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2 OLHARES PÓS-COLONIAIS

2.3 Discurso e hibridação

No sentido da construção da transição paradigmática voltada à emancipação social, tão relevante para o discurso-ação emancipatório quanto a emergência de um pensamento fronteiriço é o fenômeno da hibridação. Há uma pluralidade de projetos coletivos e para torná-los possíveis em suas realizações, não poderia haver uma implantação hierárquica – o esforço exigiria procedimentos de tradução no lugar de uma formulação de teoria geral de transformação social (SANTOS, 2008). Ele entende que a hibridação é a atração dos limites “para um campo argumentativo que nenhum deles, em separado, possa definir exaustivamente. Esta incompletude torna os limites vulneráveis à ideia dos seus próprios limites e abertos à possibilidade de interpenetração e combinação com outros limites” (SANTOS, 2001, p. 356). Tal interpenetração e a combinação entre diferentes ideários, projetos e valores pode ser um importante elemento para a análise da construção de discursos e repertórios de ação durante o evento estudado, que agregou uma enorme diversidade de grupos e motivações. Santos ressalta a importância da consciência da relação de poder que intervêm na hibridação e a necessidade de investigar quem hibrida quem, o que e com quais objetivos.

Para evidenciar a noção de hibridação, observaremos ainda a compreensão de Bhabha.A noção de diferença cultural é central para os estudos pós-coloniais. Homi Bhabha, indiano, estaria entre os autores que melhor refletem a aproximação pós-colonial ao pós- estruturalismo30

. De acordo com Bhabha, os hibridismos culturais insurgem durante as transformações históricas, e é a articulação, a

30 Conforme Costa (2006a), uma forma de categorizar as filiações

epistemológicas dos autores pós-coloniais é distinguindo os autores que buscam os fatos e conexões que possam redimensionar a posição do (pós) colonizado na modernidade daqueles outros autores que, mais próximos do pós-estruturalismo, vão enfatizar os vínculos entre discurso e poder para modificar fronteiras culturais e buscar um lugar de enunciação pós- colonial (COSTA, 2006a, p. 122). De certa forma, para localizar alguns autores centrais ao debate nesse sentido, é possível compreender que o autor citado anteriormente, o argentino-mexicano Enrique Dussel, seria um representante dessa persecução pelo redimensionamento do papel das sociedades colonizadas. O argentino Walter Mignolo e o colombiano Arturo Escobar estariam num centro articulador entre ambas as perspectivas, Mignolo mais próximo de Dussel, e Escobar mais próximo de Bhabha..

negociação, constante dessas diferenças a partir das minorias que pretende autorizar tais hibridismos (BHABHA, 1998, p. 21). Para o autor,

a diferença cultural é o processo de enunciação da cultura como “conhecível”, legítimo e adequado à construção de sistemas de identificação cultural. (...) a diferença cultural é um processo de significação através do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade. (...) O conceito da diferença cultural concentra-se no problema da ambivalência da autoridade cultural: a tentativa de dominar em nome de uma supremacia cultural que é ela mesma produzida no momento da diferenciação (BHABHA, 1998, p. 64 – grifos do autor).

Bhabha (apud CARVALHO, 2001) demonstra que os “vencedores” da dialética colonial precisam estruturar um discurso de autoridade em uma linguagem de dominação – e que este discurso é frágil. Nesta perspectiva, Bhabha desenvolve sua teorização sobre o intervalo vazio do terceiro espaço, apoiado em Bakhtin e em sua noção de exotopia: o discurso dá passagem a um hiato, a um espaço que não pertence nem a mim nem ao outro.

O processo de reinscrição e negociação – a inserção ou intervenção de algo que assume novo sentido – acontece no intervalo de tempo entre o signo, privado de subjetividade e no escopo da intersubjetividade. Neste intervalo – a quebra temporal da representação – emerge o processo da agência (BHABHA, apud COSTA, 2006, p. 10).

É no espaço vazio entre a língua e a sua realização concreta que Bhabha observa que o subalterno pode “capitalizar a inconsistência simbólica dominante a seu favor e devolver o caráter híbrido, precário, frágil dessa ordem que se apresenta como autoridade inconteste, legítima, superior, constante, imutável” (CARVALHO, 2001, p. 125). A pretensão hegemônica do enunciado, conforme Bhabha, deveria ser

acompanhada por uma imediata negociação de significado.

O que está em jogo, de fato, é a luta pelo controle da narrativa histórica: são as tentativas do dominador de silenciar a versão do subalterno e as estratégias desse para desmascarar a versão dominante que se pretende fixar como verdadeira. (CARVALHO, 2001, p. 125)

Bhabha (1998) teoriza sobre a construção de discursos híbridos formulados através da negociação, que é capaz de articular elementos antagônicos. A repetida negociação (realizada por movimentos sociais, por exemplo) possibilitaria articular questões tidas como contraditórias, para atingir a objetivos políticos distintos daqueles eurocêntricos31

. A abordagem desse autor localiza-se entre as fronteiras de um mundo pós-colonial, em um “espaço” que está “nas margens deslizantes do deslocamento cultural” (1998, p. 46), não pertence a nenhuma identidade específica, está no intervalo e na contingência. Para corroborar com esta observação, cabe a citação de Bhabha:

a crítica pós-colonial dá testemunho desses países e comunidades – no norte e no sul, urbanos e rurais – constituídos, se me permitem forjar a expressão, “de outro modo que não a modernidade”. Tais culturas de contra- modernidade pós-colonial podem ser contingentes à modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela resistentes a suas opressivas tecnologias assimilacionistas; porém, elas também põem em campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças para traduzir, e portanto reinscrever, o imaginário social tanto da metrópole como da modernidade (BHABHA, 1998, p. 26).

31 Observo nesta descrição de Bhabha uma forte influência do conceito

gramsciano de hegemonia. Conforme Gramsci (1980), a realização da hegemonia leva em conta os interesses e subalternos, e sacrifícios por parte dos dirigentes. Nesta direção, a negociação que visa discursos híbridos seria uma tentativa de construção de “uma outra hegemonia”, nos termos gramscianos – ainda que o tom de Bhabha não seja revolucionário.