se tratar de uma atividade obrigatória de um período mínimo de oito a dez anos, estabelecido por lei nos países industrializados, segundo Enguita (1989: 157), “a escola é uma espécie de

instituição total de tempo parcial, cujos internos contam com tardes livres, fins de semana e férias anuais”, a qual ocupa seis ou mais horas diárias na vida de crianças e jovens, por toda a semana, em semanas seguidas e por muitos anos. O tempo da escola inclui, ainda, as horas de estudo e tarefas escolares, e as atividades extra-escolares, como o tempo de lazer com grupos afins, formados na própria escola e os jogos educativos, dentre outros.

O poder exercido pela escolarização, ao legitimar a ordem social vigente e reproduzir os privilégios, processo denominado de violência simbólica por Bourdieu e Passeron (1975), ocorre de forma sutil e dissimulada, levando as pessoas, que supostamente tenham um espaço para a discordância, a aceitarem idéias que lhe são impostas sem se aperceberem do sistema de coação do qual são vítimas. Canesin (2000: 437) considera habitus um “sistema de disposições que funciona cotidianamente como uma matriz de percepção, de apreciação e de ação” construídos “no processo de socialização mediado pelas agências educativas (...) em função das condições objetivas de determinados arbitrários culturais”. Os processos psíquicos envolvidos nos modos de exploração da subjetividade são compreendidos por Bourdieu (1998a), como um sistema coletivo e se baseiam nas pulsões que impelem o indivíduo a investir no objeto, socialmente oferecido ao investimento. Para Canesin (2000: 436),

A interiorização do conteúdo veiculado pela ação pedagógica pressupõe a presença de uma autoridade pedagógica capaz de dissimular as relações de forças presentes. Também requer formas de trabalhos pedagógicos ou atividades contínuas e sistemáticas de inculcação da cultura que visam a formação do habitus que, resultante da interiorização dos princípios da cultura arbitrária, persiste após a finalização da ação pedagógica.

Desse modo, a escola reproduz as diferenças sociais mediante uma atuação repressiva e discriminadora e, alguma mudança que se queira implementar, passa pela adoção de uma prática educativa democrática, sedimentada sobre o conhecimento acumulado da humanidade e organicamente articulado ao mundo do trabalho. Nesse sentido, a superação da dualidade presente na escola, certamente relaciona-se à superação das dicotomias resultantes de uma sociedade contraditória: público e privado; trabalho intelectual e trabalho manual; propedêutico e profissionalizante; ciência e produção, dentre outras. Importa, porém, considerar as condições históricas sob as quais se deu o

desenvolvimento da sociedade. Severino (1999: 59-60) assim analisa o legado histórico da sociedade brasileira:

A experiência histórica da sociedade brasileira é marcada pela realidade brutal da violência, do autoritarismo, da dominação, da injustiça, da discriminação, da exclusão, enfim, da falta do direito. É assim que, o nosso, não tem sido um Estado de direito. Ele sempre foi, sob as mais variadas formas, um Estado de fato, onde as decisões são tomadas e implementadas sob o império da força e da dominação. Não é um agenciador dos interesses coletivos e muito menos dos interesses dos segmentos mais fracos da população que constitui sua sociedade civil. (...) É por isso que as instituições políticas, incluindo o Estado, vão se configurando apenas como formalidades esvaziadas de todo conteúdo real que expressasse sua vitalidade social. O poder desse Estado acaba se expressando como manifestação de força dos segmentos mais privilegiados em detrimento dos menos favorecidos. A instituição “Estado” é instrumentalizada, servindo ainda como anteparo para o poder arbitrário e descompromissado com os interesses coletivos.

Os anseios de democratização da educação encontram barreiras históricas que, para serem vencidas, passam necessariamente por mudanças sócio- políticas de amplas dimensões, que envolvem não só a escola, mas a ação conjunta de toda a sociedade – profissionais, alunos, pais de alunos, associações diversas, partidos políticos e segmentos produtivos e empresariais. As ações buscadas na atualidade, porém, limitam-se a soluções burocráticas, administrativas e técnicas, que podem contribuir para o objetivo, mas não esgotam a questão. Discutindo a realidade da América Latina, Frigotto (1999: 13- 14) declara:

As políticas educativas na América Latina, sob as teses de descentralização e autonomia, inscrevem-se de forma exemplar nos processos preconizados pelo modelo neoliberal. Neste contexto, o financiamento é a pedra de toque. Patrocina-se, na esteira do Banco Mundial, um desmonte sem precedentes no sistema público de educação. Este desmonte, que se materializa na mercantilização do direito à educação, constitui-se num claro retrocesso, em termos capitalistas, da desmercantilização e publicização efetivadas pelas políticas do Estado de Bem-estar e dá-se paradoxalmente, sob um discurso de ampla valorização da educação em geral e da educação básica em particular. A educação ressurge, sob as categorias de

sociedade do conhecimento e qualidade total, como panacéia de

competitividade numa sociedade tecnificada e globalizada. (grifos no original)

A retórica neoliberal, com base no Estado mínimo, apresenta conseqüências funestas para a vida social e, em especial, para a educação, transformando-a em uma mercadoria de consumo individual. Esse processo

elimina a participação social, promove maior concentração da renda e menor regulamentação, retirando a educação do domínio público e coletivo. A estratégia mais comum encontrada pelas ações demandadas pelo programa neoliberal está em reduzir questões políticas a questões meramente técnicas, ocultando o caráter de antagonismo presente nas relações sociais e promovendo o discurso da incompetência na gestão dos recursos. Como destaca Silva (1999: 18-19),

a situação desesperadora enfrentada cotidianamente em nossas escolas por professoras/es e estudantes é vista como resultado de uma má gestão e desperdício de recursos por parte dos poderes públicos, como falta de produtividade e esforço por parte dos professores/as e administradore/as educacionais, como conseqüência de métodos “atrasados” e ineficientes de ensino e de currículos inadequados e anacrônicos. (...) Para problemas técnicos, soluções técnicas, ou melhor, soluções políticas traduzidas como técnicas (tal como a privatização, por exemplo). É nesse raciocínio que se insere o discurso sobre a qualidade e sobre a gerência da qualidade total.

A convergência entre as propostas neoliberais e as práticas pedagógicas nas escolas brasileiras busca “produzir identidades individuais e sociais ajustadas ao clima ideológico e econômico” dominante (Silva, 1999: 19). Não se pode desconsiderar, entretanto, as condições nefastas da educação apresentadas pelo diagnóstico neoliberal. Deve-se discutir, no entanto, a forma como é tratada a questão, pois o programa neoliberal obscurece o caráter político e, submetendo-o ao técnico, promove uma inversão na compreensão da realidade.

A existência atual de um modelo hegemônico de sociedade com base no ideário liberal não pode ser negada; por isso é importante compreender os mecanismos utilizados no desenvolvimento do processo de hegemonia, se o que se busca é alguma transformação (Silva, 1999). Na estratégia neoliberal, nem sempre são criados novos elementos, mas, em grande parte, há a apropriação de categorias que compuseram as reivindicações de movimentos sociais populares do passado. Deslocam-se ou se reprimem algumas questões, buscando o consenso em torno de problemas que são reduzidos em sua complexidade, simplificados e imediatizados em seu entendimento e em sua solução. O avanço neoliberal conta com estratégias que vão além da educação institucionalizada para o alcance de seus objetivos, colocando em evidência o uso das tecnologias, com destaque para a mídia, na manipulação do afeto, do desejo e da cognição.

São muitas as contradições entre o discurso neoliberal, representado pelos ditames internacionais que orientam os rumos do capitalismo na atualidade, e a realidade educacional. Elas são visíveis, especialmente, no que se refere à democratização da educação – na forma de educação básica para todos – e à qualificação profissional, que não mais se enquadra nos moldes rígidos de aquisição dos modos de fazer, mas exige uma formação de novo tipo, centrada nas habilidades cognitivas, hábitos e condutas que promovam a iniciativa e a solução de problemas em novas situações. Kuenzer (1998a: 39) assinala: “Do ponto de vista da concepção de qualificação para o trabalho há avanços, embora já se tenha registrado que não é para todos”.

A precariedade do trabalho escolar da escola pública continua impossibilitando a posse do conhecimento, dificultando a apreensão da comunicação oral e escrita e a compreensão e domínio do método científico. Certamente, essa realidade interfere nos objetivos dos programas de qualidade no trabalho, no interesse da produção, mas, ao mesmo tempo, significa perda considerável para o trabalhador por se constituírem em ferramentas valiosas para sua luta pela sobrevivência.

É relevante considerar que tanto a escola quanto o mundo do trabalho e suas relações geridas pela lógica do capital representam espaços possíveis de formas diferenciadas de sociabilidade do jovem. Enraizadas no processo histórico e nas condições que processam as mediações da atividade humana, as formas de sociabilidade desenvolvidas consubstanciam-se como alicerces de uma subjetividade paulatinamente tecida e que não pode ser entendida simplesmente como emanação natural.

As discussões sobre a subjetividade encontram, nos dias atuais, um vasto campo de interlocução no que se refere ao aprofundamento das análises das relações entre o mundo do trabalho e os processos educativos. Trata-se de buscar elucidar essas relações, em especial, no momento em que a educação é compelida a formar, cada vez mais e de modo mais intenso, subjetividades que venham privilegiar as demandas do capital.

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