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3 O ENSINO COM ESTATUTO DE PROFISSÃO 1 Os níveis de prescrição para o professor

3.3 O discurso empresarial na educação

É do nosso conhecimento que o sistema educacional dos países da América Latina, e, no nosso caso, mais precisamente, o do Brasil, apresenta grandes dificuldades que culminam com a crise atual da educação. Inúmeras críticas são direcionadas a todos os envolvidos: governo, profissionais da educação, pais, alunos... Segundo esses discursos, o sistema educacional passa por uma crise de eficiência, pois não conseguiu distribuir adequadamente os recursos financeiros oriundos dos órgãos internos e externos aos países latino- americanos, a fim de que as suas instituições escolares se organizassem positivamente nos respectivos cenários nacionais. Concomitantemente, há uma crise de eficácia, uma vez que esses sistemas educacionais cresceram quantitativamente, mas sem garantir um crescimento qualitativo dos índices de aprendizagem dos alunos. E, por fim, apresenta-se uma crise de produtividade, visto que as escolas não contam com uma forma produtiva de gerenciamento de seus problemas e atribuições. (Gentili, 2002)

Esses discursos procuram expressar a incapacidade estrutural das instâncias governamentais no sentido de organizar e administrar as políticas sociais do Estado. Dessa forma, trata-se de um discurso neoliberal que atribui ao assistencialismo estatal a deficiência dos programas sociais e, principalmente, educacionais, pois, segundo essa visão neoliberal, a crise por que passa a educação é conseqüência do centralismo e da burocratização próprias de todo Estado interventor.

Para esta pesquisa, o que chamamos de neoliberalismo trata-se de uma teoria que, segundo Chauí (2003:401), caracteriza-se pelas propostas oriundas do grupo Mont Saint Pélerin que, reunido na Suíça, formulou a teoria econômico- política que se opunha ao Estado de Bem-Estar Social, as quais se definem por

a) um Estado forte que administre eficientemente o dinheiro público e que corte os gastos com os encargos sociais e os investimentos em economia;

b) um Estado que estabeleça a ordem monetária, diminua o desemprego e o poder dos sindicatos, pois esses exigem o aumento dos encargos sociais das empresas, o que causa a inflação;

c) um Estado que não direcione a economia, mas que dê autonomia a esse mercado, promovendo uma legislação que incentiva a privatização.

Essas idéias influenciam a educação do Brasil no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, no qual vão aparecer as primeiras propostas de descentralização das secretarias educacionais com o objetivo de diminuir os índices de exclusão e de marginalidade educacional provenientes da inaptidão do Estado ao administrar o bem-estar da sociedade.

Outra característica dessa política neoliberal é a terceirização, isto é, o aumento do setor de serviços na administração pública. Nesse contexto, há a transferência de responsabilidade pela educação da esfera política para a esfera do mercado, transformando-a num bem de consumo que pode ser adquirido conforme as possibilidades dos consumidores. Segundo Gentili ( 2002:19), nessa visão neoliberal

A educação deve ser pensada como um bem submetido às regras diferenciais de competição. Longe de ser um direito do qual gozam os indivíduos, dada sua condição de cidadãos, deve ser transparentemente estabelecida como uma oportunidade que se apresenta aos indivíduos empreendedores, aos consumidores “responsáveis”, na esfera de um mercado flexível e dinâmico (o mercado escolar).

Que influências, então, essas idéias exercem no trabalho do professor? Existe relação entre as prescrições e esses discursos? Primeiramente, podemos entender que um outro discurso aí se materializa, discurso este que ressalta a capacidade empreendedora que o profissional deve apresentar a fim de se “dar bem” nesse novo cenário político-econômico. É fundamental que ele invista em seu êxito pessoal, que ele seja responsável pelo seu sucesso ou seu fracasso profissional, que ele saiba competir, pois só os melhores sobrevivem.

Em segundo lugar, dessa retórica neoliberal, também podemos depreender o sentido de que do esforço individual dos cidadãos depende a melhora do seu destino e da sociedade como um todo, e não das intervenções do Estado. Ainda nas palavras de Gentili (2002:23)

Trata-se de um chamamento para que cada um “ocupe seu lugar” e não

espere soluções milagrosas por parte daqueles âmbitos que criaram as condições propícias para o desenvolvimento da crise. Em suma, a mudança educacional depende, aparentemente, de que “cada um faça o que tem que fazer” e reconheça a responsabilidade que teve com relação à crise de qualidade da escola.

Disso resulta que a idéia de garantir as necessidades básicas da população e aí, dentro dessa esfera - a educação - passa da ordem dos direitos sociais para a ordem dos serviços privados regulados pelo mercado e, portanto, somente aqueles que têm condição financeira e se prepararam para tal ascensão é que têm direito de adquiri-la.

Já que a crise na educação tem, aparentemente, identificado o seu “responsável”, que propostas neoliberalistas podem surgir para superar essa crise? Uma saída coerente seria, então, desenvolver uma estrutura de administração que privilegiasse os níveis macro e microinstitucionais da educação. Segundo Gentili, estaria institucionalizado o princípio da competitividade que deve regular o mercado educacional.

Esse panorama é favorável para a migração de expressões provenientes da esfera empresarial para o campo educacional, pois os problemas de ordem administrativa, econômica e técnica, que, até, então, não se colocavam como fatores determinantes para o processo educacional, passam, agora a ter um papel fundamental nas esferas educacionais. É assim que “modelos empresariais” vêm para o campo educacional a fim de se imporem como projetos de execução em que práticas novas são apresentadas através de dispositivos lógicos e eficientes. Portanto, no mundo do trabalho, o profissional, mais do que ter qualificação para o trabalho, ele precisa ter competência para gerir as situações de trabalho.

De acordo com Schwartz (1998:105), a competência abrange um campo muito mais vasto que ultrapassa a lógica dos “postos de trabalho”19, pois, nessa idéia, contaríamos com a imposição e a impessoalidade do cargo ou da tarefa, sem nos adentrarmos na trajetória individual e social a que o indivíduo é convocado a percorrer, lançando mão, então, de suas escolhas, modificações e valores na sua atividade de trabalho. Todavia, pode-se dizer, também, que essa designação já faz parte do nosso vocabulário, porém esse deslizamento semântico “qualificação/competência” traz outras questões importantes acerca do mundo do trabalho. Segundo o autor, a questão das competências constitui um problema atual e passa pela mesma ambigüidade que o conceito de trabalho também apresenta, pois se o trabalho é “um lugar de debate, um espaço de possíveis sempre a negociar onde não existe execução, mas uso e o indivíduo no

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seu todo é convocado na atividade.”, também a questão da competência levanta certas reflexões:

A competência é uma realidade vaga que recebe um conteúdo em tendência no campo das atividades sociais; sendo assim, buscar definir “suas condições nos limites” equivaleria à busca absurda do que poderiam ser as “competências necessárias para viver”. (Schwartz, 2000:107)

Sendo o trabalho o lugar de várias tensões acumuladas pelo ser humano durante toda a sua história, um lugar cujas questões de ordem física, biológica e psicológica se embrincam, que equivalência teriam, então, as competências, que por si só, caracterizam-se como “um exercício necessário para uma questão insolúvel”, conforme Schwartz (2000) questiona em seu texto? O que podemos constatar é que, se as competências trazem em sua configuração características ambíguas quanto ao aspecto profissional do trabalhador, elas também se impõem nas instituições organizacionais e técnicas atuais como o dispositivo primordial para o ajuste das pessoas aos postos de trabalho, daí encontrarmos grades de competências necessárias para determinados postos de trabalho20.

A análise e a avaliação das competências no trabalho constituem-se num

verdadeiro problema, segundo Schwartz (1998); e numa tentativa de decompor os diversos “ingredientes” dessas competências para o mundo atual, o autor as apresenta de acordo com o seu enfoque “ergológico”:

1º Ingrediente: saberes identificáveis e anteriormente armazenados – é a tentativa de antecipar ou anular os imprevistos no trabalho, valorizando o conceito frente à execução.

2º Ingrediente: saberes que tendem a alimentar-se a partir do diálogo com o meio particular de vida e de trabalho - é a competência prática, difícil de ser verbalizada ou transmitida porque é adquirida a partir da experiência histórica e

não do enaltecimento do conhecimento teórico. É a capacidade de “desconfiar” e prever acontecimentos nas situações de trabalho.

3º Ingrediente: estabelecimento de uma “dialética” ou “concordância” entre os dois primeiros ingredientes. É a atualização das normas e procedimentos que possibilita uma programação seqüencial de ações, estabelecendo uma relação entre o método e a situação particular a ser considerada no trabalho.

4º Ingrediente: correlação dos valores que organizam o meio de trabalho e o meio de trabalho que organiza os valores e a qualidade do uso de si. O quadro relacional/interpessoal pode apagar ou, pelo contrário, fazer desabrochar competências.

5º Ingrediente: qualidade sinérgica/competência coletiva – noção de equipe como entidade funcional necessária e valorizada nos organogramas, o que faz emergir a idéia da eficiência como resultado de um produto coletivo.

Conceito, prática, método, valores, equipe: palavras-chaves para um estudo sobre as “competências” que não se caracteriza como uma receita, mas que procura construir uma reflexão útil para o mundo do trabalho e como Schwartz diz: “ a partir dessa hipótese de decomposição um apelo à inventividade foi lançado”. Assim, entendemos que esses estudos ergológicos nos auxiliam a embasar a nossa investigação no sentido de depreender nos prescritos esses critérios ou grades que determinam a competência do profissional da educação.

No contexto educacional, então, é comum circularem listas e grades que objetivam apresentar as características padronizadas de um bom funcionário, as quais solicitam “competências” necessárias para o trabalho. Essa listas ,normalmente, encontram-se fixadas em quadros de aviso ou são distribuídas aos professores no ínício do ano letivo. De acordo com Boutet (1993, apud Souza-e- Silva, 2000) são os chamados“escritos democráticos” mencionados anteriormente. Normalmente, esses discursos trazem em seu texto o título “Quem é o melhor

funcionário?” e, a seguir, enunciados, como “Não é o mais inteligente e brilhante, é o mais comprometido.” “ É o que atende os pedidos imediatamente, tanto dos chefes quanto dos alunos e colegas de trabalho.” “ É sempre pronto a colaborar com seus colegas de trabalho mesmo quando a tarefa não é sua.” “ É o mais polido, e educado, além de competente.”21 Enunciados que ressaltam o trabalho em equipe ou o trabalho coletivo passam a incorporar também esses prescritos.

O que podemos entender, então, é que os enunciadores desses discursos consideram uma imagem prévia de seus coenunciadores, isto é - do Outro - no caso, os professores e outros funcionários da escola. Ao apresentar uma pergunta e, logo em seguida, as respostas o enunciador já se auto-caracteriza como a instância maior do enunciado. Assim, são enunciados que trazem uma posição interlocutiva detentora de efeitos discursivos que até há alguns anos não eram próprios do discurso da educação.

Dentro dessa perspectiva, para ser um bom professor, o profissional precisa ser um bom gestor de seu trabalho, designação proveniente do setor empresarial que trata da gestão de recursos humanos. Sendo esta designação pertinente, inicialmente no discurso empresarial e, posteriormente, passando a ser, também, encontrada no discurso educacional, o qual, em nome de uma eficiência efetiva, requer do professor a “competência” de saber organizar e administrar seu trabalho por meio de projetos e empreendimentos direcionados para objetivos concretos e palpáveis. Desse modo, o professor que até então, não teve o seu trabalho reconhecido por meio de critérios tão “definidos” no sentido do que é esperado dele e do que ele tem que fazer, encontra-se diante de um grande problema para o qual ele não se vê preparado.

Outra questão importante que podemos depreender desse embate discursivo das designações qualificação e competência, trabalho e gestão dentro das esferas de trabalho, calcam-se nas palavras de Schwartz (2000:105)

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Os elementos que hoje podemos muito mais claramente identificar como gestão de situação de trabalho e que motivam esse recurso ao conceito mais vago de competência não nasceram do nada junto com as “novas tecnologias”, “as novas formas de organização do trabalho, as novas regras de avaliação dos agentes; já existiam nas formas anteriores, com dimensões e objetivos aparentemente mais modestos, com formas implícitas dissimuladas pela evidência da gestualidade apreendida como repetitiva.

Se, como afirma Schwartz, a questão - qualificação/competência, gestão de situação de trabalho - já existia antes, só que de uma forma subjacente ao trabalho, por que, então, haveria o trabalhador de se sentir pressionado pelo maior número de atribuições que esperam dele? Essas idéias e indagações apresentadas, aqui, levam-nos a refletir sobre o fato de que alguns deslizamentos de designações do discurso empresarial para o educacional podem explicar o desconforto que acomete o professor, pois as funções que ele outrora exercia extra-oficialmente, como, por exemplo, participar da avaliação física dos prédios, colaborar para o envolvimento de todos os membros da escola...passam, agora a ser cobradas dele oficialmente por meio de prescrições formais que trazem designações de uma outra instância para a sua esfera de trabalho – gestão de recursos físicos, gestão participativa - funções que, no passado, não se materializavam lingüisticamente em normas a serem seguidas.

Na segunda parte desta pesquisa, organizamos a metodologia a partir de: (a) apresentação do caminho escolhido para alcançarmos os objetivos da investigação; (b) caracterização dos prescritos para a educação nos níveis nacional e estadual ; (c) organograma das instâncias oficiais do ensino; (d) apresentação do primeiro prescrito: Política Educacional da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo; (e) apresentação do segundo prescrito:Orientações para a Elaboração do Planejamento de Ensino nas Escolas e Diretorias de Ensino.

PARTE II – METODOLOGIA

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DEFININDO UM CAMINHO METODOLÓGICO

Para alcançarmos o objetivo principal desta pesquisa que é identificar a imagem discursiva do trabalho do professor nos prescritos oficiais, tivemos que definir um caminho que nos conduzisse a esse propósito. Partindo, então, do princípio de que o interdiscurso tem primazia sobre o discurso, procuramos aqueles discursos que estabelecessem relações com o trabalho educacional, não só por meio da ótica educacional, mas, também, mediante outras perspectivas, como as de cunho social, político e econômico.

Desse modo, tivemos a possibilidade de deparar-nos com vários documentos - propostas pedagógicas das disciplinas, orientações para o conselho de classe, orientações para planos de ensino... Mas esses documentos ainda não se configuravam como um espaço de tensão em que o analista do discurso pudesse atuar de maneira a ressaltar o intercâmbio entre os vários discursos.

Por conseguinte, chegamos, então, aos documentos das instâncias oficiais – LDB - Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (Lei nº 9.394, de 20/12/96) e os PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) - que poderiam formar nosso

corpus de pesquisa no qual os aspectos heterogêneos do discurso, ao serem, analisados, contribuiriam para o estudo da imagem do trabalho docente. Todavia, dada à necessidade de se delimitar esse universo discursivo (Maingueneau, 2000), como professora da rede estadual e pesquisadora, buscamos aqueles prescritos que delimitassem um campo de discursos constituído de posicionamentos discursivos que mantivessem relações de aliança e de conflito e que fossem particularmente portadores de posições enunciativas que nos favorecessem identificar a imagem do trabalho do professor num espaço discursivo mais delimitado.

Optamos, então, por ater-nos aos prescritos para a educação do estado paulista e, por meio de “conversas” com diretores de três escolas estaduais - duas de ensino médio e uma de ensino básico - obtivemos a informação de que as atividades escolares eram norteadas por uma política maior do Estado, a qual estava registrada em documentos. A partir dessas vozes, recorremos à Internet e pesquisamos no site da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo22, os quais foram escolhidos justamente por serem, conforme os diretores das escolas disseram, “parâmetro para o posicionamento político-educacional das escolas”.

Para que a análise se efetivasse, optamos por caracterizar, primeiramente, de maneira mais ampla, os prescritos referentes à educação nacional para, em seguida, dedicarmo-nos à análise dos prescritos estaduais. Nesses últimos, o “recorte” realizado pautou-se pelo critério de presença de discursos oriundos da esfera educacional e não educacional, como o discurso neoliberal, o discurso empresarial e o discurso da sociedade. E também pela presença de enunciados referentes ao trabalho direto do professor, como sua integração com os alunos e seu trabalho coletivo junto aos seus pares.

A abordagem hierárquica do trabalho defendida pela Ergonomia também é apresentada na metodologia por meio do organograma dos órgãos oficiais que compõem o quadro educacional de nível nacional e estadual.

Por fim, passamos à caracterização do nosso corpus de pesquisa que se definiu na escolha dos seguintes documentos:

a) Política da Educação do Estado de São Paulo

b) Orientações para Elaboração do Planejamento nas Escolas e nas Diretorias de Ensino.

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Ainda na perspectiva de se aliar a análise do discurso às ciências do trabalho, almejando uma concepção interdisciplinar entre essas áreas do conhecimento, foi necessário trazer da Ergologia a dialética existente acerca da

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busca pelas competências no mundo do trabalho em que novas regras, novas leis e novos contratos são parâmetros cada vez mais vagos para o profissional, mas, ao mesmo tempo, decisivos para a tomada de decisões dos gestores do trabalho.

Enfim, esta investigação, ao utilizar o estudo da rede discursiva que envolve os prescritos oficiais voltados para o trabalho do professor, procura entender esse trabalho, baseando-se nas relações interdiscursivas, no papel dos

coenunciadores e nas designações lingüísticas que compõem esses discursos.

Nos próximos segmentos, traremos o universo discursivo dos prescritos para a educação nacional e estadual com o objetivo de estabelecer as relações interdiscursivas que esses documentos apresentam, bem como analisá-los a partir de dispositivos enunciativos-pragmáticos da Análise do Discurso.

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