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2. A NATUREZA DO EIKÓS COMO PREMISSA CULTURAL

3.1. Platão e a μίμησις

A μίμησις já era uma parte importante da constituição do sistema filosófico de Platão. O autor dividiu a realidade em dois mundos, o cognoscível, apreendido somente por intermédio da razão, que compreende as ideias puras, que são eternas, unas e imutáveis; e o sensível, alcançado através dos sentidos, físico e perceptível ao homem. Assim, o que se entende por ideal de virtude, justiça ou beleza é uma entidade cognoscível. Desse modo, o mito da caverna no Livro VII da República de Platão é

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bastante ilustrativo dessa representação do mundo, pois, enquanto o homem está dentro da caverna, ele vê e sente somente as sombras que estão projetadas nas paredes, porque ele não tem acesso ao cognoscível, que seria a origem da imagem projetada na parede. Aquilo que o homem percebe nas paredes é apenas uma sombra, uma imagem escurecida do verdadeiro ser que está fora da caverna (Bergson 2005)213. Portanto, o mundo sensível é uma imagem do mundo cognoscível, é uma imitação, e é também, como imagem, constituído pelo elemento ‘verossímil’.

Consequentemente, o homem não compreenderia a virtude, a beleza ou a justiça; ele somente sente uma representação desses ideais. Somente a razão, o λόγος, poderá possibilitar a compreensão desses. E, nesse sentido, em relação à arte, a literatura, como μίμησις da realidade, seria ainda uma representação do mundo sensível, uma imitação em terceiro grau:

Então, imitador chamas tu aquele que produz uma obra, três graus afastada da natureza? – Precisamente. – É o que, nesse caso, vem a ser o poeta trágico, visto que é imitador (...)214.

Pode-se entender, sobre a concepção de poesia mimética de Platão, que o poeta é um imitador do mundo sensível, e não do cognoscível, uma vez que efetua esta tarefa em terceiro grau de imitação. O real é o ser, cognoscível, que o mundo sensível nos proporciona perceber através da sua forma de representação, e que é apreendido pela obra de arte, que imita este mundo sensível. A poesia mimética, segundo o paradigma filosófico do autor, além de seu suposto caráter contrário ao cognoscível, afasta-se do real (Saltarelli 2009215). Por ser uma imitação da imitação, esse processo

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“Resumindo, as Ideias formam o mundo inteligível, isto é, o mundo da ciência, um mundo onde não há nem contradição nem devir, onde os objetos mantêm entre si relações naturais de parentesco, onde são coordenados e subordinados uns aos outros. Esse mundo das Ideias, κόσμος νοητός, que é o mundo da ciência, opõe-se ao mundo sensível, que é o mundo da aparência, da opinião, δόξα, κόσμος ὁρατός, τά ὁρατά.” (Bergson 2005 p. 109).

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Rep. X, 597e. 215

“Platão parte do pressuposto de que há três realidades possíveis de serem criadas: o arquétipo, que é a realidade verdadeira, denominada ἰδέα em grego, criada por um deus; a cópia do arquétipo, ou φαινόμενον, criada pelo artífice ou artesão; a cópia da cópia do arquétipo, ou μίμημα, criada pelo pintor e

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mimético não permite ao homem atingir o mundo cognoscível, impedindo-o de atingir o racional do λόγος. Por isso, o poeta não possui uma função social na πόλις, uma vez que, como o próprio Platão coloca no Górgias, a poesia mimética “tende mais ao prazer e ao agrado dos espectadores” (Gorg. 502b), e não é possível, através de uma tarefa de imitação, atingir o mundo cognoscível necessário para a πόλις.

É importante notar que a μίμησις para Platão não está relacionada a um caráter ficcional: é uma arte216 mimética que relaciona mente e realidade, pois aborda percepção e linguagem do homem como um todo, e, por isso, está associada aos problemas mais graves da filosofia. “Os poetas criam seus problemas não da sabedoria, mas da inspiração” (Halliwell 2002), e, dessa forma, para Platão, ela não é socialmente positiva, pois é um instrumento enganoso de proporcionar a realidade ao homem, já que impossibilita este de ascender ao cognoscível superando o sensível, pois o permite se contentar com as representações do real que ele pode sentir, como Platão coloca, “a arte de imitar está bem longe da verdade” (Rep. 598b). Desse modo, a poesia mimética perde sua significação, uma vez que é uma representação de uma imitação217. Assim, a poesia perde a sua função social na πόλις, tendo que ser expulsa dessa para permitir aos homens exercerem o uso do λόγος, que possibilita o acesso ao mundo cognoscível, frutífero para a cidade.

pelo poeta. A cópia feita pelo artífice, encontrada na natureza, no mundo humano, é imitação direta da ἰδέα, ou seja, da Verdade (ἀλήθεια), ao passo que a cópia feita pelo artista, encontrada na arte, é já imitação da aparência (φάντασμα). A μίμησις, então, é entendida basicamente como imitação da natureza, ou seja, da aparência. Traduzido como imitatio pelos latinos, esse conceito adquire estatuto ontológico na filosofia platônica, na medida em que se insere na discussão sobre as realidades e sobre a Verdade.” (Saltarelli 2009 p. 252).

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Close (1971), no artigo “Philosophical Theories of Art and Nature in Classical Antiquity”, aborda as concepções de arte dos antigos e a influência da percepção de Platão: “Plato makes a universal division between two kinds of art, divine and human, and thereafter various subdivisions among the human arts. Divine art makes the things which are commonly attributed to nature; human beings make their products from divine arti-facts (natural things). Both God and men produce either real things or images. The real things made by men are inventions with a utilitarian end, beds or houses. The images made by man can be divided into two broad kinds: phantastic work or art and copy-making. The former category can be further subdivided into two classes: that in which the imitator makes use of instruments, and that in which he uses his own voice and body as an instrument. This last class, which is given the title of μίμησις and is exemplified by the case of the actor, is made to include in one of its subdivisions the Sophist.” (Close 1971 p. 166).

217 Caimi (2003), no estudo sobre as aplicações da μίμησις nos diálogos platônicos, “A natureza flutuante da μίμησις em Platão”, observa que “torna-se difícil extrair um sentido único ou construir um conceito unitário a partir do emprego instável e imprevisível da μίμησις em Platão. Nessas várias utilizações, é o caráter flutuante que fica reforçado, porque o significado do termo inclui o mesmo e o oposto e se manifesta como semelhança, daí caracterizar-se como pluralidade, que possibilita alternâncias e inconstâncias, diferente da imobilidade eterna e sempre idêntica a si mesma das Idéias. Em suma, por mais que tente, Platão não consegue se livrar da μίμησις. Por conseguinte, tem clareza da dimensão trágica em que o filósofo se encontra: está no meio do caminho, entre as certezas absolutas da ἐπιστήμη e a possibilidade relativa e oscilante de dizê-las.” (Caimi 2003 p. 113).

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