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2. A NATUREZA DO EIKÓS COMO PREMISSA CULTURAL

2.4. O discurso da opinião

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Tim. 48d.

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Durante a narrativa, Timeu necessita diferenciar o tipo de estratégia que o novo âmbito do seu discurso exige. A base para essa compreensão está na distinção entre a intelecção (νόος) e a opinião verdadeira (δόξα) como modalidades diferentes de conhecimento, como apresenta Brisson (2010183), pelo fato de algumas Ideias serem por nós sentidas, e outras só poderem ser inteligidas. Isso se dá pela essência de ambas ser muito distinta:

Temos que afirmar que se trata de duas coisas distintas (intelecto e opinião verdadeira), pois eles são gerados separadamente e têm uma existência dissemelhante: um deles é gerado em nós através da aprendizagem e o outro é-o pela persuasão. Além disso, o primeiro é sempre acompanhado de uma justificação verdadeira, enquanto que o segundo é desprovido de justificação184.

A δόξα, como opinião verdadeira, é formada pela persuasão, e o intelecto, pela aprendizagem. O intelecto (νόος) é sempre desenvolvido por meio de um raciocínio verdadeiro, que a observação do mundo permite atestar, e, por isso, sua natureza é inabalável à persuasão. A δόξα, por sua vez, é definida como ἄλογος, sem λόγος, irracional e sem razão, e por isso, acessível através de persuasão e aberta a ela. Como Lopes (2011 p.33) bem coloca, “perante a falibilidade da descrição das coisas sensíveis, Platão tentará reconstituir a ação demiúrgica a partir da observação direta do que tem perante os olhos – a obra dessa divindade”, transcendendo à possibilidade do apenas sensível, e através do que se pode compreender da observação da natureza do mundo, ele construirá um discurso de ‘representação’ desse mundo. A construção dessa sabedoria, a ἐπιστήμη, se difere pelo fato de associar o que é verdade à justificação do

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“Assim encontramos, no conjunto visível, o gênero dos reflexos, dos objetos fictícios ou imaginários, que só podem ser conhecidos por conjectura; depois aquele dos corpos naturais ou técnicos, conhecidos por crença ou convicção (πίστις); e, no gênero inteligível, os objetos de pensamento conhecidos por uma razão discursiva que procede por hipóteses (διάνοια) e, por fim, os objetos inteligíveis, as Formas Inteligíveis, conhecidas pela intuição intelectual.” (Brisson 2010 p. 26).

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λόγος, do intelecto185

, e não da δόξα186, pois o λόγος atinge o Inteligível. O que Timeu afirma é que o discurso do sensível, “que é ele próprio verdadeiro (ἀλήθης)”, gera “opiniões e crenças firmes e verdadeiras (δόξαι καὶ πίστεις γίγνονται βέβαιοι καὶ ἀληθεῖς)”, enquanto que, em relação ao discurso inteligível racional, “é forçoso que daí resulte saber e intelecção (νοῦς ἐπιστήμη τε ἐξ ἀνάγκης ἀποτελεῖται)” (Tim. 37c). Cuenca (2012) bem aborda o valor de ‘verdade’ na construção do Timeu:

Ciertamente, en el Timeo sólo el νόος es capaz de elaborar razonamiento verdadero, es racional, y no puede ser movido por la persuasión, mientras que la δόξα, aún ἀλήθης, es irracional y está sujeta a los movimientos que la persuasión ejerza en ella187.

No mesmo contexto da busca pelo conhecimento a respeito da origem e criação do mundo através dos deuses, encontra-se esta passagem de Xenófanes, que expande a inacessibilidade da ‘verdade’ absoluta, porém, demonstra a concordância que se torna aceita através de uma opinião coletiva, que ganha importância através das possibilidades verossímeis dessas narrativas:

E o que é claro, portanto, nenhum homem viu, nem haverá alguém que conheça sobre os deuses e a respeito de tudo que digo, pois,

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“Há uma primeira espécie que é imutável, não está sujeita ao devir nem à destruição, que não recebe em si nada vindo de parte alguma nem entra em nada, seja o que for; não é visível nem de outro modo sensível, e cabe ao pensamento examiná-la.” Tim. 52a.

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“Há uma segunda, que tem um nome igual àquela, que é sensível, é deveniente, está sempre em movimento, é gerada num determinado local, para, de seguida, se dissolver de novo, além de que é apreendida pela opinião e pelos sentidos.” Tim. 52a.

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ainda que no máximo acontecesse dizer o que é perfeito, ele próprio não saberia. A respeito de tudo existe uma opinião (δοκός188

).189

Através da investigação e da observação da natureza, os homens podem ‘deduzir’ a opinião, que pode se assemelhar à verdade. É como se a própria natureza do assunto criasse ‘opiniões mortais’ sobre aquilo que não se tem conhecimento empírico ou metafísico, mas não deixa de ser possível criar e formular as possibilidades que seriam ‘verdade’ sobre tais assuntos190

, enfatizando aquilo que é favorável como se fosse o ponto principal. Contudo, essa opinião, que pode ser um processo individual ou coletivo, dependendo da aceitação persuasiva dos elementos verossímeis, também se apresenta relativa, e pode ser sustentada sobre diferentes pontos de vista. É como Aristóteles bem aborda na Metafísica a respeito da relativização das opiniões:

E como se disse em primeiro lugar, necessariamente fazem todas as coisas relativas, relativas à opinião e à sensação... Seguramente por isso, os que sustentam tal doutrina, não por se encontrarem em uma situação aporética, mas pelo gosto de discutir, haverão de dizer, não que isto é verdadeiro, mas que é verdade para este191.

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Alguns estudiosos acreditam que esta palavra foi ‘cunhada’ pelo próprio Xenófanes, e asseguram ser um uso inédito. Cf. Vernant, As Origens do Pensamento Grego, p.18 .

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Xenófanes, In: Os Pensadores, Tradução de J. Cavalcante de Souza, fr. 34. 190

“We cannot have more than a 'likely story', not the full, transparent truth, about the physical details of the world's structure. It may be instructive to work out detailed theories, but he offers them as no more than reasonable ways in which the creator might have proceeded in designing the world. Moreover, according to the Phaedrus, rhetorically skilled speakers will base what they say on the full philosophical truth, but will vary and embellish it as needed to attract and hold their hearers' attention and to persuade them to accept what is essential in it”. (Cooper 1997 p. 1225).

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Essa relativização do conteúdo que se faz da opinião verdadeira e do indivíduo que opina é uma das críticas de Platão, em outros diálogos, como o Mênon192, pois essa dinâmica social é a responsável pela redução do conhecimento a uma mera opinião, causando assim uma participação, até mesmo nas decisões políticas, cada vez mais equivocada e sem fundamento, sem conhecimento verdadeiro (ἐπιστήμη). Parece que essa opinião, porém, não deixa de dominar o imaginário coletivo e, inclusive, de ser praticada como um comportamento totalmente aceito e até mesmo como uma referência social. É o caso que Timeu retrata ao abordar o ato de dar crédito aos hábitos dos ‘filhos dos deuses’, pois afirma que devemos, “quando tratam (os filhos dos deuses) de dar conta dos episódios que dizem respeito à família, devemos então confiar (πειστέον) neles, de acordo com o costume” (Tim. 40e). O ato de ‘confiar’ revela que o caráter verossímil dessas narrativas tem plena aceitação na opinião dos indivíduos a ponto de praticá-lo ou difundi-lo com naturalidade como elemento natural e evidente da sociedade do momento.