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2. A NATUREZA DO EIKÓS COMO PREMISSA CULTURAL

3.3. A imitatio e Cícero

Posteriormente, já no séc. I d.C., encontra-se em discussão a questão dos antigos e dos modernos, tanto entre os que escrevem em grego, como entre o “novo” centro cultural do momento, os latinos. Nesse contexto, não muito diferente dos gregos, os romanos também se preocupam com a importância da teoria da imitação. A tradição mimética faz o processo imitativo muito cedo derivar do descritivo para o prescritivo, e, para eles, a imitação se torna menos artística e sofre um forte pendor para a atividade prática, e surge daí a teoria da imitatio. Nesse século, em Roma, Cícero escreve o Do Orador, composto por três livros que, “à maneira aristotélica, em forma de discussão dialógica, contempla a doutrina oratória dos antigos, mas afasta-se dos preceitos

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comuns” (Cícero, ad. Fam. I, 9, 23) e traz um diferencial em relação à tradição manualística anterior: o fato de crer que há elementos mais importantes que a ‘arte’ para atingir a eloquência, e apresentar importante enfoque no orador, por estar abordando a arte retórica. O próprio momento de propagação da cultura escrita, por alguns chamados como o processo de “helenização de Roma”, contribuiu para uma maior leitura e seleção dos ‘cânones’ para a imitação:

É preciso ler também os poetas, conhecer a história, folhear com assiduidade os mestres e escritores de todas as artes liberais, bem como citá-los como exercício, interpretá-los, corrigi-los, criticá-los, refutá-los; acerca de qualquer tema, deve-se discutir os dois lados da questão, bem como evocar e mencionar, em cada tema, qualquer elemento que possa parecer provável224.

Como a leitura dos clássicos gregos sempre foi uma premissa importante para a qualidade do processo imitativo, com a forte presença desse elemento estrangeiro, os romanos aderiram à imitação através da composição mimética segundo modelos eleitos. O imitador tem o papel central neste processo de μίμησις, pois a seleção dos modelos a serem tomados como referências passa por sua experiência e intervenção pessoal, a fim de produzir uma composição com resultados pessoais que não reflitam necessariamente o real. Dessa forma, o processo imitativo não se torna apenas uma cópia servil, está apenas inspirado nos melhores modelos. Cícero discute este processo mimético em o Do Orador, enfatizando que as escolhas é que vão diferir no resultado da obra:

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Portanto, seja este o primeiro de meus preceitos: indicar aquele que se há de imitar, e de tal forma que se busquem com maior zelo os elementos que mais se sobressaem naquele que se imitará. Some-se a isso, então, o exercício, no qual possa, pela imitação, reproduzir e representar aquele que se escolheu, porém, não como muitos dos imitadores que vi em diversas ocasiões, que procuram imitar os elementos fáceis ou mesmo aqueles que são particulares e quase viciosos225.

A escolha do que deve ser tomado como modelo é o que construirá o real valor da imitação, uma vez que o modelo escolhido será representado no novo processo imitativo, através dos elementos que constroem a grandeza deste, e não dos “elementos fáceis ou que são particulares e quase viciosos”, os que qualquer mero imitador seria capaz de selecionar e fazer. “Não foi a eloquência que nasceu da arte, mas a arte da eloquência”, afirma Cícero. O ponto central de Cícero em o Do Orador é o de apresentar, através do personagem Crasso, uma grande preferência pela capacidade do orador, e não da arte. A. Scatolin226 (2009) argumenta que as sistematizações da arte retórica não são suficientes para abranger todos os aspectos da eloquência, e, ao apresentar o que ele chama de “visão maximalista do orador na obra”, confere autoridade ao orador para corrigir toda uma tradição a fim de aumentar a credibilidade do seu próprio discurso. A fim de construir o que ele chama de “gênero de imitação da realidade”, Cícero também atribui a autoridade de cada orador não ao decoro da idade, por desenvolverem a moderação227, como disse Aristóteles, mas à experiência vivida de cada orador. Ele defende com afinco que a “reflexão, a aplicação e o zelo superam a idade”, a fim de ressaltar que está, mais uma vez, na capacidade individual do orador, a potência de seu desempenho, o que pode levar este a atingir as mais admiráveis características de um orador, o decoro e a adequação às circunstâncias.

Apesar do enfoque de Cícero em discutir a retórica pela oratória, pode-se perceber que, neste momento romano, o texto escrito já apresenta uma importância

225 De Orat. II, 90.

226 SCATOLIN, Adriano. A invenção no Do Orador de Cícero: Um estudo à luz de Ad Familiares I, 9,

23. Capítulo 1. São Paulo, 2009.

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diferente e maior do que o valor que era dado ao discurso improvisado na Grécia clássica. Deste modo, ele chega a afirmar que:

Embora muitas vezes seja útil discursar também de improviso, mais útil é separar também algum tempo para meditar e discursar de maneira mais preparada e precisa. O ponto principal é o que, a bem da verdade, menos fazemos, pois demanda grande trabalho, o que a maioria de nós evita: escrever o máximo possível. A escrita é a melhor e mais importante realizadora e mestre do discurso, e não há insulto nisso: se a preparação e a reflexão superam o discurso improvisado e fortuito, é evidente que a escrita assídua e cuidadosa será superior a ela228.

De arte “inspirada pelas musas”, o discurso passa a ter o status de arte dominada através de extrema elaboração, e isso, obviamente, é uma atividade completamente consciente e intrínseca ao indivíduo. O alto valor do texto escrito é abordado por Oliva Neto (2008), que descreve esse período da história dos latinos como parte da aculturação grega ao latim, que envolveu a tradução dos clássicos gregos e a maior circulação de livros em Roma. Os romanos se tornaram “o vencedor vencido” culturalmente, e, “mediante a imitação dos autores gregos do passado, tomados por modelo segundo cânones estabelecidos no período helenístico na Biblioteca de Alexandria, helenizaram as letras latinas229”, cânones estes que elegeram o grande Demóstenes e também Antifonte como os melhores oradores clássicos. Como diz Neto (2008 p. 52), “essas causas que dizem respeito às condições materiais, anteriores e imprescindíveis às atividades propriamente literárias - estabelecimento dos cânones e das leis dos gêneros poéticos ­ permaneceram na lembrança dos romanos”. Como formas de adaptação das “letras”, com a forte presença do elemento estrangeiro, os romanos aderiram à imitação (composição imitativa segundo modelos eleitos); reelaboração (paráfrase, adaptação poética de modelo antigo com variações e com evidência do texto de partida) e tradução (tradução integral do texto, com as deficiências

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De Orat. I, 150. 229 Neto 2008 p. 54.

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intrínsecas que essa tarefa exige). Em suas palavras, “percebe­se que a tradução, que decorre da escolha, é a marca mais explícita daquilo que uma cultura valorizou em outra”. Contudo, independentemente da forma a ser utilizada para essa “adaptação” da cultura, o importante a ressaltar é que os receptores têm a possibilidade de escolher o que acolher, e são eles que decidem o que pertencerá à tradição.